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Contos-->Memórias de loucos -- 06/11/2010 - 00:37 (Anizio Canola) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Estamos confinados neste lugar tenebroso. Sem esperança de, um dia, alcançarmos a liberdade.
Por isso eu vivo amargurado.
Já nem sei direito quem sou. E nós? Quem somos nós? Um punhado de coitados... Prisioneiros, sem direito a um julgamento justo. Pode? Os malvados recriminam nossos atos. Ora, será mesmo crime lutar pelos nossos ideais? Quem não empenharia a própria alma pelos seus sentimentos? Esses algozes, de corações duros, invariavelmente acham que estamos errados. Não se comovem ante nossos lamentos...
Sempre que tentamos sair deste galpão, somos barrados. É desse jeito. Somos vigiados por gente hostil. Gostaria de fugir daqui. Mas como? Pensei bastante em escalar o muro alto, localizado lá nos fundos. O problema é conseguir chegar até lá. Os guardas estão em todo canto. Não deixam nenhum dos nossos passar. O tempo todo controlando a gente, que saco! Por isso, só murmuramos uns com os outros. Não temos liberdade nem para conversar. Basta começar um bate-papo mais animado, para encostar alguém. Querendo saber o que se passa. Os caras dizem sempre que só sabemos grunhir.
Mas, o quê significa grunhir?
Ninguém explica nada para nós. É um ralhar sem fim. Vemos ódio nos olhos deles. Será que não entendem? Não estamos aqui porque queremos. Que situação. Enclausurados. Retidos. Contrariados. Insultados... Os companheiros mais antigos do lugar alertam que é perigoso esbravejar. Pois este é um terreno minado. Qualquer passo em falso pode ser terrivelmente fatal.
Chega! Já não suporto mais tanta infâmia. Sei que mereço respeito. Afinal sou um GENERAL. Esses pobres diabos, que vegetam nas celas, confiam na minha autoridade. Preciso agir. Suspeito que os opressores temem o que eu possa articular. Sou esperto em táticas de guerra. Logística é comigo mesmo. Por isso tentam me ridicularizar. Humilham-me de todas as formas. Esconderam minha farda verde-oliva. Com as inúmeras medalhas, que ganhei em campanha, por atos heróicos, em teatros de guerra. Deram-me esta vergonhosa camisola. Querem, com isso, me alquebrar. Mas sou rijo! Um dia ainda os denunciarei a algum tribunal internacional. Os uniformes deles é que são estranhos. Ouvi a mocinha dizer que usam guarda-pó. Aliás, nós prisioneiros identificamos eles pelas cores de seus respectivos guarda-pós. O rapaz de verde-abacate é o pior. Maldoso. Quando vou ao pomar, ele me caça. Dá socos na minha cabeça. Chuta minha bunda. Grita comigo. Diz, escarnecendo, que sou estúpido, louco.
Mas, o que é louco?
Às vezes consigo enganá-los. E me escondo entre as árvores. Gosto da sombra repousante. Se pudesse, não sairia mais de lá. É o ambiente ideal para traçar planos de fuga. A tranqüilidade própria da natureza é fundamental. Jogos de guerra exigem muito raciocínio. Aí o cara me traz de volta. Vem me beliscando doído. Perante os outros disfarça, sorrindo:- “Bobo, queria fugir! Está mesmo ruim da cabeça”.
Neste inferno, sempre há alguém batendo na gente. Espetando. Judiando. Uma loucura! Ando desanimado... Não quero admitir, mas penso que não vai dar mesmo para sair daqui com vida. A cozinheira, de uniforme lilás, falou-me, em surdina, que os poucos que foram embora, saíram na horizontal. Embalados. No caixão...
A polaca sardenta tem rosto vermelho. Da cor do seu uniforme. Circula o tempo todo pelos setores com uma pequena bacia. Repleta de remédios. Adora despertar a gente com tapas, para tomar algo. Êta mulher desgraçada.
Dizem que o moço de branco, que usa óculos de lentes espessas, é psiquiatra.
Mas, o quê é psiquiatra?
Basta ele ordenar, para a ruiva nos enfiar muitos comprimidos goela abaixo. Cada coisa ruim. Tudo dá sono. Sempre que reúno nossa tropa e vou dar comandos, ela traz rapidinho os comprimidos roxos. Quê general consegue liderar, resoluto, com sono? Ela também usa uma arma manual terrível. Uma seringa, com agulha de ponta grossa. A danada tem tara pelos nossos braços e nádegas. Se vacilarmos, é injeção na certa! Estou todo marcado. Uma vez ela não gostou porque eu recusei umas cápsulas escuras. Ameaçou-me:- “Seu irrecuperável. Doido. Imprestável. Você ainda vai ver o que é bom!”.
Ainda bem que, pelo menos, a moça de azul é boazinha. Alguém comentou que ela é psicóloga do hospício. Todo mundo tem bom comportamento na presença dela. Um amor.
Mas, o quê é psicóloga?
Ouvi quando ela explicou para o sujeito de verde:- “Memórias de loucos são travadas. Não recuperam quase nada. Porque têm as mentes congeladas, só no presente. Isolou-se o acesso ao passado. Em conseqüência, embotam o entendimento. Daí, os psicopatas vivem também sem perspectiva de futuro!”. O sujeito desumano ironizou:- “A melhor terapia para maluco é a borracha maciça!”. Ela zangou-se:- “Que horror. Você é pobre de espírito! Ame seus semelhantes!”
Mas, o quê é amar?
Gostaria tanto de entender o significado das palavras...
Um companheiro baixinho, cabeludo, anda com uma lanterna velha, que encontrou no lixo. Segredou-me que agora procura pilhas, no chão. Se achá-las, vai conseguir um facho de luz. Subirá por ele e pulará o muro. Aí, deu uma risada histérica, antevendo a fuga. Feliz com a idéia. Lembrei-lhe que, quando ele estiver no alto, o segurança ruim poderá apagar a lanterna. Ficou estarrecido, com medo de cair.
O sujeito de verde zomba também da mulher que sempre arrasta um pedaço de mangueira de jardim. Chama-a de lunática, caçoando. Só porque ela quer aguar o telhado. Argumento dela:- “Molhando as plantas, elas crescem. Se molhar a casa, crescerá também!”.
Achei no pátio parte de uma folha impressa. Deve ter caído do livro preto do pastor... Ou do padre? Sei lá... Um que esteve falando conosco outro dia. Sua afirmação:- “Deus é o libertador de todos. Bondoso ao extremo, atende ao rogo de quem precisa”.
Mas, o quê é padre?
Mas, o quê é Deus?
Deus... Parece-me que já ouvi esse nome. Em algum lugar... Mas não me recordo exatamente onde, nem quando...
O que está escrito aqui, mesmo?:
-“...Disse mais: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó. Moisés escondeu o rosto, porque temeu olhar para Deus. Disse ainda o Senhor: Certamente vi a aflição do meu povo, que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento, por isso desci a fim de livrá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e ampla, terra que mana leite e mel...”.
E aí? Como será que continua essa história? Deus supremo... Ah, mesmo sem conhecê-lo, esse guerreiro me fascina. Eu creio nele! O religioso disse que ele está em todo lugar. Que salva a todos. Deus poderoso, livrai-me daqui. Salvai a mim, e a esse meu povo que fenece neste lugar horrível!
Precisamos de um comandante assim, poderosíssimo... Esses meus amigos, coitados, esperam muito de mim. Mas sou tão fraco... Sei que sou o general deles, todavia...
Mas, o quê é um general?
O cara de verde passou por aqui. Advertiu a gente. – “As visitas chegaram! Vejam lá, seus doidos. Não vão dar baixaria. Vocês são malucos. E idiotas”. Depois, virou-se para mim de dedo em riste:- “A sua batata está assando. Não me esqueci do seu soco”. Quê soco?
Mas, o quê é batata?
Um companheiro perguntou-lhe por que nos trata tão mal. Respondeu com asco:- “Vocês são nojentos!”. A polaca distribuiu um tranqüilizante para cada um de nós. Falou:- “Vocês são pacientes impacientes!”. Ela nem viu quando descartei o comprimido. Não vou tomar mais essas drogas!
Estamos preparados para o pior. Combinamos não falar nada, enquanto as visitas estiverem aqui. Devem ser espiãs. Afinal, por quê vêm aqui nos importunar? Vamos olhar fixamente para elas. Observando-as, para que não tentem algo.
De novo, essa mulher aqui? Tem olhar conhecido. Sempre para no meu espaço. Mas não me lembro dela. Chamou-me outra vez de querido. Por que? É sempre assim. Ninguém me explica nada. Trouxe novamente o garoto, que é a minha cara. Ele fica agarrado à saia dela, olhando-me com muita curiosidade. Parece ter medo de mim. A mulher ordenou ao pestinha:- “Dá um abraço no papai!”.
Mas, o quê é papai?
EU SOU UM GENERAL!
O moleque começou a chorar. Assustou-se com o meu brado de guerra. A mulher puxou um lenço. Enxuga as lágrimas. O quê pretendem esses dois? Vêm me visitar e ficam chorando? Deviam, isso sim, ter orgulho da minha patente.
Ouvi um visitante cochichar com outro:- “Pela cara, o médico parece mais louco do que os próprios loucos”. Não entendi. Agora, o tal de guarda-pó branco chegou perto de nós. Está sussurrando algo para ela. Não compreendo nada do que dizem. Esquizofrenia... Eletrochoques... Lóbulos temporais... Ela diz que está desesperada. Que eu já não reconheço nem o próprio filho.
Mas, o quê é filho?
Gostaria que essa gente fosse embora logo. Ainda tenho muitos planos de guerra para acertar. Não nos deixam sair daqui. Mas essas visitas podem entrar, quem entende isso? O médico falou que a operação agora é inevitável. Há um certo risco, mas poderá melhorar o quadro. Então é isso! Operação! Eles estão tramando nos aniquilar. Sim, eis o momento esperado! Procurarei chamar a atenção dos companheiros. Esta é a hora, gente! A mulher e o garoto choram ainda mais, porque gesticulo muito. Pensam que me enganam. Ninguém me explica nada. Mas já entendi. Chegou a hora da batalha. Preciso bradar a plenos pulmões, para reunir o nosso exército.
NÃO NOS SUBJUGARÃO. LUTAREMOS ATÉ A MORTE!
O médico gritou pela polaca.
É O SINAL, COMPANHEIROS. VÃO NOS ATACAR!
A polaca vinha correndo com a bacia e uma seringa na mão. Tropeçou. Esparramou os remédios pelo chão. Um homem corpulento, também de vermelho, surgiu de repente. De onde apareceu, mais esse?! Afobado, diz que trouxe uma camisa-de-força. – “Deixa comigo, doutor. Eu coloco nele!”.
MAS, O QUÊ É CAMISA-DE-FORÇA?
DEUS DE ABRAÃO, DE ISAQUE, DE JACÓ. ACUDA-ME! SALVE-ME! EU E MEUS COMPANHEIROS. QUE PERECEMOS!
Pobres amigos. Apenas observam a cena, estáticos, o olhar perdido. Não têm como me acompanhar.
EU SOU A ESPERANÇA. POR ISSO SOU GENERAL!
Forço bastante, mas não consigo me livrar desta maldita camisa-de-força. A polaca segura a seringa. O cara de verde passou-lhe uma ampola azul, indicando:- “Esta aqui o acalmará de vez. Aplique logo!”.
NÃO QUERO TOMAR NADA! NÃO PRECISO! ESSA MULHER CHORONA NÃO VÊ QUE QUEREM ME MATAR? QUATRO CARAS PARA ME SEGURAR... SEUS COVARDES!
Tumulto no pátio. Correria. Agora alguns companheiros também gritam. Tento, desesperadamente, soltar-me. Precisam me entender. A psicóloga, ali perto, está com cara de choro, estarrecida. É a única que sente o meu drama! O médico disse para a mulher que entrei em crise irreversível. O cara de verde me deu um safanão. Ninguém ralha com ele? O menino arregalou os olhos.
SOLTEM MEUS BRAÇOS! UM GENERAL PRECISA TER OS BRAÇOS LIVRES, PARA COMANDAR!
A polaca levanta minha camisola e aplica a injeção na minha bunda.
NÃÃÃOOO!!! NÃO ME MATEM, INFIEIS. MALDITOS! VERÃO SÓ, O MEU DEUS CHEGARÁ A TEMPO. CREIO NELE. ELE ME LIVRARÁ DE VOCÊS. E DESTE INFERNO!...
Que vejo? O “verde” está levando minha mulher para longe. O safado colocou o braço no ombro dela. Ela soluça muito. O menino, ainda segurando na saia dela, espia-me o tempo todo. O quê pensará disto tudo? Desapareceram na curva...
A polaca está dizendo... ??? Como é? Aplicou em mim injeção errada?! Na pressa, não conferiu a ampola que lhe passaram? Não podia ser aquela, pois é letal??? Ai... Que gosto amargo na boca. Estou tremendo. Tudo está rodando. Uma pancada forte dentro da minha cabeça! Não consigo manter meus olhos abertos. Mas percebo uma luz viva ao longe. Deus, meu! É você? Louvo-o na sua glória...
.....
....
...
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Epílogo
Uma ambulância para em frente do enorme portão trancado. Desligada a estridente sirene, a calma volta a reinar na rua erma.
Pichações no muro rebocado revelam que é ali mesmo o Hospício Celestial: “Viver é uma grande loucura!”. “Percebam, os verdadeiros loucos são os que tomam conta dos pacientes!”. “Que seria de nós todos sem a complacência de Deus?”.
O médico desce e vai tocar o interfone. Trava-se uma conversa rápida. Ele avisa que está com o carro do pronto-socorro solicitado. Uma voz feminina, acentuadamente cáustica, responde com firmeza e insensibilidade:- “Chegaram tarde. Aqui já não precisamos mais de ambulância. Esperamos agora outro carro. O funerário”.
Empertigando-se, elegante no uniforme branco, que combina com a cor dos seus cabelos, ele volta devagar para o veículo. Pensativo, abre a porta. O enfermeiro e o motorista, que ficaram à sua espera, estão curiosos. Com palavras eivadas de sabedoria, diz:- “Sinto que neste caso jamais chegaríamos a tempo. Sucedeu que um interno rebelou-se. No extremo da ira, teve um mal súbito. Foi a óbito. Coitado. Se dizia general. Acabou perdendo sua guerra e sua vida neste lugar. Oxalá agora sua alma tenha a paz tão almejada”.
Horas depois, o portão de ferro se abre lentamente, rangendo muito. Duas crianças brincavam na calçada. Elas fogem espavoridas. Nem ousam olhar para dentro daquele horror. Um carro fúnebre entra. Veio buscar o general. Este irá sair na posição horizontal prevista. Embalado, num caixão simples. Não terá sequer a salva de tiros de praxe, que gostaria. Mas o importante é que, finalmente, o seu Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o libertou deste lugar medonho...
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