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Artigos-->A Violência Nossa de Cada Dia. Ou, Eram Cinco o -- 20/01/2003 - 07:57 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Violência Nossa de Cada Dia.

Ou

Eram Cinco os Karamazov?





Fico surpreso com a surpresa alheia. Incrível como depois de tanta barbárie, ainda somos capazes de nos surpreender, de ficarmos chocados quando um crime como o cometido pela filha do casal Richthofen ganha destaque nos meios de comunicação em geral. E talvez seja mesmo de se surpreender, afinal de contas, como uma garota de 19 anos, com uma vida de princesa de retrato, rica e teoricamente equilibrada, pode arquitetar e levar a efeito o assassinato dos próprios pais, comemorar o aniversário dando uma festa, fazendo um churrasco quarenta e oito horas depois, e ainda passar os dias em cana jogando baralho ou dormindo tranqüilamente? Um amigo me perguntou se eu acredito num ato desses, no que respondi que só acredito em atos assim porque, como Tertuliano, cristão converso, teólogo latino e orador invejável, também eu, creio porque é absurdo.

Mas desde Franz Kafka que o absurdo não deveria surpreender mais, e desde os primórdios da história da humanidade tudo se configura sob os auspícios de um mesmo e irremediável absurdo, nossa fonte de revelação, nosso instante supremo, porque tudo o mais é sempre injustificável pela lógica, e escapa a racionalidade mais fria e objetiva. Há sempre as mais variadas tentativas de explicar um crime que transcende os limites da tolerância humana, mas não há o que se explicar por trás de um gesto que é pura barbárie, não há o que se racionalizar quando é nítido e perceptível que uma sociedade inteira vive sob a mesma regra de ouro: a ausência suprema de qualquer valor capaz de intermediar as relações do homem com o mundo que o cerca, com os outros homens e consigo mesmo.

A natureza humana, ao contrário do que quer a filosofia platônica, é autodestrutiva. Está na essência do homem se aniquilar, porque a quietude contemplativa, a renúncia a todas as paixões e a todos os desejos do espírito que perturbam a paz e a serenidade da contemplação desinteressada das coisas, idéia fixa da maioria dos filósofos desde o estoicismo até a saída proposta por Schopenhauer para transcender o sofrimento do mundo, não pode jamais subjugar o impulso agressivo, as imposições do desejo, a consciência perturbadora de que somos perecíveis, de que toda uma realidade criada em nós e a partir de nós se extinguirá conosco mais cedo ou mais tarde. Está tudo em Schopenhauer, de quem recomendo O Mundo como Vontade e Representação.

O que surpreende não é o crime em si mesmo, estamos habituados com a violência nossa de cada dia, o que choca e espanta é a arquitetura barroca do crime, seus contornos exagerados, suas distorções, seu excesso de meticulosidade e cálculo. O que choca é a expressão tranqüila, de prazer?, que se manifesta quase que como uma aura no rosto do criminoso e ilumina nossa condição miserável diante de um mundo que já não sabe ao certo qual o caminho a seguir diante do absurdo insofismável das coisas. A careta de prazer do macaco, na cena inicial de 2001: Uma Odisséia no Espaço, ao descobrir o poder destrutivo de uma ossada animal, é reveladora de nossos mistérios mais profundos, escondidos sob camadas e camadas de civilidade e bom-mocismo, a síntese perfeita da alma humana, que anos de psicanálise não foram capazes de precisar.

A ausência de valores não leva apenas ao assassinato, ao crime, ao ódio ou ao dano moral, a ausência de valores leva ao esgarçamento das relações humanas, que passam a sofrer como a falta de qualquer bem mais transcendente que os oferecidos pela realidade imediata, pelas circunstâncias. A ausência de valores, dos valores eternos do homem, fazem com que aceitemos diariamente a contingência, como Merseault, em O Estrangeiro, de Albert Camus, que mata porque estava incomodado com o sol da tarde, com o suor que lhe escorria pelo rosto e o cegava, com a dor de cabeça que sentia.

O Estrangeiro, de certa forma, também é uma alegoria da condição humana na medida em que Merseault vive uma completa e absoluta falta de qualquer valor que possa lhe ordenar a vida para além de um destino contingente, burocratizado e desumanizado, como acontece em Kafka, com a diferença que, para o tcheco, não há contingências, o absurdo essencial é nossa única justificativa. Merecemos a culpa porque existimos e o crime perpetrado pelo homem não deixa de ser uma expressão do homem. Merseault não sabe porque vive ou assassina um homem numa tarde ensolarada de praia, assim como Gregor Samsa não sabe porque amanhece transformado em um gigantesco inseto. Nosso destino é não saber e sofrer o absurdo da mais completa e metafísica ignorância.

Fico surpreso quando afirmam que Suzane Marie Richthofen arquitetou, planejou e levou a efeito o assassinato dos pais por dinheiro ou por amor ao namorado canalha, que agora sorri com austeridade do alto de seu estrelismo pop, de sua notoriedade repentina. Nem amor, nem dinheiro motivam o crime de Suzane, o que as pessoas não podem ou não querem ver é que a jovem matou pelo prazer do gesto, em si mesmo, gratuitamente, sem causas ou justificativas exteriores a sua própria consciência. Matou pelo prazer intelectual de saber que, sozinha, foi capaz de transcender todo o código moral vigente em nossa sociedade, manipular o namorado e o cunhado, e realizar o que, até o crime, era apenas uma abstração sem conseqüências. Matou pelo prazer, que caminha lado a lado com o ódio, como manifestou Freud, o sábio, talvez o maior de todos quando o assunto diz respeito aos porões escuros da alma humana.

É difícil, senão exasperador, reconhecer que uma jovem de 19 anos, bonita e inteligente seja capaz de matar pelo prazer puro e simples do gesto, pela consciência de que, assim, transcende o mais rigoroso e severo de todos os tabus, de todas as imposições e impedimentos morais, de todos os sentimentos que ordenam e dão sentido aos valores humanos. A crueldade, é certo, não tem nome, e não duvido nem deixo de acreditar nem um pouco da “normalidade” da moça, desde que me definam com clareza os critérios que determinam a normalidade. Não se trata de patologias, mas de uma falta completa de limites éticos definidos. Suzane é a versão moderna, completa e irretocável de Raskolnikov, o personagem de Crime e Castigo, de Dostoievski, que acreditava ser possível matar sem sentir remorsos ou culpas, sem deixar que se manifeste, no plano da consciência, o desespero pela barbárie praticada. Ele acreditava num intelecto superior, capaz de suportar as conseqüências em que seu gesto implicaria. Raskolnikov dança, pois não suporta a culpa que se manifesta em uma terrível idéia de perseguição. Suzane Marie Richthofen, acredito, não, porque é imune a toda a culpa.

Nada justifica um gesto de barbárie, nada subsiste quando somos incapazes de orientar nossas vidas de acordo com valores e sentimentos que possam, de uma maneira ou de outra, expressar alguma nobreza aos nossos olhos e ao olhos de quem nos cerca. Nada pode ser perdoado quando vivemos uma vida não de renúncia estóica, mas de aceitação passiva da contingência, do acidente, da ignorância que mascara nossos erros e perdoa nossos gestos, mesmo que os mais desprezíveis, mesmo que os mais desumanos. Nada pode durar ou permanecer quando prescindimos do amor, de todos os valores o mais feliz, grato e forte em si mesmo, o antídoto contra nossa inviável condição.



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