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cronicas-->LA SONATA DE LOS FANTASMAS -- 25/12/2006 - 19:50 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 63ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem uma sequência, na intenção de uma crónica de viagem contínua...)

63
LA SONATA DE LOS FANTASMAS


Tempo é uma dimensão psicológica. Nem tanto o tempo físico, transformante, que deixa rastros e cicatrizes, mas o tempo transcendente, que se vive numa dimensão interior.

Foi August Strindberg, já visivelmente paranóico, que descreveu melhor este estado do tempo. Simultàneo, multitemporal. Em que a gente convive com os nossos fantasmas, em diferentes momentos de nossa existência, simultaneamente. Estão todos aí, presentes, desafiando-nos, exigindo nossa atenção. Alguns conhecidos, outros inventados, mas todos demandantes.

Têm caras, têm vontades, ocupam nosso espaço sem maiores constrangimentos, figuras de diferentes épocas numa convivência impossível mas verdadeira, nem sabemos se real. E nós mesmos, absurdamente, somos vários ao mesmo tempo, em diferentes momentos,

"-Vê, eu sou você, aqui estou esquecido neste salão vazio, abandonado de mim mesmo. Você me deixou, não quis que eu me realizasse, possuído de idéias que me negavam, me impediam de ser."

"- Tenha vergonha de mim, eu poderia ter sido mas apenas pretendi, neguei-me, deixei de realizar¬-me por culpa sua, que não me queria, me cerceava".

"- Pois vou vingar-me de quanto me privou, medroso de ser, de dar-se, de conceber uma outra existência mais criativa e realizadora, vou martirizá-lo até o último de seus dias, infeliz".

"- Porque me banalizava, me desgastava em questões tão ordinárias e sem qualquer motivo, é que exijo, que cobro uma oportunidade, a realização de meus desejos desatendidos. Agora é a minha vez pois a sua já a malgastou, em vão."


E existem os outros. Tangenciais, esquecidos. Instando nosso ser, clamando atenção e devoção

"- Sim, sou eu, o preterido. Eu que acreditei que significava alguma coisa, quero a minha hora e vez, ainda que tardia, não importa ... "

"- Pois ficarei ao seu lado, para que não esqueça da promessa não cumprida, para que possamos alguma vez cumprir o nosso sonho juntos".

A casa está cheia de fantasmas, saem das gavetas, dos livros, dos armários insondáveis, de caixas e objetos abandonados. Estão por toda parte, nem esperam que chegue a noite ou o sono. Fazem amor com a gente, podem levar-nos ao orgasmo ou ao desespero. A qualquer momento. Figuras de diferentes épocas se cruzam sem ver-se, nem por isso menos presentes. Nada têm a ver com o passado, seu tempo é o sempre, inalcançável. Um jogo de azares, aconteceres falsos e verdadeiros, numa existência volátil, imaginosa, enganosa. Uma loucura consciente, da qual nos envergonhamos enquanto lúcidos e que desejamos enquanto inconscientes.

E viajam comigo. O vóo de regresso não é uma fuga nem uma volta a lugar algum. Não é um regressar ao passado nem uma ida ao futuro. O aeroporto de Caracas é como a estação entre o hoje e o ontem, no caminho do amanhã. Vê-se da janela do avião as rotas litoràneas de Maiquetía em direção a La Guaira, os contornos serpenteantes que sobem o Avila até alcançar o vale congestionado de Caracas.

Lá estou eu, em outro tempo, apaixonado pela vida, buscando minhas aventuras. Um jovem magro, alto, esguio, nem bonito nem feio, cheio de vontades e desejos, compartilhando seu corpo e seu tempo. Subindo a ladeira, mergulhando no mar caribe, sorvendo sabores em ànsias de uma paixão desenfreada, secreta, sem beiradas. Sim, viver celeremente, intensamente para viver mais. Depois ruminar uma e outra vez, para viver mais ainda. Várias vidas numa vida de prazeres, ainda que mínimos. Mas tão intensos, tão imensos!

O avião é uma cápsula do tempo, numa trajetória desatinada. Um destino que parece recuar mais que avançar.

Puerto Rico não é apenas uma ilha. Três Portos Ricos, em três momentos. Ali aportei, pela primeira vez, como mambembe, com um espetáculo que era a extensão de meus desejos e idéias, com uma juventude de comunicações e relacionamentos inconsúteis; depois uma visita profissional, de recordações e saudades impalpáveis; e agora uma estada prolongada, trabalhando e revivendo uma experiência que era a de um ser incompleto, insatisfeito, mas com o júbilo de uma realização consequente. Três décadas seguidas, interpenetradas, reinterpretadas. Aquela San Juan dos anos 70, idealista, sonhando com a independência e com a identidade latino-americana. A dos anos 80, mais pragmática, buscando realizações compensadoras. A dos anos 90, resignada e realista, tentando outras dimensões de comunicação. Talvez em um nível inter-pessoal, literário, cul¬tural.

Convivi com Porto Rico e comigo mesmo, como nunca em minha vida.
Um espelho interior, voltado para todos os tempos de minha existência. E revi meus fantasmas, meus valores, minhas crenças e dúvidas. Uma vida pequena, mínima, tão minha, tão de ninguém, tão insignificante em sua grandeza momentànea. Certo de uma auto-estima que, contra todas as indicações e razões, cresce e se consolida. Teimosamente.

Uma ilha é um olhar para dentro de uma existência. Apartado de outros mundos, tive o distanciamento físico e temporal para introspecções e reflexões mais profundas, ainda que inúteis.

O avião é um transporte incrível, uma ilha em movimento, uma prisão aerodinàmica levando-nos do nada a coisa nenhuma. A gente está no meio, a meio caminho do que não se consegue superar. Para trás ficam rostos, imagens, lembranças que começam a idealizar-se, a confundir-se; pela frente a reconquista de situações e faces que já são outras e que não reconquistaremos, porque nunca foram nossas.


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FIM DA SEQÃœÊNCIA DE cronicas...

Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.
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