Usina de Letras
Usina de Letras
75 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62206 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22534)

Discursos (3238)

Ensaios - (10355)

Erótico (13568)

Frases (50604)

Humor (20029)

Infantil (5428)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140795)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O Conselho da Cachaça -- 06/05/2001 - 19:51 (Cleusa Sarzêdas) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
“O CONSELHO DA CACHAÇA”


É sábado. Fim de tarde. O vento frio corta as ruas do bairro. Os transeuntes agasalhados caminham apressados. No canto de uma calçada, um homem envolto em um cobertor de jornal, com letras levadas pelo vento, murmura algo difícil de ser percebido pelas pessoas comuns. Mas eu, morador da caixa craniana, ouvi, nitidamente, um diálogo assim:
— Por que você entra em minha boca queimando minha garganta, maltratando meu estômago, entortando minha cabeça e me deixando sem ação? Cachaça maldita!

—Entro em tua boca levada pela tua mão direita. Sou apanhada no balcão do bar, servida num copo de vidro, ordinário é verdade, mas de vidro transparente, que mostra toda minha beleza, de um “cristalino” amarelo claro. Minha função é satisfazer os beberrões que ali chegam o dia inteiro, todos os dias, mas... coitados, vocês nunca se satisfazem. Bebem-me tanto que mal conseguem caminhar. Assim como você está agora! E muitas vezes me constrangem, porque me fazem voltar, após me deglutir, pelo mesmo canal por onde entrei. Humilhada, vejo-me pelo chão sujo, acompanhada de detritos com odor insuportável, que não sei de onde vêm, maculando-me a beleza. A culpa é de quem? Não sou eu quem vai te buscar, é você que vem a mim! Por favor, não me beba mais, poupe-me de tanta humilhação.

—Não fique tão zangada! Quando estou sóbrio, penso nunca mais tocar em você, mas as lembranças voltam a me incomodar e, como num espelho, vejo os erros que não pude ou não quis evitar, o lenço balançando diante dos meus olhos, o amor impossível de alcançar, a saudade habitante no peito, a fome que corrói minhas entranhas e tantos outros desalentos fazendo-me chorar. Nesse momento, é impossível não ir te buscar. Você não desconhece a vida dos beberrões, todos têm motivos, quase sempre os mesmos, tanto na sarjeta como nos salões. Só que na sarjeta, quando você chega no estômago, a fome, não suportando a queimação, foge desesperada, dando lugar à mais bebeção. É quando a língua enrola e a mente em desalinho diz tudo que a mim aflige, e nada consola. Se você não existisse, cachaça malvada, nada disso aconteceria! Não tendo que te beber pra esquecer, a única solução seria esquecer sem te beber. Mas você é perversa, sente prazer em entrar dentro de mim, bombardeando meu fígado e prosseguindo incólume até a minha cabeça, fazendo-me falar coisas que ninguém entende. Mas pra você posso dizer, ao “pé do ouvido”: minhas palavras são gritos de socorro. No entanto, quem irá socorrer um vagabundo? Os passantes mudam de calçada pra não ter de conviver com este ser miserável! Quem irá acudir um homem sujo, faminto, embriagado e jogado numa calçada? Só você cachaça, ainda fica perto de mim, misturando-se ao odor do meu corpo, exalando um perfume ruim. Você conhece todos os infelizes deste mundo, convive com eles diariamente e os mata sem piedade. Nas minhas andanças deparei com muitos iguais a mim, mortos na calçada, impregnados por ti. Você não é bem vinda. Já reparou na contração do rosto de quem te bebe? No espasmo de horror que apresenta? Somente os infelizes te bebem. Teu sabor é tão ruim que antes pede-se a bênção do santo, como se pedindo perdão por não resistir, pensando amenizar assim sua destruição. Como gostaria de te esquecer para sempre. Ah!!.. se pelo menos eu tivesse quem me ajudasse a resistir nos momentos aflitivos das lembranças, talvez encontrasse forças pra livrar-me de você.

—Meu amigo, você é ingrato! Se, quando sóbrio, as lembranças te atormentam, fazendo chorar, procura minha companhia, que é a única que tem. Pensa bem, quando está comigo a dor é mais amena, você até canta, e cantar é melhor que chorar, concorda? Por que reclama tanto? Abrando tua sede e engano teu estômago. O fígado? Reclama, mas se conforma, e continuamos caminhando juntos, eu fazendo “bem” a você e você fazendo bem o meu “dono”. Você escolheu o caminho. Se hoje é um farrapo, como diz, a culpa é unicamente tua. Levanta a cabeça, seja homem, resista ao que destrói, construa algo melhor. Lamentar não soluciona as questões, muito ao contrário, agrava-as. Se está tão desejoso de me esquecer, sugiro uma separação amigável pra terminar com todo esse blá,blá,blá. Estou cansada de ser maltratada, xingada e espezinhada. Você ficará sem me ver durante duas semanas e...

—Como vou viver sem você! Não tenho outra companhia! A quem vou procurar, se os meus dias são preenchidos e contaminados por você? Reclamo porque gostaria de mudar o rumo dos meus pensamentos, mas sempre que tento vejo-me envolto numa névoa esbranquiçada, tirando-me o equilíbrio, embora, naquele momento esteja sóbrio. Não sei de onde ela vem, só sei que me leva a lugares sombrios e distantes. Tento voltar, mas a força que me arrasta é bem maior.
... no fim desse período irá visitar-me. Se não me quiser mais, não te censurarei e desejarei que encontre outros caminhos em outras companhias melhores que a minha. Tente, não desista, seja mais forte do que essa força que te arrasta. Você pode! Você é dono de você! Certa vez, ouvi essa conversa bem na porta do bar e nunca imaginei que um dia iria dizer isso pra alguém. Aí surge você tão desesperado... Estou dando conselhos contra meu “dono”, já pensou se a moda pega? Ninguém mais gostará de mim, deixo de existir. O outro que ouviu esse conselho se livrou de mim, nunca mais voltou! E você? Vai pra casa e pensa no assunto, de minha parte desejo sinceramente te ver mais feliz, e quem sabe, com outra amante, não mais bonita do que eu, espero.
Nesse momento o bêbedo sorriu.
—Não sei se vou conseguir, é muito difícil, sinto-me fraco, desamparado e sem objetivo. Mas vou seguir teus conselhos e afastar-me por um período. Resumindo, vou tentar! Até que você está sendo legal! Mas, antes, deixa eu tomar o último trago?.

Cleusa Sarzêdas
e-mail cleosarzedas@uol.com.br
e-mail cleonicesarzedas@yahoo.com.br

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui