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Contos-->O besouro no jardim das margaridas -- 10/05/2010 - 18:06 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O mundo decadente no qual ele vivia nunca tinha conseguido lhe invadir a alma, sequer a soleira da porta. Se o turbilhão era inevitável no dia-a-dia da profissão que escolhera desde muito cedo, o que existia dentro dele era quase uma paz de gotas de orvalho no domingo de manhã. Sozinho no quarto, janela meio aberta, via a luz do sol entrar e criar uma faixa amarela na parede do fundo, deixando atrás dela um rastro de poeira brilhante. Poeira de restos de pele, como ele sabia bem. Um pouco dele em pó flutuando sobre a cama. Dez da manhã, o barulho de buzinas, motores e bocas insistia que o descanso já dera. Quatro horas e pouquinho de sono. Chegou do plantão perto das cinco, bebeu uma xícara de leite quente e não teve dificuldades em cair no sono. Sonhou com as flores, margaridas, do jardim da meninice dele. Apesar de escrever o diário das agruras alheias, dia após dia, dentro dele havia um jardim de margaridas. Um escrivão que florescia na alma.
Quem é de cuidar de plantas sabe que elas são de lua. Além de se conservar o direito de ter gostos sempre muito particulares quanto à água– mais água, menos água, água em borrifos, água gotejando, água de regador, água no pratinho, água mais fresca, água mais para morna – cada folhinha ainda muda de vontades do dia para a noite, e não é difícil que morram umas e outras árvores, que uns arbustos sequem, por melindre, por birra de quem não teve seus desejos secretos descobertos pelo jardineiro. Quem cuida de plantas deve ser, antes, um psicólogo dos melhores.
Não tinha dificuldades com as margaridas que viviam dentro dele. Nunca fizeram exigências para florir e sempre se mantiveram em flor sem que ele precisasse fazer o que fosse de diferente. Todos os dias, sentava-se atrás da mesinha de cerejeira - melhor seria se anotado ficasse que a mesa era mesmo de um aglomerado sem qualidade, mas parecia cerejeira – e abria os ouvidos para as mais lastimosas desgraças. Ninguém que naquela sala estivesse tinha tempo ou disposição para denunciar a falsidade da cerejeira do tampo ou para perceber que não havia flores em vasos pela saleta; nem de plástico, do tipo que não morre. Quem sentava em frente àquele duro confessionário, olhava com os olhos de fora para um ponto qualquer na parede atrás dele, como se buscasse um raiozinho de sol ou algum pó da pele da memória do acontecido; os olhos de dentro, esses buscavam no fundo de cada um as razões das desgraças que estavam a narrar. Escrivão de polícia, como quem lida com plantas, deve ser, antes, um psicólogo dos melhores.
Minha mãe não estava em casa quando o ladrão pulou o muro...não vi de onde veio a batida...quando dei por mim o cachorro já estava por cima do menino...segurei a garrafa e joguei nele porque eu fiquei com medo de ser morta...o tiro pegou de raspão nela...era um moleque de uns doze anos e tinha os olhos cheios de sangue...o telefone tocou outra vez...o soldado já me perguntou isso e eu disse que não era da conta dele... não foi assim que eu contei...era mais para um barulho de estaca batendo terra...o sinal abriu e eu passei...eram mais de dois...fiquei com tanto medo que não decorei a placa... se eu pego esse corno de jeito... nunca pensei que isso ia acontecer comigo...era só para o meu uso pessoal...aí eu vi um clarão...ouvi um estrondo...ele já estava até frio de tão morto.
Ouvia história de gente que morreu, gente que matou, gente que sumiu, gente que procura e de todos os outros tipos de gente que catalogou em sua mente ao longo de quase quinze anos de máquina de escrever e mais uns oito de computador. Por algum motivo, nunca teve emoção diferente de um estado compassivo que achava caber a um conselheiro ou padre. Além da compaixão, nada sentiu, nunca, encaixado naquela cadeira de estofamento verde escuro no qual é possível, na hora do cafezinho, adivinhar o contorno do corpo de escrivão registrado, baixo relevo, num tom mais desbotado do mesmo verde. As nuances de cor da cadeira ocupam um espectro muito maior do que as poucas expressões do rosto dele ao registrar tragédias várias em papel oficial. Apenas compaixão indistinta, desligada da emoção do contador da história da vez. Compaixão sem paixão.
Agora, deitado com o nariz para cima, ele tenta pegar a luz do sol que sobrevoa a sua cama, alguns centímetros acima da extensão de seu braço esticado. A tentativa provoca um movimento caótico das partículas de poeira humana destacadas pelo brilho solar. Um rodamoinho de pequenos escrivães que fogem da mão dele. Dez e pouco. As buzinas aumentaram. Inútil ficar na cama.
Um saci consegue morar no rodamoinho. Se ele rodar pelo quintal de casa, muitos fatos estranhos podem ocorrer. Coisas podem sumir, calafrios subir na espinha, galinhas cair dura. Não há sacis hoje em dia. Mas os rodamoinhos continuam a girar, mesmo no centro da cidade. Talvez por isso, muita gente pense que pode culpar os negrinhos de uma perna só, as mulas-sem-cabeça, as cucas pelos erros que comete. Sempre parece haver uma força estranha capaz de embaralhar, como ciclone, o arranjo já instável da vida de todos. Seja saci ou deus. Importante é ser estranha e externa essa força, para que figure, delatada nos termos, como a responsável pelos desatinos que muitos cometem. Na hora do juízo final, o culpado é sempre o acaso, ao menos o acaso.
Por acaso, ele já tinha anotado no papel, que com tudo é conivente, os mais incríveis motes para crimes simples e também para os intrincados. Houve gente já capaz de descansar sua carga nas costas de personagens da história, como a mulher que cortou a garganta do marido porque ouviu uma voz, com sotaque português, a ordenar a execução. Ninguém menos que Dom Sebastião, revolto de Alcácer-Quibir, cortando cabeças na periferia dos recantos tropicais. Outro, mais moderno, enfiou uma tesoura no estômago do irmão. Era um estilista famoso, pós-óbito, quem lhe assessorava.
Se não se sentia demovido pelas dores de seus “clientes”, pouco ria dos anunciados destinadores. Que diferença faz? Matar em nome de uma alucinação, matar em plena vontade, matar sem querer? Tudo é morte. Como morte é tudo que vive. De flores a presidentes. Se vivos se encontram, é muito mais por uma suspensão temporária do permanente estado de morte do que por qualquer prêmio ou dádiva. Morrer é que é natural. A vida é uma exceção, ela sim, um acaso. Por isso, mesmo enquanto mistura o leite em pó no leite de saquinho, rodamoinho feito com a colher enfiada e em giro na caneca de alumínio, e relembra as histórias que ouviu na madrugada, não se sente menos ou mais vivo. É apenas a vida, é apenas a morte.
Hoje não precisa trabalhar. Por mais umas dezoito horas, não dará as caras na delegacia. Pode se dedicar a outros assuntos que não sejam as vidas alheias. Pode cuidar da própria vida, sentar, fazer planos, executar planos, mudar planos, cancelar planos. Poderia. Não pretende. Tem casa, tem carro, tem alguma saudade de estimação de pessoas que viveram com ele naquele mesmo espaço, mas que se foram como todas se vão sempre. Não precisa cuidar da própria vida, ela se cuida sozinha, margarida ela também. Faz tempo que o escrivão entendeu que a vida é apenas um fio que se desfia por conta. Mesmo que não se queira, mesmo que se queira diferente. Para que cuidar da própria vida, então? Deixar o fio se fiar de fato. É o único fato.
Às vezes, se o corpo está bom, ele sai de casa para caminhar pelas ruas apertadas do centro. Não traça rumo, não pensa em comprar nada, nem vender. Apenas anda e acredita que essa é a melhor maneira de nunca culpar o acaso sobre as decisões que toma. Só decidir o que de fato faz diferença: levantar o corpo da cama, caminhar, comer, beber, cumprir o horário de trabalho. No mais, não decidia nada. Aceitava o acaso. Assim, o acaso, na vida do escrivão, nunca era por acaso, porque quando se espera o inesperado, é possível dizer que o inesperado tem vida? Ele achava que não.
Hoje é um bom dia para andar sem rumo. Pessoas passarão por ele no calçadão. Ele não passará por ninguém, apenas andará, pé depois de pé, a caminho de lugar nenhum. Não é essa a melhor maneira de não se perder nunca?
As ruas do centro são sempre ruas do centro. Há tanto em comum entre essas regiões, todas elas normalmente nascidas ao mesmo tempo em que suas respectivas cidades, que é possível encontrar cantos e tipos em uma que poderiam confortavelmente existir em outras. O que o centro tem de peculiar parece ser peculiar em todos os centros. Barracas de camelôs, anúncios de compra e venda de ouro, balcões ambulantes de empregos, bancas de frutas exóticas e ervas misteriosas, malabares, lojas de roupa de gosto e padrão questionáveis, sebos de livros e também de discos de vinil. Tudo isso muito mal instalado em calçadas sujas ou calçadões esburacados. Ainda assim, todo centro é talvez charmoso e há algo de aventureiro em almoçar um prato-feito no balcão de uma lanchonete chamada “Jesus me Chama” ou – impensável? – “Jeremias sem Chorar”.
O escrivão conhecia o centrão como lia a alma humana. Sabia até qual era o muambeiro mais confiável entre os milhares que se apinhavam na Rua Principal. Acompanhara algumas diligências de investigadores, algo que fazia com certa cisma. Não precisava desse tipo de demonstração pública para se saber homem da lei. O dever cumprido em sua sala era, e por que não seria?, suficiente para que ele se visse como deveria mesmo se ver: um servidor da polícia civil como qualquer um de seus colegas investigadores ou delegados. Seu papel, registre-se, contava com a fé-pública. E também utilidade. Como haveria justiça sem que os termos estivessem capturados pela sensibilidade de um escrivão? É esse o papel mais nobre e valioso de seu ofício. Entregar ao sistema a base de todas as outras peças que porventura venham a existir. A justiça começa no teclado do escrivão.
Ou a injustiça. E era isso que ele não aceitava no jeito sem-jeito dos investigadores. Sem-jeito e sem-justificativa. Excesso de força, coisa para impressionar periguetes no calçadão. Quando abordava os barraqueiros nas diligências, sabia muito bem quem merecia um cano na cara e quem se intimidava apenas com um olhar. Enquanto tentava ler cada elemento da cena, os de colete e Rayban já tinham metido o pé em tudo e em todos, não se sabia mais o que era relógio, o que era DVD, o que era capa de celular. Tudo evidência contaminada e energia perdida. Com estratégia, conseguia o mesmo resultado, sem confusão. Ganhou a admiração de camelôs e o olho desconfiado das viaturas.
Andando pelas barracas, o escrivão não vê dilema em separar sua vida à paisana dos dias oficiais. Devolve o cumprimento de cada trabalhador de rua com um aceno de cabeça. Já ouviu de todos eles alguma história mais ou menos falsa. De certa maneira, é, de fato, considerado por muitos do bairro uma espécie de confessor. Quantas vezes aqueles homens tiveram o oportunidade de contar uma história, versão própria, para um ser humano verdadeiramente interessado nelas? Tudo bem, havia quem vomitasse apenas aquilo que o detetive mandara, com medo de sofrer com mais uma sessão de pancadaria no quartinho dos fundos do distrito. Mesmo aquele ser coagido, no entanto, sentia um grande alívio ao poder ser ouvido por alguém que não tinha outra intenção que não fosse escrever o que ouvia numa folha de papel.
O escrivão passa pelas barracas e cruza seu olhar com a vergonha, a gratidão, a culpa, o temor, a tristeza e até a alegria de cada um de seus depoentes. São os mesmos olhos que contaram as verdades e as mentiras das queixas, declarações, confissões. Ele sabe, eles sabem, que cada termo registrado na delegacia é apenas um capítulo de um livro que vai ser escrito aos poucos. Vivendo na informalidade, bem perto da margem do que é visto como legal, é certo, preto no branco, que cada um deles ainda vai se sentar à frente do escrivão e ditar a continuação do romance surreal que é a existência deles. E todos têm certo: o escrivão estará lá para ouvir o que eles dirão, mesmo que seja tudo, como de fato tudo é, morte e ficção.
Ele nunca caminhou tanto. Pensando nos rostos que viu pelo centro, acabou ficando bem longe dos rostos e do centro. Duas horas de passadas vigorosas o levaram para um bairro industrial, região barra pesada. Tudo meio cinza, sujo, duro concreto, frio ferro. Cenário escolhido por gente sem emprego e sem escrúpulos para vadiar e barbarizar quando possível. Muitos foram os boletins redigidos por ele sobre as ocorrências vividas por empresários da região. Sequestros, assaltos, vandalismo. Os meliantes ficavam escondidos em becos, nos fundos das fábricas, dentro de carros velhos, ou afundados em valetas sem uso. Mesmo o escrivão sabia que seu jardim de margaridas não deveria ficar por ali muito tempo. Aqui podem ocorrer alguns tipos de imprevistos que o melhor mesmo é prever. Entra na categoria “manutenção das flores e da vida”.
Em vez de dar meia volta - volta e meia esses retornos acabam sendo mais perigosos, pois uns espertos já podem estar de sobreaviso – é melhor contornar a fábrica de desinfetantes e pegar a avenida principal, depois a marginal. Ele segue o instinto enquanto encaixa cada rosto que viu no calçadão no miolo das margaridas do jardim de sua alma. É incrível como aquelas caras tristes ficam bem, envoltas por pétalas. Se gente fosse flor, talvez morresse com mais dignidade e recebesse buquês de gente em seus enterros. Ou talvez fossem de plástico, do tipo que não morre. No jardim do escrivão as flores são capazes de falar, de contar histórias, todas com alguma mentira. Cada mentira contada pelas flores transmuta-se num besouro pequeno que fica sobrevoando a brancura. Às vezes, os besouros cobrem o jardim de um preto metálico e o branco das margaridas desaparece. Isso não dura muito. Os besouros morrem logo e caem no chão, podres e fazem nascer outra flor. As mentiras também são assim. Com o tempo perdem as forças e morrem para virar verdade. Quanto mais morta a mentira, mais verdade ela é.
O escrivão gosta de pensar, de brincar com suas flores no pensamento. É um jeito de se manter sempre no lugar onde quer: o lugar da neutralidade natural do ser humano. É nisso que o escrivão acredita. E está nesse equilíbrio quando vê um vulto leitoso pular de uma das raras árvores daquela viela. É um homem albino, dentes podres, roupas podres, ideias podres. O escrivão reconhece uma de suas flores. É o cara que matou o dono do curtume. Pseudônimo: Alemão. Idade: 47 anos. Mãe: Simônica Aparecida dos Anjos. Pai: desconhecido. Residência: ignorada.
Eu não vou falar pro senhor, não senhor. Eu atirei nele porque eu quis. Eu nem queria de verdade. Mas eu quis depois. Eu não vou mentir pro senhor, não senhor. Eu tinha tomado uns goró. Uns dois ou três que eu lembro. Ele assustou comigo e eu dei dois tirinho. Ou dei três. A mulher dele gritou e eu fiquei com dó de dar um nela também. Fui embora depois. Atirei porque eu quis. Saiu um sangue bem vermelho dele. Igual ao meu. Eu sou branco assim, mas meu sangue é vermelho quem nem ele. É tudo igual. Ele morre também. Não conhecia ele, não senhor. Só ali do bairro mesmo. Mas ele ficou assustado só porque eu pedi uma moeda ou foi comida, não lembro. Eu já falei que eu tinha tomado umas? Umas três ou quatro só com o meu amigo Vanderlei. Vou pra cadeia? De dia ou de noite? Eu nem ligo. Eu fujo. Não, não fujo, não senhor. Achei o revolver numa caçamba. Nunca atiro. Só quando eu quero. E eu quis...
- Ói, moço assustou?
- Não. Eu conheço você...
- Conhece, moço? Então dá um troco aí pra nós?
- Você tá lembrado?
- Lembro não...
- Sou escrivão. Você falou comigo...
- É? Falei que eu ia fugir?
- Falou
- Fugi.
- É. Quer o quê?
- Moço tá com a arma aí?
- Não.
- Ói...eu tô!
Dos trapos do Alemão, apareceu a arma. Ele nem era violento. Nem era bandido. Era doente. Está armado. Não faz diferença. O jardim das margaridas do escrivão está branco como nunca. Nenhum besouro além daquele que veio veloz e certeiro, linha reta, tranquilo, e acertou a têmpora do moço, caído agora entre as flores. Quem será que vai ouvir a história do albino? Certamente não será um com jardim de margaridas na alma. Talvez alguém coberto por besouros. Alguém com sangue vermelho como de qualquer ser vivo, na vida ou na morte. Não é tudo margarida, besouro e morte?

*Publicitário e professor de língua portuguesa.
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