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Contos-->A SORTE DO MATADOR -- 12/04/2010 - 17:27 (Antonio J. C. Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A SORTE DO MATADOR

Antonio J. C. Antunes


1. A vida de cangaço

Depois que matei aquele vizinho que reclamou da cerca, tive que deixar família e tudo pra trás e agarrar o gosto pelo apagamento de cabra safado. Mandei os filhos e a mulher para meu irmão tomar conta em São Paulo e evitar vingança da família daquele um. A fazenda vendi para o primeiro oportunista que apareceu.
Longe dali o Coronel Tonho dos Limoeiros deu-me proteção e começou a pedir meus serviços em troca de bom dinheiro. O que ele pedia era tudo dentro dos direitos. Tava sempre na conformidade ter que apagar aqueles sujeitos que aperreavam por demais o Coronel.
Antes do primeiro feito com o vizinho, ouvi um padre contar a estória da Bíblia em que um homem chegou a quase sacrificar o filho pensando com isso agradar a Deus. Mas na hora do feito, Deus mandou parar, confirmando a crença firme do homem. Ouvi também contar que o povo da Bíblia matava bichos para amansar a raiva de Deus pelos pecados que sua gente cometia. Outras pessoas importantes me informaram de umas tribos de índios que matavam e comiam os valentes vencidos e presos nas guerras. Também soube da boca de um professor de faculdade que tirava férias perto das minhas terras, que muito antigamente havia uns povos que de vez em quando matavam um inocente. Inventavam com raiva que ele era culpado de todos os males. Faziam o sacrifício para apagar as brigas de ambição e ciúme entre eles, quando elas ficavam demais da conta. E também para pedir a proteção de seus deuses. E depois do sacrifício, a raiva virava bem querência, e nascia a fé de que a alma do inocente era protetora da tribo.
Matutando nessas coisas, depois do caso daquele vizinho, ficou na minha cabeça a fé de que, depois de julgar bem merecedores os cabras safados, era certo eu ficar com raiva deles e fazer os apagamentos. E de que a morte serviria para perdoar todos os pecados deles. Iam para o Céu sem nem passar pelo Purgatório e felizes viravam meus protetores lá em cima.
Por isto, desde que comecei as minhas artes passei a rezar assim:
- Meus Santos Apagados que brilham lá no acoito de Nosso Senhor Jesus Cristo me proteja disso ou daquilo.
Pronto. Era zás - trás.
Por isto também não aceitava fazer nenhum castigo que não fosse a morte.
No começo o Coronel me pediu para capar um e dar uma pisa noutro. Foram só duas vezes seguidas. Nas duas vezes eu disse:
- Coronel. Tenho muito respeito e admiração por vosmecê. Para mim e pra esse povo que vive na sua influência, é Deus no Céu e vosmecê na terra. Mas o senhor tem muitos outros cabras dispostos pra fazer o que vosmecê me pede. Não me leve a mal. Meu compromisso com Deus nosso senhor é de dar lição só com apagamento ligeiro, sem sofrimento, com tiro no pensador dos cabras safados. Porque, mediante minhas rezas junto ao Padrinho Cícero e São Severino dos Ramos, Deus me dá autoridade pra fazer o apagamento. E por isso não tenho remorso nem tremedeira. Faço o serviço bem feito. E com muita satisfação de fazer o bem feito e o feito do bem. Por isso vosmecê num tem queixa, nem de minha vontade, nem de que a coisa não seja muito bem feita. Me perdoe, mas me tire dos serviços que não seja de apagamento.
O Coronel sorriu e me deu razão porque ele sabia das crenças de seu povo e como elas são importantes pra vida de todos, inclusive para as vontades e o comando dele. E depois da segunda vez o Coronel nunca mais me pediu nenhum serviço fora dos conformes. Viu que eu não mudava nem minha palavra de homem nem minha fé em Deus.
Assim cuidei de vários casos a pedido do Coronel, para ele e para seus amigos. Chefes bons e importantes que cuidavam de um tudo e de todos em suas terras.
E em cada caso sempre eu primeiro acreditava na culpa da vida pecaminosa do candidato, ouvindo e fazendo minhas as razões do Coronel. E depois criava a raiva contra o desgraçado juntamente com a fé na sua salvação pelo apagamento aqui na terra. Tudo isso me dava o direito e ajuda na minha cabeça para fazer cada serviço sem erro nem volta. E não tinha nem tremedeira, nem remorso. Nem antes, nem depois. O feito era bem feito e os cabras safados mereciam demais da conta. E ainda tinham era que me agradecer porque iam para Deus. E Deus também ia ficar contente por receber suas almas redimidas.

2. O serviço especial

Uma vez, o Coronel Tonho me chamou pra dizer que um bosta de um doutor advogado, filho de um outro coronel, estava precisando da lição. O advogado era um rapaz arrogante, reclamando de uma corrida de cerca que o Coronel Tonho tinha feito dentro de seus direitos e poderes. Esse advogadozinho de merda botou questão contra o coronel envolvendo até um juiz da capital. Era só coisa dele. O pai, coitado, homem manso e despistado, estava quieto, até que o desgraçado voltou de estudar na capital e de se inteirar com olho troncho dos feitos e bem feitos do Coronel.
Aí o Coronel me falou:
- Ô Quelemente, eu quero que você dê um jeito naquele cabra safado, rapazinho de merda que eu vi menino com catarro nas ventas, brincando pra lá e pra cá nas inocências de criança. Agora que cresceu e voltou dos estudos, anda muito influído, querendo botar questão pra desfazer o avanço que eu fiz dentro dos meus direitos nos acordos das minhas escrituras. Mas não se avexe não, porque tem tempo. A questão ainda vai rolar um bocado. Falei com uns amigos lá da capital, desses que a gente ajuda nas eleições e noutras coisas... Gente que pode e pode muito... O juiz vai tomar um tempão como acontece sempre com os juízes. E esse aí ainda por cima recebeu uns conselhos... Quero um serviço bem feito. Mas, o mais importante, é que vosmecê arrume pra tudo parecer bem parecido que haverá de ser outra gente que mandou e fez o que vosmecê vai fazer. Uma mulher com ciúme, um corno, uma briga de rua ou de jogo de carta. Qualquer coisa pra ficar claro e bem claro que não fui eu quem mandou. Porque vosmecê sabe, notícia corre que nem vento. Logo vão pensar que o vai acontecer tem que ver com a questão da terra. Isso tem que ser bem arrematado, bem sucedido e com a culpa bem lançada pra outra banda.
Nunca o Coronel tinha pedido serviço assim tão completo. Com a montagem dos disfarces que ele pediu. Noutras vezes ninguém podia pegar nem ao Coronel nem a mim. Mas se sabia a boca pequena que era coisa dele e não se sabia quem executou. Porque ninguém me via e eu fazia as coisas de espera escondida, e havia outros fazendo coisas iguais para o Coronel.
Agarrei a pensar, a imaginar. A primeira parte, pra mim era fácil. Escolher o caminho, a hora e a espreita. Mas pra outra parte da encomenda, o jeito foi pedir ajuda a São Severino dos Ramos. Que ele me ajudasse a montar o feito, de um modo que, não se suspeitasse nem de quem mandou nem de quem fez.


3. O nó de paixão

Comecei por botar sentido nos caminhos que o advogado fazia. O homem já não era mais aquele bostinha de menino de muito tempo atrás. Não. O disgramado cada vez mudava de caminho. Ficava difícil adivinhar o caminho aonde eu pudesse esperar escondido e estourar o pensador dele com meu “Papo Amarelo”. Parecia até que ele conhecia as leis dessas bandas e se prevenia.
Nesse entretanto, olhando daqui, olhando de acolá, pra ver os costumes desse advogadozinho, conheci a irmã do disgramado. Aí é que a porca entortou o rabo. Êita moça danada de bonita! A figura dela invadiu minha cabeça e me deixou abilolado. Um riso de deixar todos os passarinhos com uma vergonha danada. Tinha uns dentes que pareciam os daquelas propagandas que a gente via nas ruas das cidades. Aquela risada linda e bondosa, uma cara tão formosa que dava vontade de ficar olhando o tempo todo. Aí se formou nos meus pensamentos uma mistura de estourar. Umas vontades de macho tesudo, junto com um respeito e orações de beato rezando pra uma santa como ela. Êita diacho. E o corpo da distinta? Meu deus do céu. Era um par de peitos daqueles redondinhos, redondinhos, com aqueles biquinhos que pediam para serem amolegados. Era um corpo forte, porém de mulher bem mulher. Que deus me perdoe. A cintura era mais fina que o resto da figura e quando a distinta andava as traseiras balançavam que só vendo. Ai que vontade de agarrar e chamegar com aquela moça! Mas, logo depois , ai que vontade de rezar praquela santa. Porque ela era santa mesmo. Eu sentia assim e também ouvia a mesma coisa que o povo dizia. Tudinho nela era do melhor. Era professora pra ninguém botar defeito. Os meninos a adoravam. Era tudo pureza, bondade e trabalho de ensino bem feito. Apesar de ser moderna, vivia freqüentando sempre a Igreja e fazia todas as primeiras sextas feiras do mês.
E a figura de mulher desfrutável virava de repente a imagem de uma santa brilhando, com um sorriso de anjo, uma mão estendida pra me ajudar e a outra me apontando pra outro caminho.
Passou assim a me azucrinar aquela paixão misteriosa, aquela mistura de pecado com santidade nas figuras alteradas dessa moça incrustadas nos meus sentimentos. Uma confusão dos diabos que me deixava umas vezes muito enlevado e outras vezes muito emburrado.
Mas nos meus pensamentos não podia esquecer de minhas obrigações. Tinha que fazer desaparecer aquele cabra, ainda que parecesse um candidato a cunhado protegido por aquela santa da família. Tinha aquelas coisas brigando dentro da minha cabeça.
Mas eu sou homem sério e não ia deixar aquelas visões, mistura de mulher santa e de mulher desfrutável, tomar conta de minhas responsabilidades com o Coronel. Mesmo que a gente seja gente de carne osso e coração, sabe como é? A gente tem é que cumprir com os contratos, custe o que custar. Além do mais, o que me aperreava era a pena de saber que ela ia sofrer aqui na terra com a morte do irmão. Mas tinha o outro lado, o de pensar que, mesmo sem ela saber, o irmão morto ia mudar em santo lá no céu assim como ela era aqui na terra.



4. O Destino Contrariado

Nisso passou um mês, dois meses, três meses, eu escolhendo com calma hora e lugar do feito, e me agarrando com São Severino dos Ramos para imaginar a outra parte do serviço, que era de fazer que a culpa caísse todinha noutras pessoas.
Tava nesse lero-lero quando um dia na porta de meu barraco, que ficava a uma légua da casa grande do Coronel, chega muito avexado um cabra dele num cavalo suando e bufando da carreira que deu, com uma pressa que só vendo.

- Seu Quelemente, ô seu Quelemente! O Coronel precisa ter uma conversinha com o senhor! Pra começar disse que não faça nada do combinado, de jeito e qualidade nenhuma! É para falar com ele agorinha mesmo!

Selei meu cavalo e segui o cabra conversando pelo caminho essas potocas que é o caso de conversar.

Chegando lá na casa grande, o Coronel Tonho já estava me esperando de pé na varanda e me chamou pra sentar e conversar. E até me deu um cafezinho gostoso.

- Quelemente, vosmecê sabe dessas coisas de política. Como vosmecê está cansado de saber, sou PSD fixe desde o tempo de meu avô. E do outro lado, aquele advogado é de família da UDN desde também o mesmo tempo. Pois bem, em Política não existe inimigo pra toda vida.
Às vezes, a gente tem que se aliar com quem era antes do outro lado. Pelas conveniências que vêm lá de cima. Da política estadual e até mesmo da nacional.
Pois bem, agora dá-se o caso. Nas eleições que vêm aí, o PSD e a UDN se juntaram pra ganhar contra os outros partidos, que até estão cheios de comunistas disfarçados.
Então, não pode acontecer o apagamento contratado com vosmecê.
Inclusive, na combinação dos partidos, vou ter que apoiar o esse advogado pra deputado.
Foi dentro de um toma lá dá cá. No caso das terras com o advogado, ficou acertado que as coisas vão ser resolvidas com a mediação de um poderoso que foi aceito por nós dois, e de modo a satisfazer o direito de cada um.
Mas vosmecê não se preocupe que vou cumprir a outra parte do contrato. A paga eu vou lhe dar todinha, como se tivesse feito o serviço. Estou até com a dinheirama aqui comigo, pra lhe dar assim que vosmecê estiver nos conformes. É só dizer que confio na sua palavra, a de que por aqui a coisa vai parar.

Aí, eu fiquei foi muito avexado! Então eu fico agarrando raiva daquele merdinha, já me convenci que ele é um safado merecedor da pena, até fiz a promessa de assim salvar a alma dele, e agora o Coronel vem com essa estória que é pra desistir de tudo? Tá danado!!
Mas eu soube esconder esse meu desassossego. Minha cara não dizia nada disso para o Coronel. Figurava como a cara desses jogadores de baralho, sabe como é?
Então eu pensei, pensei, e disse com muita calma:

- Coronel, eu admiro muito sua bondade de homem sério e cumpridor. Mas, deixe estar, que não precisa pagar o dinheiro agora, não. Me dê um tempinho que é pra eu pensar uns poucos dias. Que é pra eu apagar a raiva que agarrei do indigitado. O senhor sabe que só com raiva eu faço os serviços bem feitos. E essa raiva está aqui encafifada no meu pensamento que só vendo. Vou fazer força pra destripar a desgraçada, senão não dá pra parar. Peço paciência a vosmecê por uns poucos dias. Logo depois volto pra responder no positivo pra vosmecê.
Disse isso. Mas não disse que também tinha de tirar da minha cabeça o julgamento da culpa daquele desgraçado e o mandato divino de salvar a alma dele.

Aí, com uma cara meio contrariada, o Coronel falou:
-Está bem, Quelemente, pode ir tirar essa raiva da cabeça. Mas não demore porque as eleições vêm aí. Só espero que você consiga destripar do pensamento essa disgrama de raiva. Sua paga fica aqui esperando.



5. O Desvio da Salvação

Aí, me despedi e peguei o cavalo no sentido de minha toca. Não andei muito e já ouvi uma voz na minha cabeça pensando:
- A boca daquele Coronel estava dizendo uma coisa e o pensamento dele estava noutro lado. Ele não aceita esses tipos de raiva e pensa que isso não é coisa de profissional. Vai pensar que você é doido, por ter essa raiva. E vai pensar também que você é perigoso para as vontades e os poderes dele na eleição. Vai ver que ele até já está mandando um cabra lhe apagar. Ninguém vai pensar que foi ele. Todo mundo sabe na boca pequena que você trabalha pra ele. E ele vai até jurar da boca pra fora que vai vingar seu desaparecimento.
Por Deus que não sei até hoje se era eu pensando, ou meu São Severino dos Ramos me aconselhando. O caso é que tomei atenção nas palavras e resolvi incontinente desviar o caminho. Em vez de ir para casa rumei para Alagoas com intenção de ir mais longe ainda, lá pras bandas de Goiás ou Mato Grosso. Viajei toda noite, descansei um pouquinho, tomei um café reforçado num arruado do caminho, negociei uma troca de cavalo e segui sem almoço nem descanso até anoitecer. Viajei toda a noite e, na mesma pisada, mais dois dias, até que cheguei numa cidadezinha onde morava um português arretado compadre meu. Lá descansei, fiquei escondido, conversei com meu compadre sobre o acontecido. O compadre era bom, amigão pra peste. Ademais de me esconder, me dar roupas e o que de comer, escreveu uma carta para um amigo dele, poderoso comerciante de uma cidade até grandezinha de Goiás.
Esse meu compadre até inventou disfarçar que eu tinha morrido por conta de uns ladrões em um tiroteio. Que chegaram a matar meu cavalo. E a danada da montaria foi-se na estória. E meu compadre chegou a fazer meu enterro sem abrir o caixão numa cova com meu nome no cemitério.
E foi mais longe ainda. Na madrugada que eu ia partir chegou junto de mim, me abraçou e disse:
- Compadre, tu tens que mudar de nome. O Coronel é capaz de espichar as garras até onde chegar um Quelemente em Goiás vindo das bandas do Norte. Não peças para te dizer como consegui. Aqui está tua nova carteira de identidade. Tu agora te chamas Teodoro dos Santos. E está aqui também um pouco de dinheiro que tu me pagas quando puderes.
E me deu a carteira e um dinheirão demais da conta.



6. O Viver Novo

Viajei muitos dias e cheguei na cidade do amigo de meu compadre lá em Goiás.
Lá minha vida tomou novo rumo graças a minha nova devoção, Nossa Senhora da Abadia, e ao meu acostumado São Severino dos Ramos.
Trabalhei como um desgraçado para o amigo de meu compadre. Não enjeitava serviço nem hora de trabalhar. Mesmo nas festas em que o povo brincava por alguns dias.
Então agarrei confiança desse camarada que andava muito pra lá e pra cá fazendo política, vendendo pedra pra Brasília e até para os estrangeiros. Também ele ia muito a Goiânia e precisava de um cabra de confiança pra tomar conta da loja de vender material de construção. E me deixou encarregado da loja.
A cidade estava crescendo muito com turismo e outras coisas que atraiam muita gente não só para conhecer seus casarios e suas cachoeiras, mas também para viver, passar fim de semana e fazer Pousadas. Então tome a construir e a construir.
O negócio era bom e eu aprendi direitinho a mexer com ele.
Com muito esforço, completei meus estudos, que eram os de um semi-analfabeto. Passei a ler tudo que caia em minhas mãos. Também aprendi a dominar as contas. Passei a saber onde e o que comprar barato e como vender caro. E principalmente a conhecer a quem podia vender fiado.
Com as novas atividades meus tratos e meu pensar mudaram muito. Fiquei bem diferente do meu tempo de cangaço.



7. Os Sonhos de Pesadelo

Já com pensamento mudando e sendo cada vez mais bem considerado pela gente da cidade, de repente comecei a ter uns sonhos misturados com pesadelos.
Sonhei uma vez que estava andando a cavalo por uma mistura de cerrado goiano e caatinga nordestina. Tinha pés de Jatobá, Pau-mulata, Ipê, Bacupari, Pacari, Pau-terra, Embiruçu, Baru, Pequi e Guatambu entreverados com pés de Caroá, Juá, Jurema, Umbu, Macambira, Xique-xique, Mororó, Avelós, Gravatá e Mandacaru.
Tinha muitos mais outros pés de planta grandes e pequenos das minhas duas terras, e também se ouvia o canto soturno dos pássaros noturnos das duas bandas.
E aí, vi uma procissão assustadora. Uns 26 homens cobertos com lençóis e capuzes brancos e luzentes caminhando na direção de um enorme pé de jatobá que filtrava a luz da lua cheia com sombras e luzes mortiças. Lá debaixo do jatobá secular um número de covas igual ao dos fantasmas de lençol.
E no vão de uma forquilha de troncos grossos e retorcidos do jatobá, a figura de uma mulher flutuando mais reluzente que os peregrinos.
As imagens que eu via eram confusas e se misturavam com pensamentos de velhas lembranças, ansiedade, medo e curiosidade.



Na segunda vez, sonhei com a mesma cena, já sabendo que aquelas figuras procuravam me dizer alguma coisa.
Aí me lembrei assustado das 25 marcas que fiz na coronha do meu Papo Amarelo. Um para cada apagamento. Mas com essa inesperada lembrança me perguntei quem seria a vigésima sexta figura da procissão. E fiquei também ansioso para saber quem era aquela mulher e o que fazia ali.
E os vultos envoltos nos lençóis emitiam luzes como vaga-lumes gigantes. E a mulher brilhava mais que eles e ainda tinha uma coroa luminosa acima da cabeça. E os homens murmuravam o que pareciam ser orações em voz baixa.
Na terceira vez, a cena se repetiu e foi se modificando, voltando-se para meu lado. Tive a certeza que era eu a razão daquela cerimônia esquisita. Ficaram me olhando, e eu ficava mais em cima, como se eu tivesse flutuando. E a senhora luminosa ficava no mais alto. Aí eu vi os rostos dos peregrinos. Eram os das minhas marcas no Papo Amarelo. Menos um que logo reconheci ser o advogado que não apaguei pra poder fugir das garras do Coronel Tonho dos Limoeiros. Todos sorriam aquele riso de felicidade dos anjos. Não abriam a boca, mas eu ouvia como se estivessem falando pelos meus pensamentos.
- Você nos salvou mediante o apagamento de nossas vidas. Nós não ficamos com raiva de você como vocês vivos imaginam que os assassinados ficam com seus matadores. Até lhe agradecemos porque mediante seu ato, com a intermediação de São Severino dos Ramos e a autorização de Deus, ganhamos a Felicidade Eterna. Mas Deus escreve certo por linhas tortas. Você pecou mortalmente mesmo. Mesmo com a promessa de Deus para salvar nossas almas, como de fato aconteceu. Mas, sua alma está condenada, a não ser que você se arrependa e faça penitência. Vá se confessar com um padre e, fazer uma outra penitência além da indicada no perdão sacramentado. Essa outra penitência é a de contratar três violeiros para rezar cantando o Rosário acompanhado por você e muitos outros desta cidade. E também soltar 25 rojões, com o cuidado de não deixar pegar fogo no mato. Tudo isto durante dez anos na lua do mês de julho, no morro mais alto deste Estado de Goiás.
- E, se mal pergunto, o que faz aqui esta luminosa senhora?
- Ela é mãe de Deus que vem para nos apoiar e ratificar a posição de seu Filho como Medianeira que é dos pecadores, como você.
- E porque este advogado está aí com vocês? Eu imaginava que continuava um político influente vivendo lá no latifúndio dele em aliança com o Coronel Tonho dos Limoeiros.
- A aliança do PSD com a UDN acabou. O conflito do avanço de cerca do Coronel se reacendeu. E ainda mais, o advogado se apaixonou por uma linda filha do Coronel. O Coronel soube do namorico, e com o desespero de esse namorico ser correspondido por gente de seu sangue, subiu na ladeira do ódio. E resolveu pessoalmente tomar satisfação. Houve um tiroteio e morreram os dois. Mas a alma do advogado fez questão de vir lhe dar apoio, porque soube depois no céu que você queria salvar a alma dele. E essa salvação prometida por Deus funcionou, mediante a intervenção que você havia pedido a São Severino dos Ramos. E ainda soube da influencia da imagem da irmã dele na sua alma que vem pra bem de todos.



9. O cumprimento das Promessas

Lembrei de meus pensamentos de como não existe só o bem ou só o mal. Eles andam juntos com a gente, e um vale mais que o outro conforme o caso. Conforme a natureza e o uso da vontade de cada pessoa. Depende de nós mesmo. Entendi a minha culpa apesar de ter defendido a salvação dos 26 Santos Apagados que brilham lá no Céu.
O mais rápido que pude me confessei e cumpri a penitência dada pelo padre. Não disse pra ele que com meus pecados de apagamento eu tinha defendido a salvação dos 26 apagados. Achei que ia complicar e talvez ele não fosse entender as vontades de Deus. Não era obrigado a revelar minha devoção com São Severino dos Ramos e a autorização que recebi de Deus.
Falei com meu patrão sobre como fazer a promessa do morro porque ainda sou considerado estrangeiro nesta terra.
Não contei tudo. Apenas disse que tinha que fazer aquela promessa no meio de uma festa que já era tradicional na lua de julho naquele morro.
O patrão me tranqüilizou. Disse que eu falasse sobre minha promessa com os organizadores da parte religiosa da festa.
Não precisava dizer para que.
E não seria indagado da finalidade.
E ainda que cumprisse discretamente, sem se amostrar.
Pedisse aos encarregados para organizar o ato. Era pagar, se fosse preciso, os violeiros convocados para participar da parte religiosa da promessa. E depois era só comprar e soltar os 25 rojões.
E assim, venho fazendo ano após ano. E com um cuidado muito grande para não pegar fogo naquele mato sagrado.



10. A Felicidade Secreta

Casei-me com uma morena muito bonita e boa de um tudo, filha até de uma família tradicional do lugar. Eu gosto muito dela, demais da conta, como diz o povo daqui.
Mas algumas vezes quando faço amor com ela, não posso evitar ver passar, em breve relance no tesão do ato, a imagem que guardo da irmã do advogado que estava marcado para morrer. É só um relance. Não prejudica nadica a força da gostosura de minha mulher, nem meu tesão por ela.
Mas, muito mais vezes, quando fico a olhar a lua nascendo atrás da serra, também me lembro dela e por muito mais tempo. Porem aí a coisa é com uma ternura sem nenhum tesão de chamego. Aprecio rindo aquele sorriso bonito, aquela mão estendida pra mim, aquela indicação esperançosa de meu novo caminho. É tudo cheio de luz, paz e de alegria que toma conta de mim.
Aí, fico pensando, imaginando:
- Esta moça só existe na minha cabeça.
O que a gente pensa ser realidade na verdade é muito mais coisa própria do pensamento da gente. E não das coisas mesmo, em toda sua realidade, que a gente acredita que esta percebendo. E fica na memória, de modo vivo, aquela imagem do que a gente pensa que viu. Fica crescendo ou minguando. A cabeça da gente não vê a diferença de tempo entre o que já está nela vivo e bulindo, e aquilo que a gente ouve, vê e vive a cada instante.

A verdadeira irmã do advogado já deve estar entrada nos anos, bochuda, despelancada e cheia de filhos já grandes. Até com netos. Muito diferente da moça que se fincou e cresceu no meu pensamento.
Esta moça que tenho só pode ser uma criação de alguma coisa que já tinha na minha cabeça, estimulada e configurada por aquela imagem que eu vi e ouvi de um jeito só meu naqueles dias. E muito bem pode ser também empurrada por alguma mensagem divina enviada pra minha cabeça, mensagem surpresa que não foi pedida, como nesses telefones modernos.
E esta moça do meu pensamento foi ficando cada vez menos uma moça desfrutável e cada vez mais uma santa na minha devoção maluca. Também a calentura da gente vai passando com o tempo. Nos meus oitenta de macho continuado a minha calentura atende as necessidades minhas e de minha mulher. Foi-se o tempo que sobrava para as meninas nessa cidade cheia de mulher bonita.
E aí fico pensando na minha sorte. E não sei se foi somente proteção de São Severino dos Ramos e de Nossa Senhora da Abadia, ou se foi também um adjutório poderoso e misterioso desta santa moça que, num remanso de delírio consciente e secreto, cresce na minha cabeça. Ela está cada vez mais bonita. De uma lindura de santa, com luz saindo do corpo e de uma coroa prateada, e aquelas duas mãos preciosas: uma que me dá força, e a outra que me orienta. E eu confio e me fio cada vez mais nessa moça santa da minha cabeça.

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