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cronicas-->BARCA DE CATAÑO -- 05/09/2006 - 09:44 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 46ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem uma sequência, na intenção de uma crónica de viagem contínua...)

46
BARCA DE CATAÑO


Lá vai a barca de Cataño singrando a baía de San Juan, buscando a outra margem. Cataño está à margem do tempo, o tempo estancado, petrificado.

Lá vai a barca da Cantareira em busca de la otra orilla, nas lonjuras de Niterói é um ponto de observação, lugar-comum frente à silhueta feminina do Rio de Janeiro.

Ano que vem já é agora, início de 1994. No meio do mar, no limite do tempo. Pode ser antes, ontem.

Quando eu era menino, gostava do passeio a Niterói, olhando o borbulhar do mar no convés, as gaivotas planando e, ao longe, a paisagem reduzindo-se, afastando-se. À medida que diminuía de tamanho, aumentava em abrangência, ao deixar o ancoradouro: por detrás da estação de passageiros; começavam a aparecer os arranha-céus do Rio de Janeiro e, ao largo surgiam as montanhas ondulantes, azuis, perenes. Olhos de menino fotografando o movimento, interpretando-o, buscando o outro lado da paisagem. Era a hora de olhar para dentro, para buscar as infinitas ressonàncias no ensimesmamento, no confinamento marinho. O ferry era uma ilha em movimento. Ilha de menino, reecontrando-se em sua curta e frágil existência. Debruçado sobre o parapeito do barco, acompanhava o mareio das turbinas na superfície aquática.

Agora existe a ponte Rio-Niterói e as faces que se aglomeram na barca são cada vez mais sofridas.

Decidi fazer a travessia de Cataño, sozinho. O porto de San Juan neste início de ano está congestionado pelos enormes navios de passageiros brancos e fulgurantes. Pelas ruas de San Juan estão centenas de turistas com bermudas e tênis, camisetas festivas e càmeras fotográficas. Todos fantasiados de turistas. Buscam diferenças, saídas à mesmice e à rotina de suas vidas adernadas em outros horizontes. Casais de velhos, casais de jovens casados e envelhecidos pelos novos compromissos que os esperam, todos tentam ser diferentes antes de continuarem iguais, os mesmos. Um break. O guarda que controlava a entrada de passageiros percebeu que o público deste sábado iluminado não era corriqueiro. Para consertar a catraca entravada pediu que esperássemos, pediu um breakecito. Sim, um breakecito, como expressando a proporção exata daquela quebra de rotina. Um instante, apenas. Logo voltaremos ao pequeno de nossas vidas, em lugares distantes.

Cataño estava desolado, como numa foto domingueira, no fim do mundo.

Um lugar feio, voltado para a beleza de San Juan. Prédios ordinários, pesados, entulhados, mal acabados como os de qualquer subúrbio pobre das grandes cidades. Ainda é possível encontrar algo das moradias de pescadores de sua origem urbana, umas quantas casas de madeira com tetos de zinco, de flagrante aspecto caribenho. Gente humilde. Bonita em sua feiúra, como peças inacabadas, ou deteriorando-se antes do tempo. Como as paredes sujas de suas casas que são reformadas antes que terminem de ser construídas.

Nos ónibus de San Juan circulam negros e mulatos. Os mais brancos andam de carro e frequentam as universidades. É óbvio que existem negros nas universidades e andando em seus automóveis coloridos, com buzinas escandalosas. São veículos musicais, dançando ao ritmo do trànsito saturado e das músicas de seus aparelhos de som e das peças desajustadas. É lógico que também luzem carros modernos, espalhafatosos para denotarem a sua excepcionalidade.

Um senhor sem dentes garantiu-me que já não há mais hombridade nem civilidade, que os homens agora usam brincos nas orelhas e muitos vivem às custas de suas mulheres. Um louco começou a gritar pelas ruas que não precisou frequentar a universidade para chegar à sabedoria que circula pelas praças e caminhos e que a ciência é uma atividade divina. Parecia dizer que os acadêmicos são cientistas mercenários, são sofistas alugados ao sistema. A verdade está nas ruas.

Todos por aqui estão endividados, empenhados, pagando prestações. Já gastaram o que ainda vão ganhar. Parece que estão felizes, quando estão acordados. As caras são sempre tristes, quando estão tranquilas ou dormindo. Ao primeiro estímulo irrompem, iluminam-se, sorriem. Há muito cosmético nas meninas e os rapazes suburbanos cortaram os cabelos, usam bonés invertidos, carregam radiolas nos ombros. Andam aos bandos, gingando.

Todo mundo fala nos ónibus de San Juan. Espécie de Speaker s corner do Hyde Park de Londres transportado ao Caribe. Ouve-se e comenta-se. Canta-se, xinga-se.

Uma senhora surpreende o jovem pedinte. Dá-lhe um folheto religioso e adverte-o que a salvação está em Cristo. Ele se defende. Não busca a salvação, contenta-se com um dólar.
Mata-se por menos, aqui e alhures. Ninguém espera nada de Deus ou do Governo, salvo no discurso eivado de verdades externas, tomadas por descuido, ou por comodidade e conformismo. Aprende-se logo que se deve lutar muito pelo pouco que se vai conseguir e que não será jamais de outra maneira, pelo menos para a maioria. Pelo menos, que mantenham o direito de ser assim, que ninguém venha impor o que eles já aceitam por fatalismo e desesperança. Um passageiro velho garantiu-me que essa história de luta de classes só serviu para enriquecer meia dúzia de sindicalistas. Depois li exatamente o mesmo em Peter Drucker, para quem o discurso salvacionista das esquerdas já era, deixou de vigir na hora das transformações sociais dos dias que vivemos. As pessoas parecem querer a ilusão de que podem, de que consomem da mesma maneira que os outros, ainda que em escala diferente.

No jornal, leio que a auto-estima do porto-riquenho é mínima. O modelo vem de fora. Para que buscar soluções próprias?

Primeiro, Porto Rico. Em segundo lugar, Porto Rico. Em terceiro lugar, também. Puerto Rico, siempre.

Engana-se quem pense que o porto-riquenho seja um colonizado, embora muitos estejam convencidos de que sim. Têm a cidadania americana, mas não têm a própria cidadania. Estão orgulhosos disso, por isso protestam. São cidadãos americanos, em Porto Rico. Os que decidem migrar para os States voltam a ser borícuas, entram na categoria racial dos latinos; como em toda democracia, vão poder protestar e sentir a realidade da discriminação.

A bandeira porto-riquenha não cabe na bandeira americana, garante uma canção de protesto. Cantaram com o pulmão inflamado, durante um concerto de Natal, com a orquestra sinfónica. Todo mundo sabe e repete, e sabe que é mentira. Muitos sonham com transformar a bandeira nacional numa estrelinha da bandeira ianque e manter a própria para consumo estadual.
Ouve-se menos música norte-americana nas rádios locais do que nas repúblicas latino-americanas. A salsa e o merengue têm mais ouvintes do que o rock e o rap. É o espanhol que predomina nas camadas mais pobres, pois os ricos são bilingues. A religião católica parece ser um dos baluartes da identidade nacional. Herança espanhola.

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Próxima crónica da série: (47) QUEM TE VIU, QUEM TE VÊ .

Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio.Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.



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