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cronicas-->SOLIDÃO NOSSA DE CADA DIA -- 16/11/2006 - 21:53 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 48ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem uma sequência, na intenção de uma crónica de viagem contínua...)

(48)
SOLIDÃO NOSSA DE CADA DIA


O vento fresco do inverno afastou os borícuas* das praias. Deixou-as sozinhas, tristes, inteiras para os turistas que vieram do norte, fugindo do gelo. São brancos e apagados
como fotografias no fixador.

Tomo os caminhos do interior. Em busca das cavernas de Camuy, das serranias suaves de Cayey, das construções senhoriais de Ponce, onde o mar é definitivamente mais repousado e a terra é surpreendentemente mais seca e árida.

Uma luz oblíqua desvenda as distàncias a percorrer e as chuvas são mais frequentes e intermitentes. São ànsias de transitar, de desvendar, de conhecer.

Depois de tantas andanças ou circunvagações tomei a direção de San Germán, parte da história da povoação e colonização da ilha. Um lugar restaurado, com alguns pontos de interesse - uma igreja setecentista, uma botica oitocentista, alguns balcões de sabor colonial. Fomos até ali para um retiro acadêmico. Todos os professores de Ia Escuela.

Judith anda arisca. Magoada, detrás de óculos pesados, carregando sua mochila, olhando-me de soslaio. Aproxima-se e desaparece com indícios de simpatia e frustração.

Tampouco consigo olha-la. Ela come com a boca aberta e chupa os dedos e faz ruídos. A comida é triturada à vista de todos. Fragmentos reviram¬-se, somem e reaparecem entre os dentes e a língua como uma baba em movimento.

Ela passeia sozinha enquanto o resto do grupo ensaia caminhadas nas horas livres. Não existe qualquer gesto de rechaço ou de rejeição, apenas estranhamento. Ninguém reclama a sua companhia. Ela não busca integrar-¬se ao grupo. Tudo de forma ostensivamente natural, assumida e até extremamente cortês.

Eu tampouco esforço-me por atraí-Ia ou por acompanha-Ia.

No jantar, ela recorre à saudade de seus cães. Querendo dizer, quem sabe, que preferiria estar com eles embora apenas diga que sente sua falta, que está preocupada.

- Os cães realmente sofrem a ausência de seus donos- entrei no assunto. Judith demonstra interesse. Continuo:

- Choram a ausência de seus donos, sobretudo na primeira noite, embora continuem choramingando nos dias seguintes.

Uma colega sussurra que estou sendo canalha, com um prazer enorme nos olhos.

-Há casos até de animais que se lançam de apartamentos, que cometem
suicídio.

Judith olha-me horrorizada, triste.

- É lógico que estou brincando. Cães não têm tamanha lucidez.

Mas Judith parece acreditar no que digo, não que realmente acredite no livre-arbítrio dos animais, mas porque está definitivamente convencida, independentemente de minhas palavras, do sofrimento e desolação a que devem estar abandonados os seus companheiros.

Alguém desvia o assunto. Acabamos contando, como é de praxe, piadas.
Mas ela não as entende. Não esboça sequer um sorriso. Não é que estivesse absorta e ausente. Atenta mas perplexa, como que perguntando "e daí, onde está a graça?" E confessa:

-Em casa, nunca contamos piadas.

De fato, ela não tem senso de humor. Tudo tem o sentido literal que as palavras expressam.

Na semana seguinte, aparece no meu apartamento para levar-me à praia. Confessa, com certa resignação, que não fez nenhum esforço por integrar-¬se com os demais. Durante seis anos foi assim, e deverá continuar a ser assim nos próximos anos: apenas uma convivência agradável, ou indiferente, sem nenhum aprofundamento com os demais professores. Ainda bem que ela tem os alunos, e pode falar com eles e eles estão dispostos (ou obrigados) a ouvi-Ia.

Seguimos o mesmo caminho de sempre, para a mesma praia. Só o mar estava diferente: a água mais fria, e a corrente marinha parecia querer sugar¬-nos. Havia uma brisa enviesada e fresca. Éramos os únicos ali, sozinhos, cada um com os seus pensamentos. As palavras que esboçamos foram apenas para falar das coisas que estávamos vendo, como para marcar a nossa presença, depois de prolongados vazios e ensimesmamentos.

O sol escondido detrás de nuvens de chuva.

Depois fizemos o trajeto de volta, em completo mutismo. Mas, em verdade, foi quando mais sentimos a presença do outro. Só que não encontramos como expressar os nossos sentimentos. No fundo daquele silêncio, sem disposição para o diálogo, estávamos até satisfeitos de nossa companhia.


(*) Boricuas são os nativos da ilha de Porto Rico.
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Próxima crónica da série: (49) UNIDADE NA DIVERSIDADE

Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.
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