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cronicas-->FRUTO DO AMOR -- 26/08/2006 - 14:38 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 39ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem uma sequência, na intenção de uma crónica de viagem contínua...)




39
FRUTO DO AMOR

Acordei tarde naquele domingo de sombras e ventos atravessados.

Deixara uma nota para o intrépido Vicente não acordar-me às 6.30 como era seu costume, para ir ao banho de mar. Ele odeia o sol. Garante que envelhece e provoca càncer. "No Caribe o sol envolve a todos por igual, não há porque buscá-lo." Meu olho recusava-se a abrir à claridade difusa da manhã. No dia anterior assistira a três filmes de um festival internacional, em sessões seguidas. Cada um mais chato do que o outro!
Uma companheira de trabalho, mais intelectualizada, olhou-me, ao final da última projeção, com certa perplexidade e rompeu o silêncio:

- Mira Ud. que a mi sí me gustó - opinou como que desculpando-se. Mudei de assunto antes que viéssemos a afundar num diálogo impossível.

Eu assistira ao pseudodrama, com um olho aberto e o outro dormindo. Ela deve ter gostado da metade que não assisti.

Da cama passei para o sofá da sala e afundei. Os olhos queriam sair das órbitas. Das proximidades chegavam latidos de cães domésticos e ruídos de carros esquentando os motores. Logo ouvi a voz de Judith chamando-me da varanda. Quis fingir-me de morto. E estava meio-morto, entorpecido mas logo reagi. Ela certamente acabaria descobrindo-me pela janela.

Não estava surpreso com a aparição. Afinal, Judith já estava como que condicionada à idéia de passar pelo meu apartamento todos os domingos à mesma hora, a caminho da mesma praia, pelo mesmo percurso. E não é de guardar rancores. Dá sempre a volta por cima, depois de suas mancadas, que são frequentes.

E é insistente, desinibida.

Quando convida - com uma programação só sua, em que não cabem sugestões - nem espera resposta, certa de que está sendo generosa e altruísta ... "Compartilhar" é a palavra com que ela define o companheirismo em que as pessoas vão ver o filme que ela quer, ao lugar que ela deseja, pelo tempo que ela mesma determina. E se a gente não gosta do filme que ela escolheu, então acaba amargurada, pensando que a gente quis, em verdade, expressar que não gosta dela.

(Numa dessas manhãs domingueiras acabamos em um concerto de estudantes de música em que estavam programadas as tais peças barrocas de sua predileção. Quando eu confessei, com certo cuidado, que era uma interpretação muito simplória de composições igualmente singelas, próprias para estudantes, quis expressar também a minha insatisfação por não ter sido consultado sobre o programa. Respondeu que eu era exigente demais, que havia sido convidado e que era, além de tudo, grátis. Não havia porque reclamar ... )

Nem cheguei a tomar café. Queria apresentar-me ao filho Sill, que viera do Delaware para o Thanksgiving Day. Em cima de um corpo volumoso e flatulento aprumava-se uma cabeça redonda e simpática. Senti a aspereza de uma casca de árvore no aperto de mãos. Cabelos castanhos anelados e os olhos escuros. Falava um inglês quase ininteligível para mim, dificultado por uma espécie de gaguice que deixava angustiados os demais, mas ele falava o tempo todo com a mãe e com a doce Natasha, como que para compensar o tempo de reclusão no internato. Cativante, sociável. Com dezoito anos, tem as reações e manias de um jovem de seus quinze anos. Na praia verifiquei que as mãos estavam descascadas e que umas perebas rosadas se alastravam pelos sovacos, pelos joelhos, cotovelos e, certamente, entre as pernas.

A gaguice era a mesma da Judith quando fica nervosa ou tensa, mas nele era permanente. Era o fruto do amor com o colombiano, de sua fase de voluntária dos Corpos de Paz.

Sorte do garoto ter ido de volta para os Estados Unidos e de ter uma avó com recursos para pagar-lhe uma escola especial. Em Porto Rico era um desajustado, vivia mudando de escola e a mãe parecia - conforme o testemunho dos colegas de trabalho - uma zumbi nos momentos de crise.
Negava-se a aprender espanhol e não tinha rendimento escolar suficiente para frequentar escolas bilingues e mais sofisticadas.

Ao contrário do dia em que estivera lá com Leila, na semana anterior, a praia de Ocean Park estava calma e logo o sol abriu-se com intensidade. Os mergulhos reanimaram o meu corpo e venceram a sonolência e o aburrimiento, aquela sensação de estar na festa errada mas ainda assim à vontade.

Na despedida, Judith tentou comprometer-me com outras programações futuras e, como de costume, foi-se sem ouvir meu manifesto, certa de que estava praticando uma política de boa vizinhança e compartilhando, que é a sua maneira peculiar de fazer amizade sem mudar seus costumes.


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Próxima crónica da série: (40) NO PRESENTE A MENTE O CORPO É DIFERENTE



Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.


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