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cronicas-->RETRATOS -- 16/11/2006 - 22:47 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 50ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem uma sequência, na intenção de uma crónica de viagem contínua...)


(50)
RETRATOS


"En tres edades se divide la vida: la que fue, la que es, y la que será.
De estas, la que vivimos es breve; la que vivi remos es dudosa, y la que
hemos vivido es irrevocable".
Séneca

Não regressei às sessões de ginástica do Vicente. Assumi compromissos acadêmicos em novos horários e o tempo ficou escasso. Vejo-o sempre caminhando célere e sorridente por toda parte, com suas bermudas, e comunicando-se com todo mundo. É um ser prestimoso, cordial. A mulher parece não compartilhar de sua boa vontade incomensurável. Vejo-a sempre irritada, nervosa. Ele justifica-a: está fazendo o doutorado, anda angustiada, daí as farpas ferinas. Trata-o como um menino retardado, censurando-o, repreendendo-o, cobrando-lhe diligências e soluções. Ele sempre tem o carro cheio de passageiros a quem oferece "pon", a forma curiosa como chamam a carona por aqui. Sou um dos que ele recolhe, muitas vezes, a caminho da Escuela. Mas não sou o único, pois ele vai recolhendo quantos estejam caminhando na mesma direção, não obstante a irascibilidade da mulher, que está sempre com pressa. Ele, não. Até pára para conversar com outros que passam caminhando em sentido contrário, como o se o tempo fosse elástico.
- Cuide-se, professor- diz-me, ao despedir-se. E convida-me sempre para medir a pressão arterial que, segundo ele, evoluiu muito favoravelmente. Está sempre preocupado com a saúde das pessoas.
Tampouco tenho saído com as amigas Milagros, Gloria, Sonia, com as "meninas", como as apelidou o Maura. Vejo-as sempre, mas sem o companheirismo do ano anterior. Por que? Porque sim. Milagros está com o filho que veio dos Estados Unidos. Um jovem alto, belo, inteligente, que ela exibe com orgulho. Glória - dizem - está saindo com um pretendiente, ao que tudo indica com dinheiro. É possível que o costume da ilha obrigue, em situações assim, a que mulher se recolha, dê provas de dedicação ... Ramón ficou apenas nas piadas, e deve ter desistido do assédio.
Maura, vejo-o sempre na EscueIa. Vive afundado em rotinas burocráticas, depois de assumir a direção. Sempre solícito, prestativo. Nossas conversas são durante o almoço. Inteligente, culto, é a única pessoa com quem me aprofundo em temas menos triviais. Um diálogo em frações curtas, amenas, que podem ter seguimentos, que reforçamos depois com documentos, fotocópias, livros e discos, tentando ampliar os conhecimentos. Não frequento a casa dele. Vive com a mulher e filhos, em um recolhimento compreensível. Até há pouco estava sob a pressão angustiante da defesa de sua tese de doutorado em Pittsburg, fazendo sucessivas revisões de texto, que provocaram a queda de alguns de seus ralos cabelos. Ele nasceu na República Dominicana, mas já é cidadão norte-americano, com todos os direitos. (Estranho nascer em um país e adotar a nacionalidade de um terceiro, para viver em Porto Rico, mas é assim).
Fiz outras amizades, que não entraram no relato. Amizades que vão aparecendo, fiimando-se, dissipando-se. Coleguismos, companheirismos de circunstància. Professores, estudantes, funcionários e pessoas a quem a gente se relaciona por motivos sociais, de interesses comuns, de convivência. Simpatias, antipatias. Em verdade, a cordialidade é a constante na ilha. As criaturas são amáveis, hospitaleiras, um tanto ingênuas, provincianas, atenciosas. Bem diferente de outros povos onde a pragmaticidade e o carreirismo levaram a um objetivismo impessoal, a um aborrecimento nas relações humanas. Como-que aplicando a máxima de Sêneca de que as pessoas devem privar-se, evitar perder tempo com os demais.
(O filósofo estóico escandalizava-se com a facilidade com que as pessoas, solicitadas a dar seu tempo a outras, o faziam sem reservas, embora não fossem capazes de fazer o mesmo com os seus bens ... Dispostos sempre a perder tempo, mas não a ceder o património ... Para Sêneca, o bem mais precioso é o tempo, que não tem volta.)
Brasília, até há pouco tempo, era uma cidade de nómades burocráticos.

Gente que vinha para ocupar cargos públicos e que deveria retomar a seus lugares de origem. Por isso, comportava-se como se vivesse em hotel, evitando relacionamentos que não fossem úteis ou oportunos. Diferente de quem vive ou trabalha sempre no mesmo lugar, obrigado a ver e conviver com seus colegas de trabalho e de condomínio. Porto Rico é uma ilha onde os habitantes estão obrigados a uma convivência, entrando numa trama de relações pessoais que resulta em património, em referencial inestimável.
Vivendo em diferentes lugares, fiz grandes amizades e perdi o contato com elas, com as mudanças frequentes. Nem sempre se consegue manter contato permanente com todos os conhecidos. Alguns desaparecem para sempre, outros dão notícias ou tem-se notícias deles, por terceiros. E, lamentavelmente, alguns mergulham no esquecimento. Não importa quão importante e tão profundo tenha sido o nosso relacionamento. Ou volta-se a vê-Ios, a reencontrá-Ios, e não os reconhecemos! Nossos retratos na memória costumam ser estáticos, quando não se apagam. Estar diante de alguém que o abraça, o beija, que relembra intimidades mas que a gente não consegue reconhecer, é uma experiência desconcertante.
Quando eu tinha meus vinte anos, andando pela Argentina, participei de festas e de tertúlias literárias, convivendo com muita gente. Numa dessas oportunidades, uma jovem perguntou-me como eu forma irreverente, por certo ¬sem rodeios:
-Muito simples: é provável, ou certo, que eu vou esquecer os nomes, ou até as circunstàncias em que as conheci. Mas de cada pessoa guardo um retrato particular. Mais que um retrato, uma caricatura em que sobrevive apenas um traço, um detalhe, algo que a distingue: os olhos rasgados, uns lábios provocativos, uma voz acariciante, um cacoete, um gesto de descortesia, enfim, alguma coisa que acaba irremediavelmente identificando alguém. Nem sempre é o mais característico das pessoas, pois nem sempre se tem tempo para conhece-Ias.
A jovem interrompeu-me. Não queria uma explicação elaborada. Estava apenas desejando que eu a notasse. -
- Entendi. E, de mim, o que vai se lembrar?

Observei-a com cuidado. Era um tipo comum, sem maiores distinções. Um rosto nada marcante, um físico como qualquer outro e pouco ou nada sabia de sua personalidade. Respondi:
- Vou me lembrar sempre de você como a do bumbum.
Uma gargalhada geral. A jovem tinha nádegas empinadas, enormes, desproporcionais. Ela fingiu que achou graça, e perdeu o interesse por mim. Eu nunca a esqueci.



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Próxima crónica da série: (51) VIVER A PRÓPRIA FANTASIA

Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.
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