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cronicas-->NA FORÇA DAS ÁGUAS REVOLTAS [E DRUMMOND NAS ENTRELINHAS] -- 17/11/2006 - 19:14 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 54ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem uma sequência, na intenção de uma crónica de viagem contínua...)


(54)
NA FORÇA DAS ÁGUAS REVOLTAS [E DRUMMOND NAS ENTRELINHAS]


"Aprendi desde cedo a viver para dentro, construindo o meu mundo porque não me adaptava ao de fora." Carlos Drummond de Andrade.

Encontro-a no laboratório de informática reservado aos professores. Ela levanta os olhos, como para expressar que está sendo incomodada e mergulha logo no trabalho, sem comentários. Judith é primitiva e verdadeira em sua expressão. Não disfarça seus sentimentos, por mais rudes que possam parecer. Dá a entender que chegou primeiro, que está ocupada, que não quer ser perturbada, que qualquer distração pode tira-la de sua concentração. Era sempre a única a usar, com regularidade, aquele espaço, quase só seu. Ninguém jamais tentou interrompê-la, reconhecendo um direito por razões que nem se pretende questionar.

A minha presença altera as regras do jogo. Eu também tenho direito, mas não há por que discutí-Io. Meu direito deve ser posterior, sem prerrogativas.

Quando ela chega e eu estou trabalhando, olha-me como a um invasor de seus domínios e demonstra incapacidade de manejar a situação. Apenas apela para a necessidade e premência de sua necessidade, sem inquirir se eu, ou quem quer que seja, acaso tem também urgência. Mergulhada na angústia de sua obrigação, está convencida de que deve trabalhar quando precisa, não pode esperar. E as pessoas jamais discutiram se isso era ou não legítimo; ao contrário, reforçaram nela a certeza de que a sua necessidade era, por sua natureza inquieta e impaciente, imediata. Os demais, no seu juízo, têm outra noção de espaço, de responsabilidade e de timing.

Alguém disse que Judith é como uma criança acossada, corm a obrigação de um dever a cumprir. Ela tem que cumpri-lo. E deve pensar que os demais não têm o mesmo nível de compromisso. Mas não é sequer por egoísmo, é como expressando sua própria responsabilidade, para que fique patente, ostensiva, para que todos possam certificar-se. She is committed. Precisa ter tudo sob absoluto controle, que demonstre a todos esse domínio absoluto das coisas, como para precaver-se, defender-se. Não é capaz de trabalhar com o improviso e o imprevisto.

Tento conversar com ela, na praia. Ela sempre revela uma extraordinária modéstia e está eternamente disposta a aceitar críticas. Começo, com dificuldade, a penetrar o labirinto de suas regras e crenças. A religião ajuda-a a identificar-se e a relacionar-se. Não é das que aceitam ensinamentos sem questionamento, mas nunca os coloca no risco de rejeitá-Ios. Tradição e razão são forças opostas, mas também são uma ponte segura para transitar, para interpretar questões contraditórias.

No revolto das ondas ela volta a ser criança, a brincar e a ser feliz por inteiro. Outra pessoa confessou-me que Judith é, sem sombra de dúvida, buena gente, no sentido de que jamais ataca ou ofende para atacar ou ofender, que nunca quer o mal para os outros. Nem sequer disputa posições, ou privilégios; ao contrário, não os deseja. Pulando e mergulhando na água, quase cega sem seus óculos, ela converte-se numa pessoa frágil e satisfeita. Pede-me a mão para enfrentar a violência da corrente de água, até trazê-Ia à areia da praia. Ri de sua fraqueza. Instantes depois, no trajeto de volta, agradece-me pela mão segura que a ajudou. Com certo orgulho, com uma pura manifestação de simpatia. Comovente.

Acabo descobrindo a minha própria impaciência e intolerància. Mas sei como disfarçá-Ias, com uma certa piedade por meus próprios defeitos. Disfarço melhor a minha insegurança, manejo quase à perfeição o improviso e a minha incapacidade de impor-me um rigor mais científico ou metodológico aos meus argumentos. Não raro envergonho-me de minhas convicções, por cegarem a minha visão mais ampla dos fenómenos; sinto algum pudor pelo manejo excessivo da intuição e da auto-estima.

Descubro que Carlos Drummond de Andrade era muito mais inseguro do que eu. Drummond era frágil e insatisfeito de si mesmo. Parecia isolar-se do mundo, no mundo exclusivo de suas poesias e de suas cronicas de igual lirismo, para disfarçar o que ele, em carta enviada a Alceu Amoroso Lima, considerava a sua precária educação acadêmica. Não passava de um profissional fracassado das artes farmacêuticas e sua capacidade não ia além das leituras de ficção e poesia. Sem os rigores dos especialistas em literatura. Prudente, nunca meteu-se no campo da crítica ou do ensaio. Evitava atividades sociais e não aceitava convites para dar conferências.

Só uma pessoa tão grande era capaz de ver a sua própria limitação. E a limitação de Drummond parece tê-Io defendido do maneirismo e cacoetes intelectuais, deixando fluir em toda a sua criação uma intuição formal a um tempo criativa e rigorosa. Creio que só mesmo no campo da poesia é que conseguia segurança suficiente para ousar teorizar. Não era de fazer manifestos mas fez poesia sobre a própria poesia. Metapoesia.

"Vou por um desvio, que é escuro e sem alegria, e não tenho certeza de chegar ao fim", confessou - esta foi a palavra que ele mesmo usou - ao maior pensador cristão do Brasil, que foi Amoroso Lima. E Drummond era um quase-ateu, sem convicção religiosa por "deformação" de uma educação incipiente, segundo seu próprio juízo. Para um mineiro que nunca renunciou ao seu provincianismo, tal falta de religiosidade era, sem dúvida, um terrível defeito. Que o teria levado ao abandono de si mesmo, conforme suas próprias queixas.
Quase como auto-flagelando-se, o maior dos poetas brasileiros confessa-se impotente diante de seu dualismo de estudante que conquistava prêmios e o rebelde e insubmisso que se escondia em suas entranhas.

Eu sempre assumi, com muita lucidez e cinismo, tal contradição, se ela não é a própria essência, ou dialética, do processo de aprendizagem.

Descobrir a angustiada humildade de Drummond, longe de consolar-me, leva-me a uma confissão de soberba, imprópria para os autodidatas, no julgamento do próprio bardo mineiro ...

Ao contrário, Judith professa uma franciscana culpa por sua ignorància e, como penitência e devoção, consome-se e auto-flagela-se para ter um mínimo de auto-estima e segurança no domínio do conhecimento. Deve ser o exato caminho dos sábios.
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Próxima crónica da série: (55) PRESENÇA DO BRASIL

Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.
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