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Contos-->Insanidade -- 13/04/2010 - 07:26 (Aléxis Rodrigues de Almeida) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Insanidade

Leonardo acordou completamente atordoado. A noite mal dormida o deixou acabado. Ficara rolando na cama durante horas antes de finalmente se entregar ao sono. Procurara em vão afastar a lembrança daquela maldita reunião.

Pela manhã, as imagens que passeavam por sua mente eram como extensão dos pesadelos que lhe ocorreram nos breves momentos em que conseguira dormir durante aquela noite.

Tomou banho, vestiu-se, tomou café e saiu. Foi a pé mesmo, afinal a empresa onde trabalhava ficava apenas a duas quadras de sua casa. No caminho, um sentimento de culpa continuava a lhe martelar impiedosamente a consciência.

Continuou afundando em pensamentos cada vez mais densos. O peso nos ombros aumentava proporcionalmente. A cabeça estava a ponto explodir.

O dia estava frio e chuvoso. O céu, coberto de nuvens, parecia compartilhar a tristeza que dominava a alma de Leonardo.

***

Eleonora acabara de acordar. Olhou desolada para o lado vazio da cama e prendeu-se à mesma cadeia de conjecturas que vinha lhe atormentando as manhãs ao longo dos últimos meses. Precisava fazer algo. Não poderia continuar vivendo daquele jeito.

O marido saíra cedo outra vez. Não sabia mais o que fazer. Não conseguia entender porque ele agia de forma tão estranha. A idéia de outra mulher já não ocupava sua atenção. Certamente o problema não era esse. Não podia mais adiar a procura por ajuda médica.

***

Ali perto, em uma rua agitada do bairro, em seu consultório, o doutor Vicente se preparava para iniciar mais um dia de trabalho.

Folheou a agenda preparada por uma de suas atendentes. Os nomes já eram conhecidos, exceto pela paciente da primeira consulta: Eleonora dos Santos Gusmão. Havia já algum tempo que não recebia um novo paciente em seu consultório. Sua agenda, uma das mais ocupadas da cidade, era inteiramente preenchida por um grupo cativo. Algumas daquelas pessoas jamais seriam "curadas", mas nem de perto cogitavam a possibilidade de abandonar o "divã" do doutor Vicente.

De alguma forma aquela mulher conseguira um espaço em sua agenda e isso foi suficiente para aguçar sua curiosidade e mergulhá-lo em profundos devaneios. Estava assim ensimesmado quando foi surpreendido por leves batidas de porta. Era sua atendente. Estava parada à porta tentando disfarçar o ar de riso por encontrá-lo mais uma vez com a cabeça nas nuvens. O médico já estava acostumado com o impacto que seu comportamento pouco convencional causava nas pessoas e se divertia só em pensar no quanto a atendente e suas colegas falavam dele pelas costas.

Vicente era um homem de uns sessenta anos de idade, alto e magro. Estampava em seu rosto um sorriso amigável, que o tornava uma pessoa muito simpática.

- Doutor Vicente, dona Eleonora está aqui. Posso mandá-la entrar?

- Sim, sim. Claro.

Momentos depois entrou na sala uma mulher de meia idade esboçando um leve sorriso em um cordial cumprimento de bom dia. Apesar do sorriso, trazia uma fisionomia abatida.

- Bom dia, dona Eleonora. Por favor, sente-se aqui nesta cadeira. - Falou o médico enquanto apontava para o assento à frente de sua mesa.

- Obrigada, doutor Vicente.

- Diga-me, dona Eleonora, como posso ajudá-la?

- Na verdade, doutor Vicente, procuro ajuda para outra pessoa. Trata-se do meu marido.

- E eu posso saber por que ele não está aqui com a senhora? – Tentando não parecer rude com a pergunta.

- Doutor Vicente, o Leonardo não sabe que estou aqui. Já lhe pedi várias vezes que procurasse ajuda especializada, mas ele não me ouve.

- E o que a faz pensar que seu marido precisa tanto assim de ajuda?

- Leonardo perdeu o emprego há alguns meses e desde então mudou completamente. Vive andando pelos cantos da casa, calado. Acredita ser o diretor de uma grande multinacional e que está sempre em reuniões. Muitas vezes já o surpreendi falando sozinho. Todas as manhãs ele veste o seu melhor paletó e sai de casa dizendo ir para o trabalho. Um dia eu o segui e vi uma cena deplorável.

Vicente percebeu lágrimas em seus olhos.

- Por favor, continue, dona Eleonora. Diga o que a senhora viu.

- Ele estava sentado na pracinha do bairro, perto de casa, alimentando os pombos e falando com os bichos como se estivesse falando com gente. Dava a palavra a um, gritava com outro, elogiava, passava instruções... Aí eu entendi tudo. Ele acreditava estar no meio de uma reunião de trabalho. Na verdade ele estava conversando com... com...

Eleonora não conseguiu terminar a frase. Chorava como uma criança.

- Dona Eleonora, fique calma. Eu posso ajudar a senhora e seu marido, mas ele deve vir conversar comigo.

- Está bem, doutor Vicente, prometo tentar convencê-lo a vir comigo na próxima consulta.

- Diga-me, dona Eleonora, qual o nome completo do seu marido e onde ele trabalhava?

- O seu nome é Leonardo de Souza Gusmão e ele trabalhava no Banco Internacional... Mas por que o senhor quer saber essas coisas?

- Vão ajudar-me a me preparar para a nossa próxima conversa.

Depois disso, Eleonora se despediu, deixando o doutor Vicente ainda mais pensativo.

Mais uma semana se passou e Eleonora voltou ao consultório do doutor Vicente, novamente sozinha. Tentou explicar porque o marido não a acompanhara.

- Ele simplesmente se recusou a vir, doutor. Eu até que insisti, mas ele não quis nem discutir o assunto.

O doutor Vicente ficou em silencio por alguns instantes, olhando para os papéis em sua mesa. Em seguida voltou a olhar para a aflita mulher à sua frente.

- Dona Eleonora, como é mesmo o nome do seu marido?

- Leonardo... Leonardo de Souza Gusmão.

- Há quanto tempo a senhora é casada com o senhor Leonardo?

- Somos casados há vinte e cinco anos.

- E quanto tempo ele trabalhou no.... Banco Internacional? - Perguntou o médico enquanto consultava a ficha à sua frente.

- Ele trabalhou lá durante vinte e dois anos.

- Dona Eleonora, não quero aborrecê-la, mas andei fazendo algumas pesquisas e não gostei muito do resultado.

- Do que o senhor está falando? Não estou entendendo.

- Vou lhe explicar tudo. Para começar, saiba que pretendo lhe ajudar no que for necessário.

- Eu sabia que podia contar com o senhor...

- A verdade é que alguns tipos de perturbação psíquica nos levam a fantasiar certos ângulos da nossa vida. Não é uma fantasia simples, como aquelas que criamos ao sonhar acordados e que logo se desfazem. Estou falando de um tipo de fantasia que se apossa da nossa mente e nos faz acreditar firmemente que se trata da mais pura verdade. Em alguns momentos tratamos com pessoas reais em situações perfeitamente normais. No instante seguinte podemos interagir com personagens criados por nossa própria mente.

- Doutor Vicente, o senhor descreveu precisamente a situação. É exatamente isso que está acontecendo com o meu Leonardo.

- Dona Eleonora, nós procuramos por toda a cidade e não encontramos nenhuma empresa chamada Banco Internacional.

- Mas não é possível. Eu conheço a empresa. É uma grande multinacional. Já estive lá. Conheço também os ex-colegas do meu marido. Várias vezes eles foram nos visitar... Já sei, foi o Leonardo que veio aqui, não foi? Ele inventou todas essas coisas...

- Nós também conversamos com seus vizinhos, os quais afirmaram não existir nenhum Leonardo ali por perto. Conforme pudemos apurar, a senhora nem mesmo é casada.

Diante da perplexidade de Eleonora, Vicente prosseguiu.

- Escute com atenção, dona Eleonora. Eu acredito que tudo isso que a senhora me contou só existe aí dentro de sua cabeça, e eu quero muito ajudá-la.

Eleonora estava inconformada. Não podia acreditar no que estava ouvindo.

- Isso é impossível, doutor. Pra mim tudo é tão real. Todos os dias eu converso com Leonardo. Apesar dos problemas, nós nos amamos muito. O senhor pode conversar com nossos filhos.

Novamente o doutor Vicente parou, enquanto encarava sua interlocutora. Sabia o quanto seria difícil para ela aceitar tudo isso. Já vira a mesma cena diversas vezes.

- Sinto muito, mas nós verificamos isso também. Segundo os vizinhos, a senhora não tem filhos. Mora sozinha há vários anos naquela casa. Sei que isso é um grande choque para a senhora. Não é fácil descobrir em poucos minutos que toda a nossa vida na verdade não existe. Que tudo não passa de um sonho.

Doutor Vicente foi interrompido por alguém que o chamava insistentemente.

- Doutor Vicente... doutor Vicente...

***

Na grande sala do hospital psiquiátrico estadual, o médico, rodeado de estagiários, tentava despertar um paciente do seu estado de transe.

- Doutor Vicente... doutor Vicente... Hora do seu remédio.

Voltando-se para seus alunos, o médico falou:

- Vocês estão diante de uma pessoa muito importante. Um grande nome da psiquiatria. O pobre homem ficou completamente louco enquanto desenvolvia sua última tese. Além da carga excessiva de trabalho, ele foi submetido a duras pressões emocionais. Seu pai adoeceu gravemente, trazendo dor e muita dificuldade financeira para sua mãe e irmãos. Logo em seguida, seu irmão mais velho, que passou a sustentar a família após a doença do pai, perdeu o emprego, deixando a família completamente abandonada. Sua jovem esposa, não suportando os longos períodos de reclusão do marido, saiu de casa, deixando-o totalmente entregue à solidão.

Um dos alunos perguntou:

E sobre o que era a sua tese? Por que se tornou tão importante?

A sua tese era sobre vidas paralelas. Ele afirmava que todos nós vivemos nossa própria realidade. Segundo sua teoria, todos nós criamos nosso próprio mundo e nos inserimos nele da forma que nos convém.

Outro estagiário quis saber:

- Como isso é possível, professor? Tudo aqui em volta é tão real. Podemos sentir os cheiros, tocar e sentir os objetos; estamos compartilhando as mesmas experiências...

- Meu caro jovem, junto-me a você e a muitos outros nesse coro de céticos, mas me diga sinceramente: você pode realmente garantir que tudo que está à nossa volta não é apenas fruto da imaginação? Será que não são coisas que só existem na minha mente, na sua ou mesmo na mente de um dos seus colegas?

O rapaz ficou pensando nas conseqüências da aplicação daquela teoria.

O médico, olhando agora para o paciente que o fitava de um modo estranho, deu-lhe o medicamento e já se preparava para continuar sua visita quando percebeu que ele queria lhe falar.

Na face normalmente impassível do velho médico era possível perceber leves contrações. Seus olhos se abriram mostrando toda a perturbação que lhe dominava a alma. Seus lábios se moveram apenas o suficiente para balbuciarem poucas palavras:

- Insanos... insanos... Todos somos insanos, meu caro amigo.


FIM
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