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Contos-->PASSEIO PELA IGREJA, PELO MUSEU E PELA LIVRARIA -- 08/05/2001 - 18:14 (Eloá França) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Vontade de Andréa de se matar. De que alguém o fizesse por ela. Não por ela, mas no lugar dela. Não ao lado de Rafael. Era muito feliz perto dele para lembrar-se disto, de que era feliz porque havia a possibilidade. Era muito feliz.

Talvez se Andréa percebesse a vontade, visse-a com toda a coragem que pudesse arranjar, a adiaria interminavelmente só pelo prazer de ser feliz. Havia alguém. E Andréa tocou os cabelos de Rafael num primeiro gesto totalmente esquecida de que ele poderia negar-se, certa de que ele cedia, mas soltou-o antes que ele se tornasse incapaz de qualquer ato.

Rafael vacilara. Tinha saudade. Saudade de si mesmo. Vontade de existir maior que qualquer coisa que a pudesse romper. Estagnara-se algum tempo, e era muito tempo, ele precisava recuperar-se. Por isto amolecera nas mãos dela esquecendo-se até que havia algo que não o fazia ceder. Era nisto que ele se negava a Andréa. Era nisto que Rafael encontrava coragem para não se matar no lugar de Andréa, mas para se matar em seu próprio nome.

Escapar. Vasculhar tudo que estivesse ao redor, reparar em cada deslize dos objetos. Tudo era para ser destrinchado. A folha seca e miúda, quase imperceptível, no canto do painel. Apenas Rafael a via. A quem oferecê-la? Rafael tinha vontade de oferecer a folha seca e miúda a Andréa.

Fingir-se ausente. Contrair os músculos da face e esboçar felicidade longe dela. Pousar a mão na folha e só poder oferecê-la a Andréa. Só a Andréa interessa o gesto da folha que pode oferecer. A folha seca e miúda no canto do painel.

Depois reparar no sorriso dela. Alegria que nele dava mais vontade de consolá-la do que felicidade. Sua própria tristeza? Não, era Andréa quem pedia consolo.

Os olhos que deixavam lentamente os quadriculados da parede, encontravam sem querer os de Rafael e se desculpavam pela ousadia. Ousavam gostar. Ousavam. Sentimento que crescia. Desespero para se caber dentro dele sem vergonha. O apelo a Rafael. A dor pela força de Rafael, que isto continuasse indefinidamente entre eles. Repulsa pela naturalidade dele. A negação. Andréa foi se soltando. Rafael nada lhe podia dar. Voltava. Nada além de ilusão. Nada. Nada além de poder caminhar em compasso com ele.

Rafael aproveitou-se daquela Andréa solta no ar. Tomou-a para si, afagou-a. Tirava-a do alcance do desejo, aproveitava o amolecimento do ser de Andréa, sua dificuldade de agir, de se reencontrar com o que a pudesse mover. Aproveitava a fragilidade de Andréa para ser a ponte com o real e adquiri-la por posse.

Linha por linha. Traço por traço. Os santos e os significados. Imagens. Tocar com a alma. A sensualidade que os santos provocam. Os altares atrás de vidros, fechados, vidros quase foscos. O mistério que carregava Rafael para o desejo além de Andréa, além do prazer que Andréa pudesse dar. Dele, que apenas nele podia começar e terminar.

- Está aqui a carta.

Andréa já se soltara de seus afagos. Pronta para ler. Os óculos tirados da bolsa. As costas retas e os cabelos jogados para trás.




A carta dele. Rafael mostrava-se. Contava-lhe da sua vontade de se matar toda vez que está em perigo. Ameaçado de amar mais do que pode. Da negação de amor a ela: a alegria dele perto dela.

A velha cruzou-lhe o caminho. Sim, quando levantava os olhos da carta para apoderar-se melhor da negação. Observou a velha, a longilineidade com que seus olhos conseguiam se mover, o rosto fino que merecia estar mais escondido sobre as rugas.

Rafael aproveitou para convidar Andréa a sair da igreja. Ela parou. Por que tanta naturalidade? Que Rafael tivesse um pouco de medo. Medo e silêncio.

Saíram da igreja.




- Por que na igreja, Rafael? Por que não numa livraria?

- Na igreja para eu poder te oferecer a folha seca e miúda e agora lhe perguntar o que você acha do meu sapato novo.

- Folha seca e miúda?

Gesto falso de enfastio de Andréa. A folha seca e miúda introjetou-se nela.

- Quanto ao sapato não queira saber o que acho. Eu não vejo. Vejo você calçando o sapato novo. Não vejo o sapato.

Melhor ignorar o rosto trágico de Andréa. Não perguntar o que há. Não se comprometer.

- Vamos ao museu?

- Museu?

Andréa vai ser levada ao museu. Por Rafael.




Os músculos da face de Rafael voltaram a se movimentar. Só Andréa sabe. Só ela vê. Os músculos mexem mais quando ele quer algo impraticável como agora que está com Andréa e o que queria mesmo era estar com Andréa. Rafael sente como se não estivesse com ela.

Há outra coisa porém: Rafael é quem sempre escolhe aonde vão, mas é Andréa quem determina como vão. A irritação de Andréa. Mas ela tem de resgatar Rafael. Colocar os olhos nos olhos dele, retomar o amor por Rafael mesmo que esteja cansada de sua negação. Rafael a recebe para isto. Rafael está lá para que Andréa o ame.




Intermináveis curvas. Brancas, lisas, escorregadias. Deslize as mãos pela estátua e não terás vontade de parar. Saudade faz a gente pensar que o outro é outro. É proibido colocar as mãos nos objetos de arte. Distancie-se deles, olhe-os por todos os lados e aos poucos se reconcilie. Com Andréa. O sorriso de Andréa. As cores extravagantes da tela, as formas obtusas.

Resgatada está a relação. Real é o que Andréa é. Escada em caracol. Andréa estabanada pode cair mas prefere correr o risco a pegar a mão de Rafael.

Escorrega. Cai. Roxo na perna. Ainda resta um sorriso quando a dor é pouca. A mão fácil de Rafael. A mão que quer estender e que fingi não querer estendendo.

- Dói?

- Não. Às vezes preciso apanhar para me lembrar de que sou feliz.




Silêncio. Silêncio porque o que vem é proibido. Silêncio de Rafael. Espaço para o outro. Para Andréa tirar os olhos dele e escutar seu próprio som. A dor. Confiança em Rafael. Que ele se mate no lugar dela.

Constrangimento. Quando o artista acerta nas cores e formas que joga na tela, ele sabe que acertou. É a moldura que vai constrangê-lo. O silêncio que se deixará até que surja a idéia de revestimento certa.

O cinza dentro dos olhos do homem. Isto é técnica. Pode o artista ter sido artista no momento de colocar o cinza nos olhos do homem? O cinza nos olhos do homem é o mesmo cinza que Andréa vê em toda a superfície, pele, de Rafael.




Era a hora de se tocarem. Mas não se tocavam. Andréa precisava mentir.

- Ontem eu vi um homem caminhando. Fim de tarde. Eu me lembrei de você vendo o homem caminhar.

- Por que?

- Porque havia sol, eu estava na rua e o homem caminhava.




Agora sim, Rafael levaria Andréa a uma livraria.




- Eu estive louco. Fingi que estava louco.




Incógnita.




- Recolhi as flores de um jardim.




- Coloquei-as na sepultura de uma mulher. Fingia ser o amante dela.




- Apalpei seus seios na fotografia.

- Ela também te amava?

- Ela estava morta.

- Ah.




Havia uma mulher encolhida no canto da loja. Enroscada em volta de si mesma. Enroscada. Olhar de Andréa. Fugidio. Olha até certo ponto. Rafael olha até anexar o ambiente. Andréa faz perguntas para evitar o sentimento. Teorizar. É irmã da dona da livraria. A irmã faz tudo por ela. Andréa fingi compreender a mulher compreendendo a irmã.

A mulher se desenrosca e começa a dançar. Cantoria arrastada. Sandália velha acompanhando a cantoria. É feliz a mulher? Tem o amor da irmã. Andréa precisa do amor de Rafael, que ele não fuja, olhe a loucura fora do limite dele. A mulher volta para o canto. Enrosca-se.





- Vamos ver os livros.




Como se puxasse o braço de Andréa para que ela vá mesmo com ele. Mas como ela pode ir? A mulher louca no canto da loja. No canto da loja. No canto da loja.




- Não quero ir.




Há um cansaço. São seis horas. A cidade nesta hora sufoca.




- Rafael, estou cansada de te amar.




- Rafael, é o fim.

- Qual?

- Rafael, tire os seus olhos de lá e me escute. É o fim.




Caminham os dois pela rua. Não há gente. Não há santos. Não há exposição. Não há livros.




Há o vidro fosco do altar. Há a superfície lisa da estátua. Há a mulher louca no canto da loja.




- É o fim, Rafael.




- Não falas?




- É o fim.
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