Usina de Letras
Usina de Letras
167 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62228 )

Cartas ( 21334)

Contos (13263)

Cordel (10450)

Cronicas (22536)

Discursos (3238)

Ensaios - (10364)

Erótico (13569)

Frases (50621)

Humor (20031)

Infantil (5433)

Infanto Juvenil (4767)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140803)

Redação (3305)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6190)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->A viagem -- 16/08/2010 - 11:18 (Sandra Daher) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
       Acostumou-se com a opinião alheia que mandamento lhe parecia ser, e não aprendeu a escutar seu chamamento íntimo, sua preferência a fazer isto ou aquilo. Como uma biruta, dirigida pelo vento, qualquer um lhe daria o norte, ou o sul... Assim, ela pautou sua existência sem saber ao certo qual seria seu impulso interior, o que era de fato seu, escolha sua, ou o que eram deveres a ela atribuídos, dentre a infinidade de gostos, atitudes, compromissos, comportamentos constantes de sua rotina.

       Em uma idade mediana de sua vida, já distante, em alguns momentos que lhe foram caros, caríssimos, pôde separar a preciosidade de atitudes verdadeiramente suas de invólucros impostos com o fim de manter a fachada poderosa das relações familiares e sociais. A essa época foi capaz, ao menos, de experimentar essa distinção, quando o próprio corpo podia testemunhá-la com a vitalidade de expressão externada pelos olhos brilhantes e sorriso largo em resposta à realização de algo intensamente desejado.

       Com o passar do tempo – esse inexorável sobre qualquer vivente - ela, que se ganhara pouco na reivindicação de seus desejos - talvez por não distingui-los amiúde da tralha que amortalhava a sua vida - devagar foi cedendo à invasão formal o lugar antes ocupado pelos hormônios que representavam a fertilidade de ideais, escorados pelos desejos e que às vezes até rendiam ideias transmutadas em criações importantes para o seu desenvolvimento pessoal. Hoje ela reclama e lamenta o seu desabrochar, até porque tardio e ainda gorado nas batalhas da vida, repletas de deveres - armadilhas que imputam ao desavisado regras mortais.

       E eis que uma claridade emerge de onde as circunstâncias a ela pareciam nada favoráveis: uma viagem. Como o campo que se abre é imenso e decisões precisam ser tomadas com rapidez - porque o motivo é o da preservação da saúde, ou melhor, o da recuperação da integridade física, perdida por danos corporais – a angústia dela se apodera, pois, indecisa, não oferece presteza no avanço das negociações – nem internas nem externas- e o quadro final demora a ser desenhado.

       E agora, viajar ou não, eis a questão. Voltemos ao começo: a busca da integridade física como substituta da completude no campo psicológico? Sim ou não, mas sem se importar com a resposta, pretendia viabilizar o quanto possível o restabelecimento da antiga forma da parte lesada, embora a perda não fosse assim tão significativa, a ponto de interferir em muito na rotina de suas atividades costumeiras. Então, viagem, sim; mas por que sim se o que está planejado para ser feito só define de modo certeiro o primeiro passo que precisa ser dado: operar ou não? Afinal, o que os médicos irão dizer fará parte de uma estatística de apenas sim ou não, ou melhor, se é cirúrgico ou não. O mais que dirão será um somatório de achados que provavelmente não irão coincidir, mas se justapor numa carreira de dizeres únicos e intransferíveis para uma classificação estatística. E esses ditos talvez não sirvam para orientar uma decisão: operar com fulano ou beltrano, porque ela não entenderá qual o melhor diagnóstico e, tecnicamente, qual a melhor proposta para um melhor resultado, já que são profissionais desconhecidos e a confiança vem, via de regra, do conhecimento e apreço prévios. A não ser - hipótese remota - que algum deles a encante com seu discurso e a transborde de admiração... Restariam para serem contados, dessa forma, o sim e o não; ora, ora, então, viagem, não? Não, quer dizer, sim – viagem, sim - esses dados já serão úteis para alguma decisão e, quem sabe, comecem agora a justificar tais consultas.

       Ah! Palavras esclarecedoras: “úteis” e “justificar”... Sim, porque, para se autorizar a viajar, ela precisa dizer para si mesma o motivo pelo qual está prestes a lançar mão de seu caixa, que não é tão farto, e que deveria ser preservado para demandas mais graves de sua pessoa, e mesmo dos descendentes, que a qualquer momento, quando menos espera, podem lançar mão de sua ajuda como último recurso para driblar uma situação difícil. Meu Deus, não é fácil viajar se a saúde toda não se vai restaurar nesta única tacada! Então, sim, passear, ao lado de ser medicada, é mais um item a se levar em conta; afinal, ela precisa também se cuidar: roupas para comprar... Ai, é complicado decidir, há mais gasto a somar...

       E como não sabe o que fazer, pergunta. E se pergunta, alguém responde com seus próprios pensamentos e com seus medos que não são necessariamente os dela, mas que podem vir a sê-los... São posições sobre os profissionais que devem ser consultados, ligados às preferências e aos interesses de quem responde; são receios sobre a segurança de idas e vindas, calcados na experiência de quem sofreu danos dessa natureza ou é perseguido por tais pensamentos. E ela vai se inflando da vida alheia para ser uma outra pessoa, ainda que disso não se aperceba e por isso alimente aquele processo de entupimento das veias com sangue não seu.

       Depois de muito penar, enfim, ela decidiu: fará a viagem. Mas uma coisa ficou certa: é incerto se viaja por ela ou pela mão de outrem que a empurrou devagarinho, sem que se desse conta... Então, a luz que brilhou e ela tomou para si vai iluminar um pouco seu obscuro percurso?

       Iluminou. Não sei que forças ela conseguiu reunir no seu âmago para viver momentos que viveu, inteiramente de sua lavra. Sei que ela viajou e viu duas lindas e velhas torres de igreja, vizinhas ao seu elevado apartamento. Fotografou. Viu uma casa com jardim, suspensos ao alto de um prédio, como um desfecho: tinham seus ocupantes, para o próprio conforto, um bom verde ao redor da morada e toda a magnitude da vista de uma grande cidade. Andou pelas ruas, encontrou amigos, tomou vinho em boa companhia. Viu mazelas e encantos da urbe nas calçadas de toda estirpe e lembrou-se do trocadilho: gente como cão, entregue à rua sob efeito da droga e cão como gente - coleira de grife e pelos sedosos, sentado em café chique; onde a distinção de seus clientes se fazia pelo trato da pele e dos cabelos, fina vestimenta e ar de quem compunha ali um grupo seleto que não permitiria a ancoragem de um desprovido no recinto. Ela viu o que já sabia, de certa maneira, e se sentiu viva, recapitulando achados; e se sentiu segura na solidão das ruas transitadas por dezenas de desconhecidos. Sobre a saúde? Tratou também de ouvir entendidos. Mas não se preocupou em fazer nada de imediato, que qualquer providência acabou por não ser urgente. Preferia se lembrar dos outros acontecidos da viagem, que reputou como ótima!...



Brasília, maio de 2010

Sandra Daher
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui