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Teses_Monologos-->As 1001 guerras: meu encontro com Saddam Hussein -- 18/10/2003 - 06:09 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dez mil soldados, centenas de agentes secretos e sabe Deus quantos mais estão à procura de Saddam Hussein. Ele, no entanto, desde que foi derrubado em 9 de abril de 2003, permanece inacessível.

Pois eu acabei por encontrá-lo. Não acredita em mim? Eu sei. Mas conceda-me um instante do seu tempo precioso, para que eu esclareça como cheguei à convicção de efetivamente ter-me encontrado com o ditador. Depois poderá concluir se enlouqueci ou não. Aconteceu como se segue.

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Por Ulrich Ladurner (Die Zeit, 39/2003)
Trad.: ZPA [para Mauro Guzzo, pela indicação do texto]
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No dia 18 de setembro de 2003, empreendi uma viagem de Bagdá a Najaf. Para ter uma imagem melhor do sentimento reinante no maior grupo populacional do Iraque, eu queria ouvir, ao longo de um dia, o que se dizia na cidade sagrada dos xiitas. Além disso, queria saber algo a respeito dos planos do chefe xiita, pois, de forma bastante decisiva, dele vai depender o futuro do país.

A viagem de Bagdá a Najaf, ida e volta, leva cerca de cinco horas. Às sete da manhã, pusemo-nos a caminho; ao cair da noite, pouco antes do bloqueada a saída, estávamos de volta a Bagdá. Assim, tive tempo o bastante para me convencer de que meu motorista era Saddam Hussein – sim, meu motorista era o carniceiro, o praticante de atentados químicos, o vilão universal, o genocida Saddam Hussein.

Tudo começou como sempre. Meu acompanhante, Hassan, organizou um carro com chofer. Eu não manifestara mais que o desejo de dispor de um carro com relativo conforto, em boas condições de uso e, é claro, que não desse tanto na vista. No mais, depositei inteira confiança em Hassan. Na manhã da partida, um jipe de peso médio esperava na frente do hotel. Pareceu-me, aliás, um tanto pequeno, mas, como se via, estava em muito bom estado. O motorista deu alguns passos em minha direção. Cumprimentamo-nos com um aperto de mão e eu lhe disse: "Tanto faz o horário da chegada, importa que cheguemos. Portanto, não precisa correr muito!" "Mas, naturalmente", ele respondeu, "eu sei tudo. Não se preocupe, eu sei tudo!"

Ele não dizia "eu entendo tudo", mas "eu sei tudo!" "De resto, eu me chamo Sultan", ele acrescentou e me dirigiu o olhar através dos óculos de lentes cromáticas. Tinha os olhos grandes, castanhos, com as bolsas lacrimais dependuradas. Os cabelos eram de um preto retinto. Fácil reconhecer que eram pintados. Os cabelos, o bigode, as sobrancelhas – tudo havia sido cuidadosamente trabalhado com tintura preta pelo cabeleireiro. A pele de Sultan, a julgar pelos parâmetros locais, era bem clara e contrastava de forma notável com aquele breu noturno esplendoroso, a lhe conferir qualquer coisa de boneco. Camisa amarelo-limão, a calça e as botas eram pretas. Junto ao pulso, reluzia uma corrente dourada. Tudo nele resultava um tanto quanto produzido.

Seguimos viagem. Eu estava sentado atrás, no fundo do jipe, Hassan ocupara o lugar ao lado do motorista e, como era do seu costume, imediatamente abriu as comportas de um discurso interminável. Sultan escutava-o atentamente, enquanto eu não percebia mais que sons guturais da língua árabe, tendo-me entregado, de resto, a uma espécie de sonolência.

Do lado de fora, Bagdá deslizava por nós. Sultan dirigia bem e com segurança, conduzindo o carro por aquele trânsito. Alcançamos a fronteira ao sul de Bagdá. À nossa direita surgiu uma área gigantesca, salpicada, além de qualquer limite, por tanques avariados, caminhões militares, canhões, carros blindados – um formidável cemitério militar. Hassan balançou a cabeça e, com a língua, fez o ruído que sempre fazia quando queria dizer "Que catástrofe! Que catástrofe!"

"Nós éramos uma grande potência militar", disse Sultan, olhando pelo retrovisor. O sol incidia sobre o pára-brisas e seus óculos tinham ficado agora inteiramente escurecidos. Eu não conseguia mais reconhecer seus olhos por trás das lentes.

"Eu sei, eu acho que o sexto maior exército do mundo", eu disse. "Exatamente, por algum tempo até mesmo o quinto maior. Às vezes é preciso imaginar isso: O quinto maior exército do mundo! E hoje?" Lançou um olhar sobre o entulho que se estendia até o horizonte. "Tudo posto fora, tudo estragado, tudo em vão", dizia Hassan com sua voz profunda.

"Horrível, não?!", eu gritei lá de trás. "Com efeito", disse Sultan, "mas nós precisamos conversar a respeito, por que foi que isso se deu. Eu penso que há razões que o explicam!"

"Sim, com certeza…", eu respondi, sem insistir mais no assunto. Eu me pusera atento, porque rodávamos bem próximos a um comboio militar americano. Um jipe encerrava a coluna. Sobre a carroceria estava sentado um GI. A arma, ele a mantinha voltada para nós. Sultan foi obrigado a permanecer bastante atento. Caso o soldado lhe desse a entender que não deveria ultrapassar e, mesmo assim, ele o fizesse, o GI dispararia no ato. Havia ocorrido muitas vezes nos últimos dias, com pessoas tendo perdido a vida. Um sinal com a mão, mal entendido, e: Bumm! A rapidez com que atiravam era a medida do medo que sentiam.

Muitas pessoas no Iraque afirmam que os americanos são muito mais perigosos para o cidadão civil do que qualquer terrorista – e nisso eles tinham bastante razão.

Sultan fez tudo certo. Manteve-se à distância enquanto o soldado lhe dava a entender que não devia ultrapassá-los. Só quando o comboio dobrou à direita e desapareceu atrás de uma espessa nuvem de poeira, Sultan voltou a acelerar. "Nosso libertador tem sempre o dedo no gatilho. Ele atira com rapidez, o nosso libertador." Abriu um sorriso largo e esperava, estava bem claro, que eu fizesse algum comentário a respeito. Mas eu me mantive em silêncio. Não tinha nenhuma vontade de entrar em discussões.

Atravessávamos o país em velocidade, passando por palmeiras, tanques destruídos, carcaças incineradas, por aldeias e cidades, ruas apinhadas de gente e edificações que pareciam à beira do colapso. Hassan falava, Sultan ouvia, eu me mantinha calado.


Nas últimas horas da manhã, chegamos a Najaf. Sultan teve de deixar o carro parado a uma distância considerável da Mesquita Imam Alis. Depois que um carro-bomba explodiu bem na frente da mesquita, foi no final de agosto, a polícia bloqueou para o tráfego todas as ruas de acesso ao maior santuário dos xiitas. A bomba tinha causado a morte de mais de oitenta pessoas. Entre as vítimas, Mohammed Bakr al Hakim, um dos mais importantes guias dos xiitas. Era ele o alvo do atentado.

Nos pusemos cuidadosos em Najaf, e seguimos a pé em direção ao centro da cidade. Sultan veio conosco, fato pouco habitual, pois os motoristas costumam permanecer junto a seus veículos, pelo temor de que possam ser roubados em sua ausência. Nas horas que se seguiram, permaneceu sempre ao nosso lado. Comigo, ele ouvia diversos guias religiosos, policiais, passantes, peregrinos e comerciantes, permanecendo bem junto de mim. Enquanto falavam os meus interlocutores, ele aguçava os ouvidos. Atentamente a tudo absorvia. Eu me perguntava o que ele na verdade teria sido noutros tempos, antes da guerra: um jornalista? Um espião? Um policial? Seu negócio havia sido, em todo caso, a informação, isso me pareceu claro.

Quando, depois de muitas horas, tornamos a embarcar no jipe, Sultan disse alto e bom som: "A última vez que estive em Najaf foi há vinte anos. E posso lhes dizer que, hoje, a cidade regrediu cem anos. Cem anos! Idade Média!"

"Acha mesmo?!"

"Eu lhes digo, esta cidade vai se tornar o coração negro do Iraque. Ela vai nos devorar a todos! Também aos americanos!"

Fiquei pensando no que dissera, enquanto atravessávamos as ruas poeirentas de Najaf. Num ponto Sultan pode ter razão: Se Najaf se movesse, balançaria o Iraque inteiro. Um influente mulá acabara de me dizer: "Nos anos vinte do século passado, bastaram cinco palavras vindas de Najaf, exatamente cinco palavras. Uma tempestade se levantou e varreu os britânicos para fora do país!" Ele oferecera uma descrição histórica pertinente. A rebelião nos anos vinte custou a vida a cerca de 5000 soldados britânicos e pôs fim ao domínio colonial. O alerta de Sultan sobre o "coração negro do Iraque" pareceu-me um pouco exagerado, mas tinha algo de verdadeiro.

"O que se deveria fazer então com os xiitas?", eu lhe perguntei. Ele, erguendo as duas mãos para o alto, exclamou: "É preciso escudar-se contra eles. Neles não se deve depositar confiança. É preciso mantê-los por baixo!"

Antes que eu pudesse prosseguir devassando seus pensamentos, detivemo-nos defronte ao Posto Policial. Eu queria me informar sobre a questão da segurança em Najaf. Mal havíamos desembarcado, vários policiais vieram ao nosso encontro e alegremente nos cumprimentaram. Um capitão esmagou minha mão com sua garra e me arrastou para dentro do escritório como um ladrão recém-aprisionado. Tirante uma escrivaninha e algumas cadeiras, o espaço era completamente despojado. Busquei assento, enquanto o capitão lançava sobre mim um olhar de curiosidade. Outros policiais irrompiam porta adentro, um maior, mais forte e mais grosseiro do que o outro. Eu me vi como numa jaula repleta de seres gigantescos, rudes, que, a despeito dos sorrisos que ostentavam, não perdiam a irradiação ameaçadora.

A conversa que ali se desenrolou pode ser rapidamente resumida. Os policiais disseram que tudo estava normal, tudo tranqüilo, exceto que, e da mesma forma se expressava o capitão, "vez ou outra uma bomba sobe aos ares e mata algumas pessoas". Na realidade, eles não relatavam nada. Não queriam oferecer a um estranho qualquer informação, mas tampouco queriam lográ-lo.
Sultan, a princípio, havia participado da conversa, mas pouco a pouco foi se entregando ao silêncio. Recostou-se em sua poltrona e me pareceu que seu rosto transparecia ao mesmo tempo decepção e ausência ilusões. Cada vez que o capitão exclamava: "Nós amamos os americanos! Eles nos libertaram da ditadura!" – e ele fazia isso muitas vezes, para prestar tributo a seus novos senhores; cada vez que gritava vivas aos americanos, uma dor parecia percorrer o corpo de Sultan, nada de intenso, sendo antes um repuxão, como se o beliscassem. Visivelmente, ele não conseguia suportar aquela homenagem aos libertadores. Em segundos, seus sentimentos pareciam mudar, e ele irradiava uma serenidade que beirava o cinismo. Sem precisar dizer uma palavra, ele conseguia transmitir tudo isso através de sua mímica. "Eu bem conheço a minha gente. Eles se curvam ante o poder e mais ninguém! Não possuem qualquer sentimento de honra!", era o que parecia querer dizer. Fascinado, eu observava aquele seu persuasivo jogo de expressões faciais, não ouvindo ao capitão e a suas exaltações senão como algo mais à margem. Só quando ele se excedia, quando resvalava para uma dicção submissa que lembrava a ditadura, eu ficava à espreita, espantado com tamanha capacidade de transformação.
Depois de mais de uma hora, os policiais nos despediram tão efusivamente como nos haviam recebido. O capitão tornou a esmagar minha mão, e seus colegas, todos eles enormes como guarda-roupas, repetiam-lhe o gesto. Retornamos a Bagdá, com rapidez, segurança e circundados pelo falatório de Hassan, que tampouco conseguia pôr um termo aos esforços de uma longa jornada.
Pouco antes de Bagdá, eu interrompi Hassan com as palavras: "Sultan, diga lá, o que você fazia afinal antes da guerra?"
"Eu era empresário."
"Mas, em que ramo?!"
"Segurança. Segurança."

Na segunda vez, ele pronunciou a palavra em tom baixo, num sub-tom conspirativo. Antes que eu retomasse o questionário, ele prosseguiu: "O senhor sabe, nós tivemos duas revoluções, alguns golpes-de-estado, golpes militares. Quero dizer, mudanças abruptas nós tivemos muitas. Mas quem quer que tomasse o poder anunciava que no dia seguinte todos os funcionários do Estado deveriam comparecer, sem qualquer exceção, a seus locais de trabalho. O aparelho de Estado seguia funcionando, assim, de maneira relativamente normal. Só mesmo depois da tomada de poder é que se procedia – passo a passo – ao saneamento da burocracia, livrando-a dos elementos hostis. O cidadão médio era, portanto, poupado de maiores transtornos!"

Aí ele acrescentou num tom trovejante: "E o que fizeram esses americanos. Dissolveram o exército. Simplesmente isso, da noite para o dia, com um golpe de caneta! Com isso não fizeram senão produzir instabilidade. É estúpido. Realmente estúpido!"

Eu bem que gostaria de apoiar Sultan, mas algo me impedia de fazê-lo. Eu não conseguia dizer exatamente o que era. Um sentimento talvez de estar ali diante de um homem que dizia que dizia o correto, mas que, ao dizê-lo, tinha em mente algo de maléfico. Soava-me demasiado a ratificação da ditadura, segundo um cálculo frio, de acordo com uma técnica permeada de sentimentos misantrópicos. Sultan pareceu-me alguém capaz de usar sem qualquer escrúpulo a argúcia do seu raciocínio, para garantir o que lhe parecia ser o bem supremo: tranqüilidade a qualquer preço.

Quando entramos em Bagdá, o sol acabava de se pôr. As ruas iam ficando vazias. As pessoas retiravam-se para suas casas, temerosas dos saqueadores, ladrões e americanos. Sultan estacionou defronte ao hotel. Uma vez mais eu olhei para o esplendor de seus cabelos, que, na escuridão, confundia-se com a noite que caía.
"Como sempre", ele disse, "as coisas não vão ficar assim como estão".

Com esta frase enigmática, ele me deixou. Fui para o meu quarto e liguei a televisão. Um canal árabe de notícias transmitia uma mensagem de Saddam Hussein, na clandestinidade. Ele falava a seu povo. A voz do ditador soava ameaçadora. Eu fechei os olhos e ouvi aquelas palavras que não alcançava compreender. Com certeza, novamente ele conclamava à guerra santa contra os invasores. Não importa como argumentasse, em que poderia agarrar-se esse homem, se quisesse ter realmente a esperança de que seu povo, por ele próprio espezinhado, ainda haveria de segui-lo?

Enquanto eu me perguntava sobre essas coisas, ocorreram-me a figura de Sultan e as observações esparsas que fizera ao longo do dia. Seu orgulho pelo poderio militar; seu ódio mal disfarçado pelos americanos; sua desconfiança em relação aos xiitas; suas frias palavras a respeito de como foram conduzidas as mudanças de poder no país; a última consideração críptica em relação ao futuro. De repente, tudo aquilo se juntou, produzindo uma imagem, como num puzzle. O ditador, cuja voz ainda ressoava provinda do éter, não poderia ele argumentar da mesma forma? Não seria essa a melhor maneira de unir os iraquianos?

Com efeito. Sultan argumentara como Saddam seria forçado a fazer se quisesse ter perspectivas de êxito.

Saí ao terraço. O Tigre seguia lentamente seu curso. Do outro lado da margem, pude ainda reconhecer esquematicamente o extenso território do palácio presidencial de Saddam. Onde, afinal, estaria ele agora? "Ele é um mestre do disfarce. Tenho certeza de que submeteu seu rosto a uma intervenção cirúrgica transformadora", foi o que me disse pela manhã um homem que trabalhava para a firma de segurança; esta era também a opinião disseminada entre os perseguidores de Saddam. Isso explicava também por que não conseguiram encontrá-lo.

De novo me veio à mente a figura de Sultan, seu cabelo pintado, seu rosto de máscara, as contorções de sua fisionomia no Posto Policial, tudo quanto, nele, era artificial, carente de naturalidade. Pela aparência, era como se acabasse de sobreviver a um ataque.

Agora, diga-me: terei enlouquecido? Pode ser, eu não sei. Decida-se o leitor, ele próprio. Mas não deixe de levar em conta, Saddam tem muitas caras.

P.S. Naquela noite, mais uma vez eu me levantei e tomei nas mãos uma biografia de Saddam. Se é que ela reproduzia na íntegra as viagens de Saddam pelo país, a última vez que estivera em Najaf foi há exatos vinte anos – como Sultan.


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