“Por mais que busquemos aceitar a morte, ela nos chega sempre como algo de imprevisto e terrível, talvez devido a seu caráter definitivo: a vida é permanente transição, interrompida por estes sobressaltos bruscos de morte”. A.S.T.
Anísio desceu do elevador e um cheiro de fumaça de charuto alcançou suas narinas. Charuto bem brasileiro, como aqueles que o pai fumava após os almoços dominicais em Caitité. Fosse um Havana, pouca diferença faria para o professor, que nunca tinha ido a Cuba. Quando nasceu - e até mais da metade da vida - não existiam os mitos Fidel e Che e o comunismo ainda não era uma pedra no sapato dos generais.
Será que o mestre Aurélio fumava charutos assim antes do almoço? Poderia ser o vizinho do apartamento ao lado, algum tipo melancólico com olhos enfiados num álbum de fotografias amareladas, a tirar do gosto do fumo um fundinho do sabor de outras épocas. Anísio perdeu alguns segundos no hall decorado com um vaso de samambaia. Aspirou mais o cheiro de tabaco. Caitité! Tentou acender a luz para identificar os números pendurados nas duas portas, mas o botãozinho não obedecia. Chegou mais perto de uma das placas. Podia jurar ter visto o número certo. Acionou a campainha em outro botão parecido com o primeiro, só que mais eficiente. Uma cigarra ecoou pelo andar. Com um barulho daquele, era certo que, em poucos segundos, Aurélio fosse revelado em sorrisos pela porta que abriria.
A porta não se mexeu. A vista de Anísio, mais adaptada à penumbra, identificou o número. Apartamento errado. Andar errado. Estando certo o prédio, nada de tão dramático naquele engano para quem, previdente, sempre saía de casa mais cedo para evitar atrasos. Coisa de gente que não gostava de esperar e entendia o transtorno dos que se veem em vigília forçada.
Naquela tarde, um almoço agradável serviria de desculpa para debates calorosos sobre vida, educação e literatura. A conversa não teria hora para acabar e seguiria num café vespertino na varanda. Almoço nunca ocorrido, pois Anísio, deixado por nós a caminho do elevador, nunca desceu no andar de Aurélio, obrigando o frango com polenta preparado pela empregada do imortal a uma solidão de geladeira, cumprida ao lado do suco de graviola que também seria servido.
Anísio caminhava pelo hall. A lâmpada resolveu funcionar, mas, quem sabe?, não foi capaz de iluminar os passos do professor. Talvez um vulto tenha passado perto da escada. Talvez a porta do elevador tenha enganado Anísio e a sua morte imprevista e terrível tenha sido assim mesmo: uma queda no fosso do elevador. Sendo o ano 1971, é difícil acreditar em morte tão besta para um pensador que tinha medo nenhum de propor mudanças para o Brasil do “ame-o ou deixo-o”, como já tinha feito no Brasil de Vargas. Difícil aceitar essa morte para Anísio Teixeira.
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