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Contos-->O avesso de Oz -- 30/11/2010 - 20:24 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não há mais pipoca de micro-ondas. O sal do mar chega quase à calçada do prédio dele, mas não há mais pipoca de micro-ondas. Para que sal, então? Talvez por isso o cloreto de sódio tenha sido quase banido da dieta dos homens corretos. Sem sal, sem riscos para as artérias. A pipoca nem era problema. O micro-ondas, esse sim, matou muitos, mesmo antes de ser escrito com hífen. Felizmente ainda há quem grude os “ós”- microondas - e faça pipoca, às escondidas, em aparelhos retificados. Gente da quarta idade que defende o direito de morrer de câncer.
Quase um Mágico de Oz. Era disso que ele precisava. Não por não ter um coração, não por não ter um cérebro, não por não ter coragem, não por não estar perto de casa. Tinha coração forte. Tinha cérebro, medição de QI: 143. Tinha a coragem necessária para expulsar os muçulmanos numa cruzada. E vivia num apartamento. Precisava era de um Mágico de Oz do avesso, capaz de extirpar-lhe o coração endurecido, danificar o cérebro eficiente e enfraquecer a coragem inútil num mundo em que Maomé é apenas o nome de uma cadeia de restaurantes árabes. Se o Mágico conseguisse levar, num tornado. apenas o seu apartamento, entre tantos iguais, no topo da Serra 39, melhor ainda.
Em 2045, este homem, que aqui se vê estacionado no vaso sanitário, está em pleno gozo da saúde de sua segunda idade. Não fica doente desde a gripe geral, quando ele era um guri curioso que adorava pipoca de micro-ondas. Sempre saudável, ainda não fez uso de desculpas para matar o trabalho. Hérnia de disco, cefaleia, conjuntivite. Apenas nomes inúteis.
-O job 046-W já está postado!
O som ecoa pelo apartamento todo. Mal tem tempo de apertar o mecanismo de limpeza. Quase se levanta, mas um aviso sonoro faz questão de impedir o esquecimento. Este é o tempo em que homens dão descarga, mesmo que não queiram. Aperta o botão e sente o vácuo poderoso limpar tudo – ainda se acha invadido - e cuidar de fazer a entrega à tubulação do esgoto, sempre misteriosa. O painel na parede, ao lado do vaso, descortina números como um antigo rolo de papel higiênico escada abaixo: “consistência normal... ácidos normais... fibras adequadas... ausência de parasitas... manter dieta indicada”.
Na mesa sob a janela de vidros fumê, o holograma exibe a lauda com o pedido de relatório da próxima hora. Como chegar atrasado ao trabalho? O trabalho estava sempre em casa. Sem falta. Em toda a sua carreira de analista de dados, nunca respirou o ar da sede da firma. Nem sabe onde fica a sede, se ela existe mesmo. Recebe seus honorários, por produtividade, direto no banco, nos dias combinados. Ficar gripado assim? Sem perdigotos do chefe raivoso pingando em seu rosto, como via nos antigos filmes do pacote revival? Seu chefe era um holograma. Sua vontade de iniciar o relatório tem ainda menos consistência, é menos que virtual, deixou de ser vontade desde a semana passada.
Oz era um lugar mítico. Diziam que ficava numa ilha artificial na região onde antes estava o centro da capital, na parte baixa inundada pela subida dos mares, vinte e poucos anos atrás. O nome era sugestivo, mas inexato. Para ser fiel à referência, esse Reino de Oz Pós-Inundação deveria ser chamado de Terra dos Pisca-piscas. Faria mais sentido, se Oz existisse de fato, que lá estivesse uma Bruxa Malvada do Oeste desgovernando tudo. Ninguém ia a Oz para fazer pedidos sinceros ou aprender a ser bom. Em vez de sapatos de prata, era o suborno, a peso de ouro, que ajudava a cruzar o árido até o centro. Calor de quase 52 graus e nenhuma garantia. Uma verdadeira cruzada que incluía escapar da guarda perimetral e dos saqueadores. A chegada ao Reino de Oz significava abandonar tudo que a vida politicamente correta tinha dado ao peregrino. Nada de óculos de esmeralda.
Na semana passada, este homem que agora vemos sentado na cama, olhando um mapa rabiscado num pedaço de papel de livro antigo, encontrou por acaso a saída para o dilema de toda a sua geração. O mundo havia se transformado num paraíso de Dorothys e Totós. Tudo bonzinho, bonitinho, loirinho, cutcut. Começou com uma lei antifumo, depois vieram a lei do silêncio, a lei seca, a proibição de dar palmadas em crianças rebeldes e a campanha dos evangélicos pelo casamento virginal. A inundação, prevista com anos de antecedência, trouxe a esperança de que, diante da possibilidade de um desastre, o controle sobre a vida e o prazer alheios seria afrouxado. Viver estava ficando muito chato! Ocorreu o inverso disso: os radicais passaram a ser considerados moderados e, antes da migração para as serras, já não se viam mais cadeiras em calçadas de bares, pois não havia mais bares. As festas na porta dos estádios acabaram: futebol só indoor, sem torcida. As putas nas ruelas do centro foram para a p... Antes de a água limpar a cidade, os moderados conseguiram tornar tudo insípido, inodoro, incolor, de forma onipotente, onipresente, onisciente. Criou-se um Deus Diet e todo mundo foi obrigado a consumir a cartilha d´Ele ou não migraria. Ficaram para morrer os indigentes e os opositores do novo regime. Dizem que eles fundaram Oz, o reino dos homens incorretos. Um lugar em que se pode fumar, beber, fazer sexo, cometer erros, ficar doente e morrer sem programação prévia.
Este homem que agora vemos abrindo a porta, com um mapa nas mãos, dinheiro no bolso, cantis de água em volta da cintura e uma esperança de história infantil na alma, cansou de ser correto. Quer apenas ser humano, como no tempo em que ninguém tinha muita certeza sobre qual seria o certo, qual seria o errado, e o único jeito de descobrir era tentando. E o milho pipocava no microondas. Com muito sal e pouco hífen.
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