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Cronicas-->Vida adiada -- 24/09/2006 - 20:24 (Sandra Daher) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Quando ficou constatado que ele quebrara o pé, na altura do mínimo, o médico não quis saber qual era sua rotina, o que fazia para o seu sustento ou o de sua família, ou mesmo qual seria sua ocupação... Não sei se imaginou que ele talvez calçasse botas pesadas todos os dias, para trilhar légua de duro chão ou afundá-las nos charcos da terra que cuidava, acompanhando de perto o crescimento da lavoura, reunindo o gado para a venda, para o que permanecia de pé por mais de hora sob o sol, até fazê-lo entrar no corredor e subir pesada e ruidosamente a rampa de madeira acoplada ao veículo que o transportava à cidade. Podia ser que o levassem seus pés à dança - o tablado como palco para passos leves e céleres, formando quadrados, ziguezagues, retas, semicírculos, com os quais conduzia a parceira e a platéia ao delírio, com os estonteantes rodopios e requebros de seu corpo jovem e flexível, seguindo o ritmado alucinante da música; ou àqueles passos lentos, sólidos, chumbados ao peso da condução de outro corpo na composição de um belo balé, ou a outros suaves, mas precisos, na formação de desenhos com a suspensão dos membros inferiores... e então, calçassem, esses pés, sapatilhas, vestindo-os como luva fina, para que a forma fosse mantida próxima ao natural e assim se preservasse quase intacta a possibilidade de movimentos desses membros-instrumentos da arte. Mas o doutor na sua consciência científica, não indagou em nenhum momento, se o paciente usava seus pés na faina diária da organização de uma hospedaria, subindo escadas para colher a roupa suja dos quartos, ou fazendo a limpeza de um shopping, nos pés de patins, atingindo velocidade que exige capacete protetor reforçado. Ele sequer pensou que se pés de político fossem aqueles, com votos espalhados no imenso estado, precisasse logo chegar, como amigo, a eleitores, gastando sola de muito andar... Fossem aqueles pés as "rodas" de um ónibus, diariamente empenhados em outros conduzir até o ponto, para mais um caminhar, ao término do qual alcançariam a fábrica, o hospital, a igreja... pés de circo que se enroscassem na barra de um trapézio - em três funções aos domingos - ou unidos sobre as pernas voltadas para cima, equilibrando bolas, girando-as incessantemente com uma habilidade incomum ao olhar fascinado do público; ou daqueles que andassem no fio de arame, dobrando-se no comprido para manterem-se no trilho...pés para o nosso esporte maior, permitindo a ginga, a finta, a posse da bola para o chute e o gozo completo...Quantas vezes talvez saíssem à rua para caminhar, ou ainda, planejasse seu dono ir à Espanha para a grande peregrinação...ou fazer um tour, quem sabe tencionava, o agora seu paciente, escalar a montanha mais alta do mundo...ou seria ele o tal homenzinho, visto de baixo, que troca a làmpada no topo do alto poste de luz, dentro de uma cesta içada pelo guindaste - ou o passante, que já aproveitou essa cena de enorme beleza visual... ou simplesmente, trabalhasse mesmo, esse seu paciente, bem perto de casa - escada abaixo - e seus pés sustentassem o dia inteiro seu corpo no exercício das mãos, lavando e penteando cabelos, soltando os cachos dos rostos já maquiados, no preparo de cabeças sedutoras...O doutor de nada quis saber e, com fé na Ciência, munido da autoridade que lhe confere o saber auferido por tal devoção, cravou a sentença sobre o papel timbrado - ao tempo em que a repetia ao paciente, rápido e em meia voz - não sem antes rubricá-lo, acima do carimbo, compondo a marca que o legitima junto à classe e à sociedade:

"__ Pé elevado, não pisar " !

E perguntado sobre o tempo que duraria tal providência - sem que deixasse o paciente transparecer, pela distància natural imposta entre consultor e consultante, a preocupação com o cessar repentino de seus afazeres, deveres, impondo o adiamento de planos e sonhos, alguns jamais recuperáveis - o médico respondeu lacónico, embora com certo cuidado ao olhar de frente seu interlocutor, alçando-o à realidade da qual até então tentara escapar, uma vez rendido ao seu saber:

"__ Dez dias de tala, mais trinta de gesso"!...

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Sandra Daher
Brasília, junho de 2006


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