O nego arrasta os pés rachados pelo chão rude das Gerais, na faixa de pó que separa, inimigo, o cerrado da mata. Não houve ainda quem desse falta dele, nem haverá reclamante. É nego velho sem força de braço, sem vontade que fosse de perna. Saberão, de sabedoria inventada, que o cabelo pintado morreu de madureza e despencou em buraco anônimo. Dia que carniçar, tapa o vão com cal ou lama que é menos custosa e mais dada. Fartum não virá e vão versar que foi levado pelo corgo: - Vai com os santos. Filhos tem vários que nem sabe com quem se deitou na penumbra da senzala em tempos de varão. Parte grande definhou, outra fugiu e quem vingou tem mais que fazer da vida curta.
Sabe ele que é de fé: não se presta a mais nada que seja de função. Sente isso em cada pedaço do corpo, desde que perdeu o olho direito pra catarata. É um corpo de esperar passamento. É um tanto de pele, osso e alguma carne pedindo a derradeira. Também sabe – e isso só ele sabe e soube – quanto pensar gastou para decidir que se era hora de ir, que se fosse no meio da florada do lobrobô. Quem mede sonho último de moribundo?
Se era esse o desejo, tinha que arrumar forças outras para cumprir a jornada. Lobrobô não nascia mais no redor da casa grande, nem na volta da senzala e já se tinha feito pão-verde de tudo que era folha da frente da capela. Morrer na florada? Era caso de jornar até o árido. Que fosse essa a senda dele! Na estação inteira que se ia, comeu tudo que entendia alimentar o corpo para sustentar o caminhar: catuaba, amendoim, mel e feijão. Trabalhou só na espreita da hora de se ir pelo caminho do lobrobô.
Acontece de acontecimento provado que flor de lobrobô é o ó: só se vê em dia único que é sempre perto da paixão do Salvador. É dia certeiro e se não for esse não é mais. Quem disse que o nego velho, escravo que foi toda vida, perde o sono com coisa assim de melindre da floração? Nego velho é bom de faro e bastou florar o árido que deu, de passo lento, mas certeiro, início à sua paixão. Metade do dia arrastou o corpo quase morto pelo caminho que pressentia – e confirmava com a fuça – daria no canto que escolhera para se ir.
Quando já não tinha mais lembrança de catuaba, amendoim, mel ou feijão que lhe provesse, quando sentia que a luz do olho canhoto pareava com a do destro, foi quando avistou as pétalas despontando do espinheiro: - Ora pro nobis! Visto o viço berrante da beleza das plantinhas, teve tempo só de derribar sobre as pontas afiadas do lobrobô que tanto queria que fosse a sua mortalha.
A touceira de lobrobô foi amorosa com o nego velho. Fez dele adubo perfeito e os pedaços do escravo vivem hoje em cada folhinha que o cozinheiro mais zeloso da terra das Alterosas joga na panela grande, pouca água, em refoga que espera a juntada do angu de moinho. E a parentada toda come o ora-pro-nobis servido com frango no sangue. Lobrobô que sustenta, lobrobô que delicia, mas lobrobô que é triste feito nego velho que morreu sozinho no árido.
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