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Contos-->A Falecida e *A Fantasma -- 12/06/2012 - 15:03 (Berenaldo Ferreira e Séia Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A FALECIDA E *A FANTASMA

Ao volante do carro, o homem seguia pela estrada que parecia não ter fim. Ele só enxergava o asfalto e as faixas brancas de sinalização que ora eram contínuas, ora interrompidas. Ouvia Schubert, Sinfonias três e quatro.
Sua essência estava abalada! Sua expressão era de incredulidade. O pé pisava fundo no acelerador e o marcador acusava a alta velocidade que o veículo já alcançava. Não havia ligado o ar condicionado, preferiu deixar a janela aberta, entretanto sentia-se sufocado. O vento constante despenteava seus cabelos, e regularmente soltava uma mão do volante e passava-a por eles, tentando alinhá-los inutilmente.
Bartô tinha acabado de ver sua esposa nos braços de um outro homem, e para sua surpresa, era um jovem de dezesseis anos a menos do que ela, que já tinha trinta e seis.
Ele não podia acreditar! Ficava pensando em tudo, desde o momento em que havia saído da empresa, e por coincidência vira o carro dela parado. Pensou que havia acontecido algo. Fez o contorno na praça, voltou, e quando já estava estacionando, viu-a descer do veículo entregando as chaves ao garotão que chegara rindo, e tomando-a pelos braços e cintura. Ela não se esquivou, ao contrário, aplicou-lhe um ardente beijo na boca. Embasbacado não reagiu, vendo o casal entrar no carro. Saíram cantando os pneus rumo à Rodovia Raposo Tavares. Não era preciso segui-los para concluir qual seria o destino dos amantes.
Bartô sabia que ela estava morta para ele. Não queria vê-la, nem falar-lhe e não havia tão pouco perguntas a serem feitas. As imagens bastavam por si só. Eram suficientemente fortes e seus advogados fariam o resto. Para ele, ela era “falecida”.
O embate havia sido duro. Ele se imaginava com enormes apêndices duros sobre sua testa. Este pensamento deixava-o enfurecido e batia fortemente suas mãos contra o volante.
Havia rodado muito. A velocidade, a música e o vento arejavam sua mente e já podia voltar para casa.


Lá chegando, notou certo movimento estranho. Pensou na possibilidade de parentes e amigos já estarem sabendo do adultério da “falecida”. Estacionou o carro. Já ia descendo quando um amigo íntimo veio ao seu encontro e disse-lhe que sua esposa havia sofrido um acidente fatal na Rodovia Raposo Tavares, nas proximidades do Motel Rarus. O rapaz a quem ela provavelmente dera uma carona morrera também.
Bartô, num caos de sentimentos e sensações começou a rir, provocando um enorme celeuma entre os parentes e amigos presentes, que preferiram acreditar que o riso fora por conta do susto, isso após muita inquietação.
Os féretros dirigiram-se ao mesmo cemitério e para o mesmo jazigo. Esta fora a vontade de Bartô, já que haviam morrido juntos, fazendo com que os familiares do rapaz assim aceitassem: “Quisera o destino que a Falecida tivesse dado carona ao jovem, que veio a falecer ao seu lado”. Fora melhor assim, sem precisar se expor a parentes e amigos. Seu nome e sua honra estavam protegidos...


Bartô agora queria apenas recomeçar sua vida. Pensou então em procurar uma namoradinha de adolescência.
Logo ao chegar em seu escritório na empresa, ligou para um detetive e marcou horário. Pontualmente às dez horas ele chegou. Ouviu-o e anotou a data de nascimento e o local onde morava quando adolescentes. Recomendou ainda discrição e contato diário com ele. Estava com idéia fixa, querendo reencontrar a todo custo aquela pessoa.
Os dias se passaram, o detetive, conforme fora combinado, enviava-lhe relatórios diários sobre seus progressos. Bartô estava cansado de tanta demora. Além de tudo, coisas estranhas vinham acontecendo há alguns dias: A campainha tocando, sem que houvesse alguém do outro lado da porta. Outras vezes era o telefone que ficava mudo completamente após alguns chamados.
Certa noite, já recolhido em sua cama, ouviu alguém chamá-lo. Assustado, levantou-se, acendeu a luz do quarto e perguntou com voz entorpecida, quem era. Parou no corredor, esperou por uma resposta, mas nada, nem um só ruído. Intrigado, voltou para o quarto, certo de que havia imaginado coisas. Após apagar a luz, deitou-se mais uma vez. Minutos depois passou a ouvir sussurros que se transformaram aos poucos em chamados mais fortes:
- Bar...tô! Barr...tôôô!...
Desesperado, amedrontado, pegou sua arma que estava dentro de uma pequena caixa preta, com cadeado em cima do guarda-roupa, e em pânico começou a percorrer todos os cômodos da casa. Não havia ninguém! Mais uma vez atribuiu tudo aquilo à sua imaginação, e pensava tudo ter sido devido ao que sucedera anteriormente.
No dia seguinte levantou-se, arrasado e deprimido. No escritório, todos perceberam que o amigo não estava bem. O detetive ligou-lhe informando que já possuía o número do telefone da moça, Bartô sentiu-se como que revigorado, apesar do cansaço resultante da noite passada em claro. Mesmo assim resolveu ligar para ela sem hesitar. Por várias vezes quem o atendia era a secretária eletrônica. Não achou correto deixar recado. Resolveu que continuaria tentando quantas vezes fossem necessárias, até que conseguisse falar com ela.*
Monótona e esfumaçada era a vida de Bartô. Um ser único. Disputador e desafiador daquele seu amplo universo interior. Aparentemente demonstrava ser apenas aquela enigmática figura, solitária e encafuada em seus aprisionados pensamentos misturados em duvidosas ações.
Já atordoado devido às diversas vezes que ouvira a mensagem gravada na secretária, retumbava em seu ouvido o final da mensagem:
- Um abraço,... Tchau!

Após exaustivas tentativas, decidiu ir para casa descansar. Retornaria à tarde ao escritório. Em casa ligou mais uma vez. Já havia até decorado o número. Ainda não foi desta vez! Subiu as escadas, tomou banho e deitou-se. Já nem lembrava mais do ocorrido na noite anterior... Pegou no sono e dormiu profundamente por toda a tarde e noite, nem ao menos voltara ao escritório.
No relógio, eram quase vinte e três horas quando, assustado pulou da cama. As cortinas do quarto pareciam voar. Lá fora chovia torrencialmente. Bateu a mão no interruptor e nada acontecia. – “Teria faltado energia justamente naquele momento? Não, não poderia ter acontecido isso num momento já por demais perturbador”. – Pensava ele. Desanimado, deitou-se mais uma vez. Foi quando num rápido instante, viu um clarão do corredor direcionando-se para seu quarto, adentrando-no e sendo tomado por uma pálida luz prateada que, agora, olhando bem formava a silhueta de uma mulher.
Bartô não podia acreditar no que estava vendo. Estariam seus olhos traindo-lhe ou estaria, talvez, enlouquecendo? Não, fosse o que fosse aquilo era real! Estava mesmo ali e ele estava apavorado: Não conseguia pronunciar uma só palavra, nem ao menos piscar os olhos, tal era o seu pavor. O clarão aproximava-se lentamente de sua cama e agora já era possível defini-lo. Sim, não havia dúvidas. Aquela imagem que a luz refletia era certamente a da “Falecida”.
Nada fora dito! Ele perdeu os sentidos, caindo ao lado da cama. Acordou no dia seguinte sentindo pontadas agudas na cabeça.


Com o raiar do dia, Bartô levantou-se e foi à janela para conferir se pelo menos havia chovido. Realmente ruas, calçadas, plantas, tudo molhado. Sua janela aberta... Ficou aterrorizado! Tinha certeza de tê-la fechado antes de se deitar, como sempre o fazia. Então... era tudo verdade!... Tinha visto mesmo a Falecida. Ela estivera ali, em seu quarto. Ficou desesperado, andando de um lado para o outro, esquecendo-se do horário e de qualquer outra coisa, quando seus pensamentos foram interrompidos pelo toque do telefone.
Não tinha coragem de atendê-lo. Ficou ali, imóvel e olhando temerosamente para o aparelho. Quem estaria do outro lado da linha? E se fosse ela? O que faria? – Pensava Bartô.
No quinto toque, como se estivesse saindo de um transe, com muito esforço conseguiu atendê-lo. Era Francisco, seu amigo e sócio querendo saber se estava tudo bem, pois ele nunca se atrasara ou deixara de comparecer ao escritório sem que o motivo fosse muito justo. Além do mais, havia saído cedo na tarde anterior, prometendo voltar e no entanto não o fizera, para espanto de todos, pois isso não era comum. Já passava de meio-dia e ninguém tinha notícias dele. Bartô disse-lhe que estava tudo bem. Resolveu contar-lhe tudo o que lhe acontecera, mas pensou no deboche, na incredulidade do amigo que era um céptico, um gozador. Assim, não lhe disse nada, falou apenas que estava muito cansado e resolveu descansar um pouco.
Já pronto para sair, pegou as chaves do carro e da casa. A caminho do escritório decidiu, do seu celular, ligar para a sua namoradinha. Mais uma vez nada conseguiu.
Enquanto dirigia pensava: “Agora tenho uma Falecida me atormentando a vida, e uma fantasma que não atende o telefone. Parece que vou enlouquecer de verdade”.


Os funcionários, habituados com o jeito do patrão, notaram mais uma vez que ele não estava em seu normal. Andava muito estranho desde a morte de sua esposa, com uma aparência muito cansada. Tinha costume de chegar ao escritório cumprimentando a todos individualmente, pelos seus nomes, sempre muito atencioso. Entretanto, ultimamente parecia estar no “mundo da lua”.
Chamou sua secretária, que por hábito, trazia-lhe o café matinal. Ele, enfurecido, disse-lhe rispidamente que ela poderia levá-lo de volta e providenciar um conhaque puro. Sem erguer os olhos, Clara deixou a sala da diretoria e saiu chorando para atender aquele pedido incomum devido aquele horário.
Já estava tomando o seu terceiro trago, quando entrou na sala seu sócio e amigo, perguntando-lhe o que estava acontecendo. Os porquês de seu ar cansado, da bebida, enfim, de tudo aquilo que não fazia parte de seu dia a dia. Ele continuava em silêncio.
Várias semanas se passaram e nada havia mudado. Bartô, confiando em Francisco, sócio de muitos anos, resolveu contar-lhe tudo: a coincidência de ter visto sua esposa naquela trágica tarde; tê-la seguido até a entrada da Rodovia; rodado bastante tempo sem destino e a surpresa ao retornar. O amigo ficou boquiaberto sem dizer uma única palavra, pois parecia ter sido pego de surpresa. Passaram-se alguns segundos, Bartô tomou mais um trago e contou das vozes que chamavam por seu nome sem que houvesse ninguém, pois ele havia conferido. As aparições da Falecida por todos aqueles dias, e das inúmeras e frustradas tentativas de contactar sua namorada de infância.
Francisco ouvia aquilo tudo incrédulo, e em nome da amizade, resolveu aconselhá-lo a tirar uns dias de folga para colocar as idéias no lugar, pois estava acreditando que todos aqueles acontecimentos estavam deixando o amigo um tanto quanto alienado.
Seguindo os conselhos do amigo, ele resolveu ir à sua casa de praia, apesar do frio e da chuva típica de julho.
Pelo fato de não estar bem, Bartô preferiu ir sozinho, pois não se considerava no momento uma boa companhia para ninguém.



A casa era muito agradável, de decoração simples, sóbria e ele mesmo fizera questão de cuidar de tudo pessoalmente. Aquele era um canto seu, pois a Falecida só havia estado lá por duas vezes. Ela preferia o apartamento de cobertura com piscina e vários outros luxos, o oposto de Bartô que mantinha suas mais íntimas origens. Ele resolveu que não beberia, não mais tentaria ligar para o passado e viveria somente o presente.
O sol de inverno apagava-se lentamente, já sem forças, e Bartô andava pela areia da praia. Vestia um moleton, uma blusa grossa com capuz, meias e tênis, quando ouviu alguém chamar pelo seu nome. Sentiu um frio na barriga e teve vontade de correr. Contudo, algo o impedia, e viu a Falecida iluminada, quase flutuando. Bartô engoliu a saliva que desceu rasgando sua garganta e sentiu vontade de vomitar em pânico.
Porém, buscou forças vindas de seu âmago, amainou-se e perguntou o que ela queria, com voz sóbria e ligeira. Ela respondeu-lhe que só queria trazer sua namorada de adolescência, e apontava em direção oposta a dela. Bartô voltou-se rapidamente e viu a bela Ângela caminhando sobre a água, em sua direção. Ele foi se afastando de costas, contudo, num piscar de olhos elas foram desaparecendo.
Por cerca de cinco dias, Bartô permaneceu na casa de praia e não atendia ao telefone. Francisco resolveu ir até lá para saber se tudo estava bem. Assim, encontrou-o sentado, sujo, no degrau da escada que dá acesso ao interior da casa, e o cheiro que exalava era terrível! Notou que o amigo estava degenerado, barba por fazer e banho por tomar, desde que vira a Falecida e a Fantasma. Ele havia ficado ali, sem sair para absolutamente nada, e só falava que as vira juntas, e juntas elas saíram em direção ao horizonte, flutuando sobre o mar.
O sócio internou Bartô em uma clínica de loucos. Lá ele ficou dias e dias incomunicável, e somente após uma pequena melhora, pode sair para a sala de estar junto com os outros internos da clínica, que assistiam à televisão. Ele pegou um jornal de uma mesinha, cuja data já denunciava ser velho. Começando a olhá-lo, uma reportagem lhe chamou a atenção:

“mulher de vinte e nove anos morre do coração em seu apartamento, e lá permaneceu por vários dias”...

Após ler toda a reportagem, notou tratar-se de Ângela que por suas contas havia morrido no dia em que o detetive a encontrara. Atônito, Bartô começou a gritar: “Falecida e Fantasma”, incessantemente, atraindo sobre si a atenção de médicos e enfermeiros que, imediatamente o medicaram e o transportaram para sua insólita cela.




Bartolomeu era um homem muito bem sucedido. Sócio de média empresa de marketing, com progressivos avanços. Seu sócio e colega de muito tempo Francisco foi quem teve a idéia de começar a firma. Porém, com o tempo, a ambição de Francisco foi crescendo. Havia ficado uma mágoa entre ele e Bartô, pois a Falecida havia sido sua namorada antes de casar-se. Agora sabendo da traição, Francisco teve uma ponta de satisfação.
Clara deixou o seu sonho de ser artista plástica para ficar e trabalhar ao lado de Bartô, que nunca alimentou nenhuma esperança, a não ser profissional. Desta forma Clara, apesar de toda a sua bagagem cultural, prestava-se a cumprir toda rotina de uma eficiente secretária, além de servir cafezinhos.
Jorge era um investigador de polícia, que em suas folgas e férias trabalhava como detetive, conhecido de Francisco que já havia precisado de seus préstimos “favores”, estes muito bem remunerados.



Após alguns meses de intensiva terapia e medicação à base de sedativos, Bartô começava aos olhos clínicos obter resultados positivos. Já não mais se alarmava com facilidade e não apresentava mais sinais de “demência”, com visões entorpecentes de aparições fantasmagóricas. Achavam assim, que em menos de um ano ele pudesse se reintegrar ao convívio social.
O único familiar mais próximo de Bartô e que semanalmente o visitava, juntamente com Clara, era seu filho de dez anos, fruto de seu matrimônio com a Falecida, que estava sob cuidado e carinho dela, desde que fora para a casa de praia até sua estada naquela clínica médica. Quanto aos seus negócios, toda vez em que ela o visitava, contava-lhe sobre tudo o que acontecia lá na empresa.
Em alguns de seus relatos contou-lhe que um investigador de polícia assumira o caso há alguns meses. – O investigador, continuava visitando a empresa quase que semanalmente, trancando-se com Francisco a conversarem confidencialmente por horas e horas. Foi quando, repentinamente surgiu em sua mente relâmpagos de recordações, assim como um álbum de fotografias sendo olhadas uma a uma.
Por alguns lapsos momentâneos de memória, o Sr. Bartô parecia não estar consciente, pois estava ele em seu apartamento com a campainha a tocar e não haver ninguém do outro lado. O telefone mudo, sem um só ruído. E, ora tocava e ficava mudo, ora tocava e quando o atendia não havia ninguém do outro lado. Os sussurros chamando por seu nome, pausada e apelativamente. Aquele número de caixa postal do celular que ninguém atendia e quando o fazia estava lotada. As cortinas que se esvoaçavam, as luzes que não acendiam, enfim, o clarão pálido que formava a silhueta de uma mulher, que imaginava ser a da Falecida.
Agora estão os dois: Jorge e Francisco a conversar secretamente.
Parecia o começo de uma descoberta. O enigma agora aparentemente começava a ter forma nítida para ambos. Pois, Bartô agora acabara de contar-lhe todo o episódio por qual passara em seus mais profundos detalhes.
Coisas essas que ela dizia conhecer somente superficialmente, já que ele achava que naqueles momentos de traição e intensiva obsessão por alguém, pudessem lhe tolher a vontade de poder agir com a razão, excluindo dessa maneira, involuntariamente a cumplicidade e o confidencialismo de Clara, a única pessoa em que ele realmente podia agora contar e confiar.


Imediatamente Bartolomeu fez um apelo por escrito ao Diretor da Clínica Médica. Pediu-lhe que tivesse uma consulta extraordinária, emergencial, e somente deveria ser feita com ele, tentando assim, antecipá-la. Pois, suas consultas compreendiam de quinze em quinze, além do mais deveriam ser feitas com o médico de sempre. Mas não! Bartolomeu queria a todo custo passar dessa vez pelas mãos do próprio Diretor.
Talvez por se tratar de uma clínica particular, prontamente seu pedido fora aceito, e não demorou muito, o doutor Venceslau da Fonseca, pessoalmente pode perceber que Bartolomeu progredia em seu profundo estado de stress, nada mais era do que um cansaço físico e mental. Sendo assim, o Diretor atestou em seu laudo médico: total capacidade compreendedora do mundo estereótipo. Estava sim, capaz de analisar, compreender e refletir como qualquer outro ser considerado mentalmente normal, assim dizia em sua conclusão no relatório médico.
Contudo, o que mais incomodava Bartô eram aquelas visitas, apesar de raras, de Francisco e do investigador de polícia. Este porém, com um pouco mais de freqüência, indagando-lhe insistentemente sobre os comportamentos particulares e o passado de cada um dos membros de sua empresa, dando ênfases maiores ao Francisco, seu sócio, e a Clara.
Tudo isso deixava Bartô emborcado em completa nuvem negra de interrogações. “Qual era o interesse de alguém matar outra pessoa sem motivo nenhum aparente?” - Era uma de suas perguntas mais comum. - E a data da morte de Ângela coincidia com a mesma que Jorge me passara o número do telefone. Além do mais, e as cortinas, a claridade, o telefone mudo, a silhueta formada daquela mulher, enfim, tudo aquilo por que passei, como se explica?! - Bartô não conseguia entender.






Bartô encontrava-se, aparentemente, num poço negro de perguntas sem obter uma só resposta. Ao sair daquela clínica ele partiu em direção à sua empresa. Agora, porém, já não acelerava tanto o carro e seu rádio estava desligado. Não queria, absolutamente ouvir nada! Nem mesmo sua preferida, The Gates of Delirium do Yes.
Somente o que ouvia era forçosamente um repetido e involuntário som abafado que pesadamente badalava em sua mente, em sua consciência, ali no interior de seu carro que lentamente se distanciava cada vez mais da clínica. A velocidade aos poucos diminuía, os vidros ainda estavam fechados. Estava preso novamente; preso em amontoados e aparentemente indecifráveis questões rondando seu ser. Sua mente parecia confusa. Ora via tudo como de fato era em sua direção, ora nada via. Ora se via, era nublado, confuso e incompreensível. Ainda assim, em segundos raros de lucidez, sentia uma certa vontade que o obrigava, ameaçando-o a ligar seu compact disc, a fim de ouvir as sinfonias três e quatro de Schubert, além do ímpeto de querer dar mais velocidade ao veículo, contudo, era frustrante demais!
Jorge continuava investigando oficialmente a morte da bela Ângela sem saber que o delegado dr. Gustavo, também o fazia. O investigador deveria apresentar uma conclusão do caso para que fosse apontado um culpado.
Encabeçando o rol, estava Clara. A alegação era que Ângela atrapalharia a possibilidade de ficar com Bartô. Em seguida aparecia Francisco, sem muita ênfase, por ser sócio e colega de muitos anos não teria motivos aparentes para matar o grande amor de Bartô. O terceiro suspeito era Dalton o ex-marido de Ângela, um desportista e controvertido hípico, sem nenhum êxito. Diversas vezes recusava-se em falar do caso, sempre alegando que no dia de sua morte estivera em uma festa de aniversário de um amigo no clube onde freqüenta. Assim, exacerbadamente se defendia daqueles que o procuravam não admitindo perguntas, pois dizia-lhes acreditar na justiça e que ela se faça cumprir, sem amolar inocentes como ele.
O investigador detinha em mãos quase todos os elementos de que precisava para desvendar o assassinato de Ângela. Todavia, para poder concluir o relatório criminal do verdadeiro culpado – Imaginava o policial - Só restava confirmar o álibi de Dalton. Feito isso, estava dado por encerrado o caso e descoberto o real homicida. Ou pelo menos aquele a quem precisava incriminar.



O delegado Gustavo consegue através de uma liminar fornecida pelo juiz criminal, um mandato de busca dos suspeitos. Jorge de Abreu, o investigador, levou em mãos, todas as intimações, excetuando a de Dalton. As demais foram entregues pessoalmente por ele, intimando-os a comparecerem em um único horário, às quatorze horas na sala de espera da delegacia.
Timidamente, foram chegando os suspeitos em intervalos freqüentes de dois e três minutos. O primeiro a marcar presença foi o Francisco. Apesar de demonstrar muita contrariedade em seu semblante, estava supostamente tranqüilo; o segundo deu um certo trabalho em ir até o Distrito. Foram necessários dois policiais civis coagir Dalton a fim de garantir sua presença; a terceira a comparecer, já faltando dez minutos para começar a indesejada reunião, foi Clara, demonstrando inquietação e impaciência; por último, por um simples convite formal feito pelo investigador, o esmerado, fino e intelectual Bartolomeu. Assim que ele adentrou na sala, onde todos seus conhecidos já estavam, ficaram pasmados e indignados ao vê-lo, sem conseguirem compreender a situação.
Confirmada a presença dos envolvidos, ali naquela saleta semi-escura, de luz tênue, ar pesado e intragável eles se vêem com aspectos denunciadores. Cada olhar que se cruza marca o registro de uma desagradável e indiscreta suspeita, uma denúncia, um mistério mesclado no próprio ambiente infecto, indesejável, chegando a ser comum e próprio de uma delegacia de polícia. Os odores exalados são imperceptíveis entre os presentes, pois os mesmos só estão voltados à preocupação de uma possível acusação indigna, injusta, maliciosa. Tais odores parecem ser sentidos somente por alguém que adentre ali no interior, sem ter nenhum compromisso direto com o caso em questão.
Gustavo já havia lido o documento apresentado por Jorge. Contudo, não concordara com os relatos ali registrados, pois a tentativa de encontrar o verdadeiro culpado da morte de Ângela, fizera com que o próprio delegado minuciasse todas as pistas; tal fora sua surpresa ao constatar que no relatório de Jorge continha um laudo pericial aparentemente incontestável, atribuindo a Bartô as impressões digitais contidas na xícara. Sendo que, Gustavo, ter sido ele a primeira pessoa a entrar no apartamento de Ângela, após sua morte. Aquele laudo não era possível, pois a mesma xícara - acreditava ele – havia sido analisada, sem no entanto, haver digital alguma. Entretanto, o prazo dado pelo juiz havia sido extrapolado, e o processo precisava seguir seus trâmites legais.
Jorge recebe uma pasta preta volumosa em suas mãos, torcendo as grandes narinas achatadas com os dedos polegar e indicador, em movimentos bruscos, contínuos e laterais; ao mesmo tempo erguendo rápidos, provocantes e desafiadores olhares circulares para todos os presentes, já sabendo quem ele deveria acusar.
O delegado mandou que o investigador fizesse a leitura dos autos. Desde alguns momentos que antecederam a morte de Ângela até os acontecimentos que possam parecer banais, como: Dalton o cônjuge divorciado, discutia muito com Ângela ao ponto de agredi-la brutalmente. Francisco mal visitava o colega-sócio doente. Se ele o visitou três vezes enquanto esteve internado, fora muito. Além do mais, ele podia pensar: - “Três vezes está muito bom! Eu como seu amigo faço-lhe algumas visitas e pronto! - Não é verdade Francisco? – Dizia o investigador dirigindo-se e apontando o seu fino e longo dedo indicador em seu tórax, enquanto a outra mão segurava a temida pasta preta. Francisco nada dizia, simplesmente balançava sua cabeça em sinal de discórdia.
- Muito bem! Pois bem! Continuava o investigador voltando-se para o centro da sala onde havia começado a sua dramática e acusadora leitura. – Clara, não queria perder Bartô, e por amá-lo, poderia ter matado Ângela. – Concluía moderadamente, porém em tom áspero e firme. – Por simples satisfação pessoal! Certo, Sra. Clara? – Outra vez apontava aquele seu polegar denunciador, porém agora audaz e malicioso em sua direção, direto em seus belos e avantajados seios redondos.
Mais uma vez o investigador retoma o lugar central num rápido e esguio movimento de quadril, fazendo inveja até mesmo a um garoto saudável, apesar dos seus quarenta e oito anos de idade.
Desde o início, Bartô parecia sereno. Seu olhar era de indiferença a tudo aquilo presente na sala. Parecia estar ausente de todo aquele teatro. Somente seu corpo físico denunciava-lhe comparecimento. Seus pensamentos, rispidamente, confundiam-se com aqueles vultos em sua volta, denunciando-o.
Na verdade, todos estavam simplesmente discutindo entre si, trocando acusações mútuas, enquanto num dado momento, Jorge discretamente pediu a Bartô que o seguisse até uma outra sala. Lá chegando, pediu-lhe desculpas, e em seguida, o algemou. Levou-o até o delegado para que o mesmo se encarregasse de dar prosseguimento.
Bartô ficou aturdido! Não podia acreditar naquilo que lhe estava acontecendo. Percebiam-se que seus ânimos ainda estavam exaltados.
O investigador foi logo anunciando-lhes quem era o verdadeiro assassino de Ângela. Sabendo do nome, todos ficaram sobressaltados. Clara chorava desesperada e era amparada por Dalton que respirava aliviado. Francisco manteve-se indiferente a tudo como se não tivesse nada a ver com aquele desgraçado acontecimento. Contudo, a maneira como disfarçadamente voltava seus olhos para o investigador, formava-lhe um aspecto sinistro, misterioso.








O policial Jorge foi detalhando todo o episódio ocorrido. – “Não foi muito fácil meus amigos!” – dizia ele agora menos exaltado e mais disciplinado – “Desde que a mulher morrera na Rodovia Raposo Tavares, Bartô transformou-se. Seu comportamento ficara abalado totalmente refletindo assim, em seus atos, de forma até mesmo involuntária”.
-“Pois bem!” – Entre um “pois bem” e outro, ele prosseguia em seu esclarecedor e eficaz enredo, deixando a todos, nesses intervalos de tempo, curiosos, perplexos e inconformados, porém aliviados. – “A partir daí, senhores, passei a acompanhá-lo de perto, investigando todos os acontecimentos. Coisas essas que, creio eu, nem vocês e nem ninguém sabia. Muito bem! Pois bem!” – Continuava, agora já em tom mais alto e mais claro:
- Ele nunca conseguira tirar de sua cabeça a imagem de um amor que tivera em sua fase terminal de adolescência. Tratava-se de Ângela, a veterinária. Pois bem!
Ele gostava demais dessas palavras. Talvez pelo fato de o som forte de cacofonia que elas produziam!
– Muito bem! Meus senhores. – Agora com esse “Meus senhores” tão forte, invocativo e ainda erguendo um dos dedos para o alto juntamente com seu pescoço, parecia até político no palanque em época de eleição.
– Esse seu amor, após a morte de sua esposa, ficara mais acentuado ainda, ao ponto de ele criar, imaginar estar sendo seguido por sua falecida mulher. Finalmente, após receber o endereço de Ângela, ele foi rapidamente ao seu encontro. E, como estava totalmente insano, matou-a justamente naquele momento. Momento de loucura, ódio e paixão misturados no realismo que cruelmente a vida lhe oferecera: a morte e a traição de uma mulher que imaginava, como muitos imaginam, amar. Pois bem! Muito bem, meus senhores! Em alguns momentos ele é uma pessoa considerada normal, totalmente sadio. Trabalha, respeita o próximo, é sociável, enfim, cumpre todos os seus deveres de cidadão.
Pois bem, meus senhores! Pois bem! Muito bem! Em outros momentos, ele age como agiu. Insanamente! Sim, de forma inconvencional. Não porque ele quer, mas inconscientemente. Tanto que até nem sabe o que fizera segundos antes, neste estado de demência. Porém, está aqui, meus senhores, nos autos. Tudo isso se deu após a morte de sua esposa, a falecida.
Gustavo em um canto ouvia o enfático Jorge, e convencia-se mais ainda da inocência de Bartô, e antes que houvesse o julgamento ele iria rever todo o inquérito e tentar provar que Bartô não era o assassino. Era uma questão de honra! – Afinal , quem era Jorge para atestar a insanidade de alguém? – Imaginava o delegado.


“Ângela não havia sido morta por Bartô! Não poderia ter sido ele.”
Este era o pensamento de Clara que não mediria esforços para provar a inocência de seu amado, pois tal sentimento sempre a acompanhara, achando que com a morte de sua mulher pudesse ser o momento de estar ao lado de seu querido.
Quando Clara soube que ele procurava a namorada de infância, pensou que não resistiria. Conformou-se somente quando Bartô deixou seu único filho Júnior, sob os seus cuidados, pois era confiável e inseparável amiga. Desta forma, ela pode comprovar o tamanho da amizade que eles tinham; com certeza não o abandonaria. Iria investigar por conta própria e tentar descobrir quaisquer tramas que pudessem estar por trás da morte de Ângela.
Bartô fora recolhido ao manicômio judiciário. Não se conformava com tudo aquilo que vinha lhe acontecendo, sendo que o mais difícil era o fato de estar longe de seu filho, porém sabia que Clara cuidaria dele como se fosse seu, pois ela demonstrava muito afeto pelo garoto.
Ele nunca percebeu que toda a atenção que Clara dispensava ao seu filho era justamente por amá-lo, sonhando com o momento de tê-lo em seus braços e pernas. Evidentemente! Ela o queria e o ajudaria.


Francisco falava ao telefone com Jorge marcando um encontro, pois gostaria de tratar daquele assunto pessoalmente. Clara percebeu aquele estranho telefonema, e não conseguindo tirá-lo de sua cabeça, começou a formar indagações e ligações dos fatos com a prisão de Bartô, fazendo começar a ter sentido para ela.
A única pessoa que obteve lucros diante da suposta insanidade de Bartô fora Francisco. Somente ele ficara à frente de todos os negócios e contas da empresa, enquanto Clara não tinha acesso a números, exceto àquilo que ele repassava para que ela administrasse a vida do filho de Bartô. Ela já sabia que aquele encontro seria com certeza o fio da trama que iria deixá-lo fora dos negócios por muito tempo.
Ao se encontrar com Francisco, o investigador Jorge foi logo contando que o médico que assinou a liberação de Bartô estava “criando confusão”, e que deveria ser eliminado o mais rápido possível.

O médico havia sido procurado pelo investigador para que ajudasse a manter Bartô louco e sedado por tempo indefinido. Por este “trabalho” receberia um bom pagamento, podendo dessa forma, quitar as dívidas de sua clínica bem como modernizá-la. Porém, o médico se assustou ao ver nos jornais a notícia de que seu paciente havia tramado e executado uma mulher. Não podia acreditar, e assim, disse ao investigador que iria à polícia depor e inocentá-lo.
Preocupado, o investigador expôs ao cúmplice o grave risco em que corriam caso o doutor desse com a “língua nos dentes”. Francisco, por sua vez, em desespero, recomendou ao investigador que fizesse um “serviço” bem feito e que não desse nem para identificá-lo.


Dois dias após terem essa conversa, distante do ambiente revelador, denunciador, Francisco, o bem sucedido empresário, em seu glamoroso escritório, lia as páginas policiais de um popular jornal sensacionalista, quando viu a notícia que tanto procurava:

“Foi encontrado próximo ao lixão da cidade dormitório de Ferraz de Vasconcelos, o corpo de um homem carbonizado, de difícil reconhecimento. Devido ao estado em que se encontrava o corpo, fora possível saber-se apenas de que o mesmo sofrera diversas perfurações de faca, além de ter o pescoço degolado. Não tendo nenhuma testemunha do ocorrido, a polícia ficou sem saber de quem se tratava. Só se imaginava ter sido um acerto de contas...”

Francisco leu diversas vezes o trecho final daquela sangrenta reportagem. Pegou no telefone como quisesse conversar com alguém, porém voltou a recolocá-lo no lugar murmurando para si mesmo: “Muito bom!”
Repentinamente, a passos largos, entra no escritório Jorge, vendo o cúmplice sobressaltado diante de sua inesperada presença, e pergunta-lhe orgulhosamente se gostara do “servicinho”.
Minutos mais tarde, ao entrar na sala de Francisco para entregar-lhe alguns trabalhos, Clara percebeu a inquietude, impaciência de ambos diante de sua inesperada visita. Tentando ocultar, ainda com certa discrição, aquilo que poderia pôr em questionamento suas notáveis e exemplares condutas. Contudo, Francisco ainda conseguira circular com a caneta a reportagem sobre a morte do médico. Por mais que tentasse, Clara não conseguia ver do que se tratava, podendo perceber um jornal que fatalmente duvidaria entrar naquele escritório. A secretária agora, astuciosamente, tentava encontrar quaisquer indícios que pudessem inocentar seu amigo Bartô. Ficara desconfiada dos comportamentos quase denunciadores de Francisco e Jorge.

Clara continuou trabalhando e ao notar que Francisco estava saindo, disfarçou estar fazendo algo que não pudesse parar e nem se levantou para despedir-se dele. Bastou ele entrar no elevador para que ela fosse direto para sua sala. Ela olhou, procurou e não encontrou o jornal; não estava nem sobre a mesa e nem no porta-revistas. Resolveu abrir as gavetas da mesa quando percebeu, na última, escondido juntamente com outros papéis por cima, o tão procurado jornal com a reportagem circundada.
Enquanto ela o lia, trêmula, imaginava por que aquela história tétrica chamava tanto a atenção de Francisco. Por que ele escondera aquele jornal com aquela reportagem destacada? Em sua mente formavam-se algumas respostas soltas. Aquilo tudo cheirava confusão das maiores. Com cautela, logo recolocou-o em seu lugar, tomando precauções de ajeitá-lo da forma em que o encontrara.


Durante o jantar conversou com Júnior procurando saber como havia sido o seu dia na escola. Acompanhou-o à sala de Televisão e enquanto o garoto se acomodava e pegava o controle remoto para mudar de canal, Clara notou a imagem do médico que cuidara de Bartô na clínica.
Ela ficou sabendo, assim, que o doutor Venceslau estava desaparecido há uma semana e sua família temia pelo pior. Surpresa e temerosa, Clara foi até a cozinha e interfonou para a portaria, pedindo ao zelador que tentasse “arrumar-lhe” o tal jornal.
Poucos minutos depois, o zelador Alberto subia para entregar à simpática e atraente moradora do quarto andar, o jornal que lhe havia pedido. Agora, com mais tranqüilidade, Clara lia a reportagem toda e, após algumas reflexões, associava aquela notícia ao desaparecimento do médico, o que não lhe fora muito difícil fazer.
Sentia muito medo daquilo que estava pensando e preocupava-se em saber com quem ela poderia dividir aquela grave suspeita. Com quem Clara poderia contar num momento daquele?!
Naquela noite Clara não dormiu. Apenas pensava em como resolver tal problema. Sentia desesperadas dores fortes em sua cabeça. Os comprimidos que tomava de nada lhe resolviam. Decidiu, por vez, que nas primeiras horas da manhã, logo após deixar Júnior no colégio, e sua cabeça talvez estivesse mais aliviada iria ao manicômio judiciário conversar com Bartô, e se ele concordasse com suas suspeitas, a ajudaria tomar algumas providências. Pensando dessa forma, deitou-se; e entre batidas estridentes, pontadas agudas e ansiedades, juntamente com delírios, devaneios, após duas horas conseguiu cair em profundo e impenetrável sono.


Logo pela manhã Clara encontrava-se com Bartô. Já havia lhe dado o tal jornal, falado das constantes visitas do investigador, dos trechos de conversa ao telefone que tinha escutado, das frases soltas que até então sem sentido, e que agora passavam a ter significado e eram demais importantes; tudo serviria para inocentá-lo, dizia Clara.
Bartô já estava preso há algum tempo. Era chegado a hora de tentar provar a sua inocência, e aconselhou Clara ter uma conversa informal com o delegado Gustavo, responsável pelo caso, a fim de sondar se poderia confiar nele ou não.
Bartô, firmemente, disse a Clara que não deveria deixar ninguém saber da suspeita sobre Francisco e o investigador Jorge.
Clara foi ao escritório somente no período da tarde, quando Francisco perguntou-lhe se estava com algum problema, e se ele poderia ajudá-la. Por sua vez, ela informou-lhe que não. Tudo estava bem! E que ela tinha ido visitar Bartô, levando consigo algumas frutas. Francisco, astucioso e oportuno, disse-lhe que também precisava visitar o amigo.
Mais tarde, ao chegar no escritório, o investigador em companhia de Francisco, imediatamente trancaram-se para uma conversa confidencial por duas horas. O investigador falou para o cúmplice que iria se aposentar e que tudo já estava resolvido. Faltava apenas lhe dar o restante do prometido, pois iria comprar um sítio, criar galinhas e porcos. Ao passo que Francisco disse-lhe para esperar que ele iria dar tudo em dinheiro, pois em cheque se comprometeria.
Clara estava atrás da porta e cautelosamente ouvia aquilo atônita. Estavam confirmadas suas suspeitas. Ela já tinha certeza de que eles estavam juntos em alguma coisa muito ruim.
Agora, Clara precisava conversar com o delegado sem levantar suspeitas. Telefonou para ele e pediu-lhe que fossem jantar juntos.
Gustavo ficou surpreso diante do convite da atraente e simpática mulher, porém não conseguira disfarçar a curiosidade que o telefonema lhe havia despertado.
Junto à sua mesa, o franzino delegado, deslizava a ponta dos dedos pelos enormes e já grisalhos bigodes, a pensar qual seria a “sobremesa” após o já sonhado jantar.
Com a pretensão de chamar para si olhares curiosos, ele usou sua influência a fim de conseguir uma mesa em um badalado restaurante onde com certeza, pensava ele, todos o veriam acompanhado dela.
Cuidadosamente, ela falava sobre a prisão de Bartô, de suas suspeitas e da culpa que lhe havia sido imputada, e sentindo confiança na ínfima figura que apresentava o delegado, contou-lhe que achava que algo não havia ficado esclarecido. Pairavam dúvidas!...
Na conversa de Jorge e Francisco ao telefone, e principalmente à respeito das conversas confidenciais entre eles.
Gustavo passou a acreditar que aquele jantar seria muito proveitoso, porém, certamente Clara não estava interessada em sua inócua e deprimente figura, mas sim, fazer com que aquele estranho e dúbio caso, através das novidades trazidas por ela, tomasse outra direção, cujo processo o delegado já tinha encontrado algumas falhas. Contudo, só poderia mexê-lo tendo alguma informação suficientemente consistente para que pudesse convencer ao juiz a reabri-lo.
Neste momento resolveu deixar a moça à vontade, podendo dessa forma, lhe passar todas as novas informações que possuía.
Confiante, Clara contou-lhe que sempre teve dúvidas quanto aos fatos que incriminavam Bartô. Passara a observar mais Francisco e o investigador pois haviam se tornado muito próximos. Quando soube da notícia do desaparecimento do médico que havia cuidado dele na clínica, não teve mais dúvidas. Clara fazia estes relatos com voz trêmula e débil.
O policial ouvia aquilo tudo pasmado! Jamais havia ligado o fato de que o médico desaparecido era o mesmo que cuidara de Bartô.
Involuntariamente, Gustavo acrescentou àqueles relatos o enriquecimento rápido de Jorge.
Pensou ainda em contar-lhe da estranha história das impressões digitais na xícara, mas não o fez, preferindo inclusive, não falar do mau caratismo dele, ficando mais como ouvinte.

No dia seguinte, ao acordar, imediatamente o delegado ligou para o investigador, convidando-o a comparecer à delegacia. Sem temor, ele prontamente atendeu ao colega delegado, achando até que seria cumprimentado pela aposentadoria, ou ainda pela compra de um belo sítio na zona rural Taubateana, onde pretendia passar a viver com sua família.
O delegado ao vê-lo, foi direto ao assunto, sem rodeios. Usando o bom e velho modelo de filmes policiais, disse-lhe já estar sabendo de toda a trama contra Bartô: do sumiço do médico e já tinha o resultado do laudo cadavérico que acusava ser o doutor Venceslau.
Jorge não queria acreditar naquilo que ouvia, começou a suar frio. Suas pernas fraquejaram-se, fazendo-o desabar desolado na poltrona, vendo-se completamente acuado.
O experiente delegado entendeu aquilo como uma confissão. Bateu suavemente suas mãos nas costas do investigador, dizendo brandamente que lhe contasse tudo, desde o princípio, fazendo entrar neste momento o escrivão, que para não perder nenhuma palavra, ligou o gravador.
Com certo esforço, Jorge contou-lhe que havia sido contratado por Francisco para afrouxar os freios do carro de Bartolomeu, contudo um erro terrível o fez soltar não os dele, mas sim os do carro de sua mulher que acabou morrendo. Pelo fato de ela ter traído o marido, este não fez questão que houvesse perícias e tudo ficou parecendo um “acidente”.
Dissera ainda que fez um novo contato, dessa vez para tentar consertar o erro anterior. Bartô havia pedido ao amigo Francisco alguém que localizasse Ângela, sua primeira namorada. Assim, ele pagou muito bem para que achasse a moça e a eliminasse; supunha Francisco que Bartô preocupado com as coisas do coração, não teria como pensar nos negócios. Desta maneira, ele tomaria de vez, à frente do andamento empresarial.
Feitas as investigações preliminares, Jorge esperou que Ângela saísse, e entrou em seu apartamento para analisar como agiria sem ter maiores problemas.
A moça retornou ao apartamento com umas compras colocando-as sobre a mesa, e aqueceu um café no microondas. Deixou-o aquecendo e foi ao banheiro. Foi o tempo suficiente para que Jorge colocasse seis fatais gotas de cianeto em seu café. Sem notar nada, absolutamente, Ângela tomou o líquido mortal e caiu estática no chão. Jorge levou-a já morta para a cama e colocou o pijama na moça para dar a impressão de ela ter morrido ali mesmo.
A fim de não levantar quaisquer suspeitas, ele resolveu levar consigo as compras que Ângela havia feito. Antes, jogou o café fora e deixou a xícara dentro da lava-louças com outras peças que lá estavam; apertou o botão da máquina e saiu julgando que logo tudo estaria lavado.
Quando o corpo foi encontrado, o delegado foi o primeiro a ver as louças sujas dentro da máquina e o botão vermelho do ligue abaixado, contudo o cabo estava fora da tomada.
Tendo o delegado recolhido a xícara para a perícia técnica, aguardou o laudo que provavelmente denunciaria o verdadeiro culpado. Para sua surpresa, o parecer pericial teve sua leitura comprometida. Foi quando Jorge, lendo o resultado, decidiu colocar a xícara que lhe havia sido entregue por Francisco, contendo as impressões digitais de Bartô. Agora o investigador só precisava convencer o delegado a realizar uma outra análise digital, pois poderia ter tido algum “erro”.
O investigador logo disse ao delegado que fora ele o contratado para localizar Ângela, e após alguns dias lhe levaria o seu endereço.
- E quanto ao episódio do doutor Venceslau? Indagou o delegado.
- Bom! O doutor nos deu susto e muito trabalho. De início ele queria ir até a delegacia depor em favor do Bartô. Daí, fui até sua casa e pedi para que ele me acompanhasse, conforme o Francisco havia me mandado. Ele precisava ter uma conversa com o médico e com essa alegação, ele me acompanhou; mas a ordem do Francisco era para eliminá-lo.
Inesperada e prontamente o investigador surpreendia o delegado, passando-lhe todos os detalhes daquela diabólica trama. Assim, o delegado e o escrivão ouviam-no estupefatos a tudo. Aquela inteira disposição do investigador em relatar os pormenores daquele horrendo crime ao delegado, embasava no pressuposto de que poderia se sair daquele crime sem causar-lhe maiores conseqüências, pois já estava prestes a se aposentar. Tentava desta maneira fazer com que toda a responsabilidade caísse sobre Francisco.

Era narrado assim, sua pior e cruel face. Realmente Francisco e Jorge haviam matado o médico. Já estava quase tudo esclarecido porém ainda faltavam mais detalhes...
Continuava Jorge em seu macabro relato, dizendo ao delegado e ao escrivão que saíra da casa do Dr. Venceslau, conduzindo-o até Francisco, porém Jorge não sabia que seu cúmplice se ocultara anteriormente em seu banco traseiro.
O médico conversava nervosamente com Jorge que entre uma troca de marcha e outra, dava-lhe tapinhas em suas costas como se quisesse acalmá-lo, e talvez a si mesmo, pois ele também estava muito nervoso e temeroso naqueles momentos que antecederam os fatos.
Afastaram-se por mais de dez quilômetros quando Francisco levantou-se do banco em que se encontrava, com uma arma em punho. O médico apavorou-se de vez, implorando clemência, pois já sentia ser o seu fim, até que Francisco ordenou-lhe que parasse o carro, empurrando brutalmente o médico para fora, naquele lugar ermo, com matos úmidos, de solo barrento.
Francisco passou seu revólver para Jorge tirando de seu próprio paletó um punhal, golpeando-o no peito, rosto e pescoço. O sangue jorrava. A violência não parava por aí. Francisco, insatisfeito, ainda degolou o pobre homem, ateando fogo no corpo a fim de que ficasse impossível sua identificação, já que ninguém os vira sair com o doutor, nem tão pouco chegar àquele cruel, tenebroso e macabro lugar.
O delegado Gustavo, levantando-se da poltrona, agora recostava na parede, em pé, pasmado, aturdido e inconformado com tamanha crueldade praticada por eles, contudo já sabia o que iria fazer diante da medonha narrativa de Jorge que mantinha um ar, embora aparentando serenidade e calma, de frieza e ódio.
Gustavo manteve Jorge incomunicável e foi pessoalmente conversar com o juiz que havia julgado e condenado Bartô, levando consigo o gravador e algumas anotações.
Prontamente o juiz expediu um mandato de prisão preventiva para Jorge e Francisco
Sem perder tempo, rapidamente o delegado Gustavo acompanhado de quatro policiais fortemente armados, dirigiram-se para o escritório onde estava Francisco. Chegando lá, foi logo dizendo ao acusado aquelas frases que tanto ouvira nos filmes e que raras vezes pudera reproduzi-las.
- O senhor está preso! Tudo o que disser será usado contra o senhor no tribunal! O senhor tem o direito a um advogado, mas só irá consultá-lo, após meu interrogatório...
Assim, um dos policiais algemou-o e aos empurrões, levou-o em seguida para a viatura.
Gustavo ficou no escritório para contar a Clara o que havia acontecido e tudo o que Jorge lhe confessara. Ela deu o expediente por encerrado, e foi para o manicômio contar a Bartô. Em seguida, foi para casa e disse toda a história a Júnior.
Chegando à delegacia, o Dr. Gustavo não teve dúvidas. Imediatamente interrogou Francisco que, por sua vez, negou tudo aquilo que fora contado pelo investigador. Somente após alguns severos interrogatórios e percebendo que tudo já havia sido esclarecido, dissera ao delegado que o seu envolvimento no caso Bartô, tinha sido por total ignorância. Pois, o investigador fora o mentor de toda a trama, usando-o maquiavelicamente, e com tamanha astúcia persuadiu-o. Tentava dessa forma, fazer o mesmo que o investigador fizera anteriormente em sua confissão, isto é, livrar-se de total culpa.
Após algumas semanas de reclusão, os dois foram encaminhados aos devidos órgãos penitenciários: Francisco ficou preso na cela especial do quartel da polícia militar onde permaneceu aguardando seu julgamento; Jorge fora conduzido para o presídio da polícia civil onde também aguardou o pronunciamento final da Justiça.

Bartô saiu do manicômio onde calorosamente foi recebido na saída do portão central por Clara e seu filho Júnior. Abraçaram-se demoradamente um ao outro, dispensando a ela um olhar de carinho e gratidão que jamais havia dado anteriormente.
Clara e Bartô, lado a lado, sentados, ouviam toda aquela história contada por Júnior, seu filho, à sua mulher Lindalva, que não se cansava em ouvir aquele tenebroso e inacreditável episódio, onde todos dali participaram, exceto ela.
Calados, ouviam-no contar-lhes tudo enquanto Clara, sua madrasta, agora grisalha e não tão atraente como outrora, manifestava-se carinhosamente oferecendo e servindo um suco gelado de caju a todos dali presentes, naquela área de sossego e paz onde o ambiente, já com suas luzes tênues e fracas, oferecia.













Fim









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