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cronicas-->PLENITUDE -- 05/09/2006 - 08:52 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 45ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem uma sequência, na intenção de uma crónica de viagem contínua...)


45
PLENITUDE


"La torre de marfil tentó mi anhelo,
quise encerrarme dentro de mí mismo,
y tuve hambre de espacio y sed de cielo
desde las sombras de mi propio abismo."

Rubén Dario

Derramado pelo chão da varanda como um corpo em combustão, o sangue em efervescência repousada, em estado de equilíbrio insustentável. Um corpo é uma extensão limitada, é um espaço reservado ou separado do mundo de que é parte, é continuação, é contenção.

É a parte líquida do corpo que reage ao sol da manhã incandescente, uma luz iridescente, envolvente, bronzeando a pele.

Neste início de ano, depois de despedidas e abraços, desejos e presentes, o corpo recolhe-se à sua própria dimensão, solitária e mesma.

Todo começo de ano é o momento da reflexão, do recolhimento, da revisão de si mesmo. Fechar para balanço. Sem protocolos nem tribunais de consciência, deixar fluir o pensamento, esvair-se em anseios e receios.

De bruços, com toda a geografia humana exposta ao sol e à interpretação.

Certo: o corpo envelhece, as dobras são revelações curtidas pelo amadurecimento, sulcos trilhados na existência e persistência.

De nada vale refletir sobre o passado, menos ainda sobre o futuro. Hoje é que é, deitado no chão da varanda, com saudades do mar, do sal da vida, do que foi e não vai ser mais. Amanhã, talvez.

O mar é uma constante, está no ar; há um mar vaporoso, que sopra e atravessa a ilha, envolve-nos despercebidos de sua salina presença. As grades das casas e os metais dos automóveis corroem-se a céu aberto. As pessoas também.

Toda a Ilha do Encanto amanheceu entorpecida, bocejando, de ressaca.

Logo volta-se à rotina, às contradições da realidade. Os videntes auguram dias melhores. O Papa vai morrer, um furacão vai arrasar um área mais ao sul, não se sabe de onde.

O balanço de fim de ano não deve ter sido favorável ao Brasil. Crianças assassinadas, favelados fuzilados, índios decapitados, retirantes e imigrantes buscando os caminhos da sobrevivência. É o que mostra a imprensa sensacionalista, nem por isso menos verdadeira.

Na festa em casa de Mariano Maura um jovem quis saber como deter a destruição da floresta amazónica. Ser brasileiro no exterior é navegar no lugar-comum da cultura de mídia. Sim, we have bananas! Temos índios, temos arrastões e corrupção pra ninguém botar defeito. O jeito por sair pela tangente, cinicamente:

- Você sabe qual é o tamanho da Amazónia? Passa dos cinco milhões de quilómetros quadrados. ( ... ) Em pés quadrados, em hectares? Meu Deus, isso é cálculo para o Pentágono! Mas não desviemos do assunto: quantos Portos Ricos cabem na Amazónia? Certo: tem uns miseráveis e uns exploradores por lá, uns alienados derrubando árvores. Quantos Portos Ricos de floresta já foram devastados? Sei lá ! À beça. Quantas Franças e Alemanhas faltam devastar? Todas! Quantas árvores restam em Porto Rico, depois da devastação?

O jovem ficou assustado. O Prof. Maura interveio para explicar que o habitante da ilha não tem noção de proporções, raciocina conforme o diàmetro de sua realidade circundante. Lembrei-me da velhinha que conheci nas montanhas andinas, nos arredores de Bogotá. Nunca divisara o mar, nem no cinema. Na TV o mar parecia pequeno, do tamanho do vídeo. Ela queria que eu, sendo estrangeiro de outras terras e outros mares, desvendasse o mistério e dirimisse a sua eterna dúvida: seria o mar-oceano realmente maior do que a Lagoa de Tota, como garantiam?!
Garanti ao jovem de olheiras de intelectual que o verde-mar amazónico é ignoto, indevassável. Destrutível, certamente que sim, mas não à custa de duas moto-serras e de quatro nordestinos de machado na mão. Bastava mandar duas multinacionais e duas missões religiosas para garantir a devastação da Amazónia em uma década e acabar de uma vez com a cultura indígena. Jurei que brasileiro não tem capacidade para tanto!

Ele ficou visivelmente assustado. Saiu então com aquela de que a Amazõnia é o pulmão do mundo. Eu endossei, e dei o troco:

- Que seja! Vamos, então, criar a OPEP do oxigênio. Unam-se Brasil, Venezuela, Peru, Colómbia, Bolívia e as Guianas para cobrar de toda humanidade pelo uso do oxigênio puro que ainda se respira. Se não têm dinheiro para pagar pela preservação de tão precioso pulmão, cobremose multas aos poluidores de mares e rios, envenenadores da atmosfera e da camada de ozónio, pelos depósitos de lixos urbanos e atómicos e leve-se toda a dinheirama resultante para a Amazónia.

A estas alturas, o jovem estava arrasado, esperando o final dos tempos.

Reloj, no marques las horas!
Ainda tentei recompor o quadro, reconhecendo que a pressão exercida pelo excesso populacional sobre o meio ambiente é sempre maior que a da indústria e, colocando em termos mais racionais a questão da responsabilidade coletiva pelas matas tropicais- como disse Peter Drucker - It will probably require that the develop rich countries compensate the developing poor ones for the high costs of environmental protection..., mas o jovem evitou aprofundar o diálogo. Mudou de assunto. Percebeu que o meu lado insano aflorara com duas taças de jerez, em plena e amena festa de Ano Novo.

Consequentemente, prefiro a história oficial contada nos selos postais: uma galeria de vultos e façanhas de nossos melhores semelhantes, todos eles melhores do que nós. A nossa flora, os grandes eventos e comemorações e, se não bastasse o ufanismo, um submarino brasileiro.
Prefiro a realidade dos cartões-postais que promovem o turismo. Mas há uns poucos editores que decidiram usar o retàngulo postal para mostrar as mazelas do mundo: miseráveis, catástrofes, apartheids e guerras. Só falta ressuscitarem os postais de ex-escravos negros que tanto aborreciam o nosso Olavo Bilac.

Qual é a outra face da realidade? Na ideologia em vigor, realidade é sã desgraça. Ressuscitar as crianças assassinadas e a devastação da floresta amazónica em plena festa de Ano Novo é uma provocação! Coisa de ativista ou ecologista de gabinete.

No ano que vem, vou partir para outra realidade: vou montar uma grande árvore de Natal (você acertou: árvore de verdade, como as milhares de árvores que são cortadas todos os anos para adornarem as casas dos afluentes colegas do hemisfério norte), com direito a neve artificial e tudo e. em vez de preocupações com infanticídio e ecocídio, vou assistir ao recital televisivo do Roberto Carlos, da Xuxa ou do Leandro e Leonardo. Prá valer.

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Próxima crónica da série: (46) BARCA DE CATANO

Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.



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