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cronicas-->VIVER A PRÓPRIA FANTASIA -- 17/11/2006 - 17:43 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 51ª. crónica da série*. São crónicas independentes não obstante formem uma sequência, na intenção de uma crónica de viagem contínua...)


(51)
VIVER A PRÓPRIA FANTASIA


"No es tan solo que lo inesperado es parte deil viaje,
sino que es el viaje ..."
Federico Fellini

Gloria estava sempre sorrindo, irradiando simpatia. Houve um momento em que nosso companheirismo parecia enveredar-se em insinuações e reticências. Tinha-a tão perto de mim, sempre afável e gentil. Um dos filhos não nutria grandes simpatias por mim. Olhava-me com certo ciúme, sempre a uma distància prudente. Era justamente o mais jovem, o que vivia com ela.

Numa das idas à praia de Dorado, notei como crescia aquele relacionamento. Sentí-me ridículo, como que cortejado, percebendo um corpo tangente ao meu, receptivo. Gloria é uma criatura sem defesas, intuitiva, extremamente verdadeira em sua forma de relacionar-se com as pessoas.

Dias depois flicamos sozinhos no apartamento, na penumbra da sacada, olhando as luzes da cidade. Uma vertigem, um borbulhar de champanha às vésperas do Natal. Como disse Ruben Darío, em palavras mais transcendentes, "poniendo en un amor de exceso / la mira de su voluntad". Não durou muito, mas o suficiente para dar a conhecer um tanto de nossas carências, e o abismo que nos separa. Despedimo-nos com a certeza de um fracasso, que dissimulamos com extrema piedade. Por que deve o homem sair sempre vitorioso de tais circunstàncias? Até que ponto deveríamos levar a sério algo que talvez nem brotasse de nossos sentimentos, mas de sua ausência?

Voltamos a ver-nos, mas não éramos os mesmos.

Quando eu tinha meus treze anos, um companheiro de escola, mais velho do que eu, olhava-me sempre, e com certa curiosidade. Mas evitava¬-me também. Ele era o atleta e participava das competições externas da escola. Trazia troféus e provocava admiração e inveja nos colegas.


Muitas vezes, temia-o. Era forte, violento. A mais de um havia agredido e, por isso, algumas vezes ficava detido nos fins de semana. Estávamos num internato, longe de nossas famílias. Chamava-me a atenção que, além de praticar esportes, estudava e lia sempre sozinho, e escrevia num caderno de forma tão pausada e circunspeta que eu jurava ser para e próprio deleite. Eu também escrevia assim, nos meus instantes de ensimesmamento e distanciamento. Apenas para mim, como protegendo-me do mundo.

Os semestres corriam vagarosamente naquelas circunstàncias, contando os dias que faltavam para as férias. Eu estudava um pouco, e lia muito. Lia os livros da biblioteca e, em muitos, encontrava a assinatura dele nas fichas de empréstimo. Passei então a tentar adivinhar que livros ele havia lido, para Iê-Ios em seguida. Foi quando descobri as obras de Joaquim Manoel de Macedo e as novelas de Hermann Hesse, que me levaram ao encantamento. Não as entendia bem, mas deixava-me envolver em todo o seu fascínio, palavra por palavra. Às vezes ele deixava o livro que estava lendo sobre a mesa e eu podia ver-lhe o título. Era um diálogo à distància, quase impossível em virtude de nossa diferença de idade .

Mas houve um instante em que o tive perto de mim. Veio defender-me de
uma agressão de outro garoto. Eu tinha tudo para perder naquela briga. Os demais meninos atiçavam-no contra mim e exigiam de mim uma resposta ao desafio. Foi quando ele acudiu-me na iminência de um massacre. Saíram blasfemando. Acompanhou-me até ao pátio, em lugar próximo aos guardas e foi-se, sem dizer uma palavra sequer, e sem olhar para atrás. Nem tive como agradecer-lhe a proteção.

Quando chegou o fim do ano, era também a despedida de sua turma. Ele partia para sua cidade de origem, no sul. Eu já estava com a sacola pronta, esperando pelo meu pai e entretia-me em conversas com os colegas. Ele veio falar comigo. Fiquei um tanto surpreso, assustado e também fascinado. Disse que queria entregar-me um envelope e que o acompanhasse. Fomos até ao jardim, onde ele, vencendo certo nervosismo, disse que escrevera uns versos para mim e que os guardara durante dois anos, e queria entregá-Ios antes da despedida mas na condição de que eu os lesse depois. Apertou-me a mão com certa cerimoniosidade e nervosismo, e desapareceu para sempre.

Os versos falavam de um amor impossível, que não ousava pronunciar o seu nome. Tempos depois descobri que Oscar Wilde havia usado a mesma expressão; ele a teria descoberto na nossa biblioteca.

Voltei a lembrar-me do jovem atleta ao ver o filme IL Viteloni, do genial Fellini. O filme é de 1953, filmado quando eu tinha 13 anos de idade. O cenário é uma cidade do interior da Itália e os personagens são jovens vazios, tentando matar a chatice de suas existências. Um dos rapazes do grupo é mais circunspeto, mais retraído. Faz amizade com um menino, nas madrugadas de sua província. No final, ele parte no trem. O menino quer saber a razão de sua partida. Ele limita-se a dizer que deve partir. Aquele lugarejo resultava já demasiado pequeno para ele, estreito demais para contê-Io. Na genialidade de Fellini, bastou a metáfora do rosto bonito do menino despedindo-se e desaparecendo nas brumas da manhã, enquanto o rapaz partia para viver a sua própria fantasia. Uma dilacerante fantasia.


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Próxima crónica da série: (52) CONDICIONAMENTOS

Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de crónicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as crónicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.


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