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Contos-->Anais do jantar verde -- 18/10/2010 - 14:50 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os convivas aproximavam-se da grande porta espelhada. Seus jaquetões bordados com fios de ouro pediam elogios falsos. A recepção era feita pelo serviçal longilíneo de uso, metido num fraque de rabo tão longo (o fraque, não o serviçal) que uma das pontas alcançava a soleira de Carrara, na qual repousava e parecia rezar para não ser pisoteada pelos tipos de rosto branco que adentravam o vestíbulo. Ao aceno de cabeça do serviçal, cada nariz empinado retirava do bolso interno da indumentária ritualística uma cartela verde musgo, cada uma com seu número exclusivo (na caixa prateada sobre a mesa de apoio do recepcionista já é possível contar , neste interregno, mais de dois centos de cartões verdes!).
A atmosfera no vestíbulo mostrou-se das mais aprazíveis. Os homens ilustres orgulhavam-se internamente de integrar evento com tão promissora possibilidade de registro na memória da intelectualidade dos homens de bem. Tal soberba, entanto, não se mostrava aberta, ao menos pelas sobrancelhas erguidas a invadir e enrugar uma ou outra testa. No palavrório, os assuntos eram vários, política, filosofia, alfarrábios raros, alguma anedota fresca. Tudo era petisco para acompanhar as taças de prosek, exceto o valor pago pelos passes de acesso, algo que, soube-se depois, chegou a custar a bagatela de mil e trezentos dinheiros. Somados todos os presentes apenas no espaço reduzido da sala vestibular, ninguém disse, mas se poderia afirmar, era possível arrecadar o que bastasse para reconstruir o teatro de ópera. Resta-nos este, o teatro de câmara, com seu salão de cerimônias sustentado por paredes tão robustas que, uma vez do lado de fora do prédio, não se sente qualquer rumor vindo das sílabas e silabadas do ualauala dos convidados em torno da mesa em forma de U. Posta em pé, crê-se que a prancha da bancada ficaria mais elevada que a arquitetura do Arco do Triunfo.
Havia poucos assentos vazios quando o menu teve seu início. Dúzias de serviçais em roupas discretas espalharam pratos com ostras sobre pequenas esculturas de gelo. Os arranjos fizeram bela conjunção com as flores amarelas e as frutas vermelhas que decoravam a mesa. A voracidade dos diálogos e das indiscrições dos convidados não permitiu que o ruído das aspiradas da carne suculenta retirada a força de pulmão de suas conchas fosse ouvido. Já uma estranha sincronia de colheradas de sopas, servidas no ponto certo de fervura, produziu um barulho de chupão coletivo que, por ser coletivo, foi coletivamente ignorado.
Findas as terrinas, a impaciência aumentou, incentivada pela entrada dos tintos maduros, uma antecipação do prato principal. O maître, antes de introduzir o chef para as devidas explanações sobre o modus preparandi de sua obra de arte culinária, justificou a dispensa de outras carnes além daquela que logo seria degustada. Disse que se tratava de um prato tão raro e tão delicado em seu sabor, conforme perceberiam as senhorias após a exposição do chef, que julgaram desastroso manchar-lhes o paladar com carnes diversas. Que entrasse, embora, o estimado artista.
O chef, maior em seu talento e pompa que em sua estatura, foi certeiro e límpido na breve aula. Disse que o prato recebia o nome de vittata au vin e que o sabor daquela ave era unique em todo o mundo. Privilegiados eram aqueles senhores todos que sabiam aproveitar os prazeres da boa mesa, sem culpa. Encerrou dizendo que o fato de a ave em questão, um tipo de papagaio sequestrado do arquipélago de Porto Rico, estar em extinção não deveria ser motivo de sofrimento de quem quer que fosse. Foram todos informados que as devidas providências junto aos governos daqui, de lá, e do nem lá nem cá haviam sido tomadas a contento. Um carregamento com mais de duzentas aves, cento e noventa e duas chegando com vida, foi, com a necessária alquimia, transformado na iguaria que agora começava a ser servida. O chef terminou desejando o sonoro e usual bon appétit!
As pequenas aves foram servidas inteiras, finamente decoradas com as penas verdes que antes lhes serviam de vestimenta, com molho de vinho tinto, salpicadas de ervas aromáticas. Duraram pouco nos pratos. Antes que a salada de folhas de pau-de-cabinda fosse servida, noutro interregno, a mesa em U ficou coberta de penas verdes e indiferentes à balbúrdia dos homens de bem. Do outro lado da parede grossa, o mesmo esbelto serviçal que recebeu os convites na entrada, espalhava arapucas no bosque, verdadeiro expert em psitacídeos: “Uuu, Curupaco, louro, Uuu Curupaco!”. Nem era possível, entre as árvores, ouvir os primeiros acordes do quarteto de cordas no interior do salão.
Mesmo com a singular terminação da anatomia do trato digestivo dos papagaios e sua nomenclaturas mais que conhecida, estes são e sempre serão apenas os Anais do Memorável Jantar Verde.

*Professor, publicitário e diretor do Núcleo Cassiano de Língua Portuguesa. Matou um pintinho chamado Tomilho Marrilho com uma pisada quando tinha seis anos (ele, não o pintinho!).
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