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cronicas-->ANTROPOFAGIA [CINEMA BRASILEIRO] -- 17/11/2006 - 18:49 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 53ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem uma sequência, na intenção de uma crónica de viagem contínua...)


(53)
ANTROPOFAGIA [CINEMA BRASILEIRO]


Durante um festival internacional de cinema celebrado em San Juan, no ano passado, senti a falta do cinema brasileiro. Apesar da crise económica de Cuba, a Ilha de Fidel mandou duas produções avidamente concorridas pela audiência. Vidas Paralelas e EI Reino de Este Mundo, esta última baseada no célebre romance de Alejo Carpentier. Nada fantásticas, numa temática tão desorientada como a que predominava no último período do Cinema Novo ...

Em conversa com o jovem Almeida Prado, que apresentava o único filme verde-amarelo do evento - Perfume de Gardênia -, constatamos que o cinema brasileiro continua moribundo depois do Collor. Mas a crise já vinha de longe.
O filme do paulista agradou-me. Bem feito, apesar da economia de meios. Criativo, bem dirigido. Mas estava longe de ser uma obra prima, distante daquelas propostas ousadas e polêmicas que caracterizaram o Cinema Novo.

A reação de minhas amigas Gloria, Milagros e Sonia, que me acompanhavam e serviam de termómetro, foi de simpatia mas não de entusiasmo. Gostaram, e ponto final.
Senti um tanto de inveja e perplexidade ao ver que nações africanas e asiáticas, antes sem qualquer tradição cinematográfica, estavam presentes ... E bem representadas. Mas o cinema francês e o italiano, tão fortes e inovadores durante décadas, estão encolhidos enquanto os espanhóis aparecem e brilham.

Parece que o cinema de alta tecnologia está superando o da inventividade do autor. Televisão a cabo e locadoras de vídeo educam as novas platéias, na alienação nossa de cada dia.
O Cinema Novo foi o melhor, porque era impossível. A frase é do Roberto Sganzerla, o ousado criador de Bandido da Luz Vermelha. Carlos Diegues, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Miguel Faria, Nelson Pereira dós Santos e Walter Lima Jr, no épico manifesto "Luz e Ação" - estavam convencidos de que a invenção permanente é o que distingue um bom filme dos demais. Mas devem ficar perplexos ao constatarem a invenção de "efeitos especiais" que superam a própria temática - ou que se convertem em temática ... - Efeitos que fascinam platéias inteiras, que já não crêem nas idéias mas na forma espetacular em que são colocadas, idéias carentes de idéias, mas plenas de truques e magias ilusionistas. Uma nova estética?

Estamos longe daqueles tempos heróicos em que o Carlos Estevam pregou a arte popular revolucionária. Fora dela não haveria outra forma de arte. Arte burguesa não era arte, arte do povo tampouco, nem mesmo a arte popular, inspirada na arte do povo, era arte para os radicais do Centro Popular de Cultura. Mais abominável de todas as artes era a arte pela arte dos intelectuais ... Eu estava lá na leitura do Manifesto. Vibrei, aplaudi, mas saí assustado, com a dúvida de ser mais um alienado ou um pequeno-¬burguês ... O Ferreira Gullar também estava e logo publicou o pior livro de poesia de sua vida. E ele é um dos nossos melhores poetas. Logo depois queimaram o prédio da UNE.

(Por certo, também publiquei um poema "engajado" no jornal do Partido, com o pseudónimo de Da Nirham Eros. O Grabois fez retoques. Justificou que minha linguagem era revisionista. Eu que saía em marchas de rua contra a censura oficial fui censurado pelos cànones do realismo soviético ... Nunca mais voltei à redação do jornal, nem para recolher minha máquina de escrever, antes do empastelamento que sofreu por parte da polícia e de grupos direitistas).
Felizmente, o Cinema Novo rejeitou a fórmula do realismo soviético.

Nosso cinema só chegou a La Habana, nunca teve acolhida entusiástica em Moscou. Ficou para o consumo dos intelectuais de esquerda da Europa e da América Latina, pois tampouco conquistou o povão, que preferia as chanchadas e ao sonho a la Hollywood. Reinventar a técnica do cinema dentro da "estética da fome", combinando a crueza do neorealismo italiano com as divagações metafísicas da nouvelle vague, resultava um exercício de experimentalismo, ainda que genial em todos os sentidos, francamente elitista ...
Depois da Embrafilme e da tentativa de criar um mercado comum latino¬-americano para o cinema continental (proposto pelo Roberto Farias), veio a crise. E o cinema brasileiro, numa posição mais madura e mais pluralista, já produzia para todos os públicos, e já conquistara um público cativo, mercê da reserva de mercado mas também por sua qualidade e diversidade. Mas nunca chegou à televisão, salvo por exceção.

Durante os tempos difíceis do Geisel, quando ainda havia tortura e censura, o cinema era combativo e até audacioso, apesar das queixas de cooptação e (possível) auto-censura. Creio que foi o lúcido Gustavo Dahl, diretor da distribuidora da Embrafilme, que entendeu que cinema, em qualquer circunstància, é uma indústria e que precisa de mercado. Não pode viver eternamente na clandestinidade, sob pena de nunca ir ao público que pretende transformar. Ele estava consciente dos riscos do patrocínio estatal ao cinema, mas também consciente da diferença entre Estado e Nação. O apoio estatal era imprescindível e era uma conquista da Nação, desde os tempos de Vargas, que independia do regime de turno, que podia ser uma circunstància negativa, mas a ausência de recursos era igual ou mais negativa, na medida em que impedia a existência da industria ...

As co-produções do ciclo final do Cinema Novo eram tão cooptantes quanto as da Embrafilme, com o agravante de que obrigava a uma estética do "exótico" para agradar o financiador, como está acontecendo nas co-produções de Cuba com a televisão espanhola de nossos dias ...

Dahl tinha até mais desconfiança de nossas "elites democráticas" do que dos militares. O jornalista Carlos Castelo Branco dizia a mesma coisa. Foram as elites que apoiavam Collor que, em nome da livre iniciativa e das leis do mercado, acabaram com a Embrafilme, no mesmo instante em que a França, com seu cinema ameaçado, volta a legislar para garantir a sua sobrevivência. Mas que não se entenda como simpatia pelos militares, mas apenas como estratégia de sobrevivência, quando se sabe as contradições do regime e se pode tirar proveito da circunstància para um projeto mais transcendente. Em outros termos, uma visão flexível e dialética, em contraste com a visão suicida e radical de outras lideranças.
Mas Glauber e os nossos cineastas não teorizaram apenas sobre cin¬ema. Resulta impossível entender a arte que eles criaram sem ler os seus manifestos e entrevistas.

Todos coincidem em que o Movimento Modernista de 1922 foi a primeira grande e verdadeira manifestação de arte nacional, embora nas formas reconhecíveis pelas elites. Não necessariamente as elites económicas e políticas- que são tão analfabetas, ou mais, que as minorias miseráveis, ¬mas as de intelectuais e da classe média. Inventou-se a antropofagia cul¬tural, a capacidade de devorar modelos estrangeiros e vomitar fórmulas novas, híbridas, sem compromisso maior com as origens.

O Cinema Novo foi a própria festa do Canibalismo. Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) e Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) devoram tudo, até o espectador, que não sabe se está na tela ou na platéia, que se sente convidado a uma festa em que é comido e_ vomitado. Macunaíma, repetindo as propostas de um universal a partir do nacional de Mario de Andrade, já no período eclético e udigrudi do Tropicalismo, revelava toda a força miscigenadora própria de nossa cultura.

A Idade da Terra, o polêmico filme de Glauber Rocha não conseguiu financiamento na França, nos EEUU, na Itália nem no México, mas acabou sendo financiado pelo governo Geisel, que pretendia devorar. Os censores devem ter saído da sala de exibição convencidos de que, se não entenderam, tampouco representava perigo para as massas ... Intuição dos burros, que não deve ser subestimada. O Grabois, bem mais inteligente, teria mutilado metade das cenas que não obedeciam ao catecismo realista. Teria censurado até o próprio Eisenstein, por hermetismo.

O certo é que as nossas elites continuam devorando a gente. Sem piedade, e sem a Embrafilme. Pelo menos a Embrafilme colocava o problema e trazia algumas mensagens de esperança.

Metadados: Cinema brasileiro; Cinema Novo; Embrafilme
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Próxima crónica da série: (54) NA FORÇA DAS ÁGUAS REVOLTAS

Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.
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