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Artigos-->O Dr. Sabe-tudo -- 06/02/2003 - 20:52 (BRUNO CALIL FONSECA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Dr. Sabe-tudo



Somerset Maughan

Estava disposto a antipatizar com Max Kelada antes mesmo de conhecê-lo.



Terminara a guerra e era grande a afluência de passageiros aos navios de carreira. Dificilmente se conseguia acomodação e quem desejasse viajar tinha que se conformar com o que as agências ofereciam. Ninguém pensava na possibilidade de ocupar sozinho um camarote, e me senti feliz quando me deram um onde havia apenas duas camas. Mas quando me disseram o nome do companheiro, a minha satisfação se desfez. Era como uma sugestão de vigias rigidamente fechadas, ausência de ar no camarote, durante a noite.



Já era desagradável compartilhar de um camarote durante quatorze dias (eu viajava de São Francisco para Yokoama); mas a partilha ter-me-ia parecido menos desalentadora se o passageiro se chamasse Smith ou Brown.



Quando embarquei já estava no camarote a bagagem do Sr. Kelada. Desagradou-me o aspecto; rótulos em excesso nas malas de mão e demasiado grande a mala de camarote.



O Sr. Kelada já retirara do estojo os objetos de toucador, e observei que era cliente do maravilhoso Mousieur Coty, pois no lavatório o seu perfume, a sua loção e a sua brilhantina. As escovas do Sr. Kelada, em suportes de ébano com o monograma em ouro, eram o que havia de melhor na matéria.



Antipatizei inteiramente com o Sr. Kelada.



Dirigi-me para a sala de fumar. Pedi um baralho e pus-me a jogar "paciência". Mal começara, aproximou-se alguém, perguntando-me se o meu nome não era esse mesmo.



— Eu sou o Sr. Kelada — acrescentou, com um sorriso em que mostrava uma fila de dentes brilhantes; e sentou-se.



— Ah, sim, creio que estamos no mesmo camarote.



— É o que chamo de sorte. A gente nunca sabe com quem vai no camarote. Fiquei contentíssimo ao saber que você era inglês. Gosto muito que nós, ingleses, fiquemos juntos, a bordo, está entendendo?



Pestanejei.



— É inglês? — perguntei, talvez sem habilidade.



— Totalmente. Acha-me parecido com um americano? Sou inglês até a medula.



Para prová-lo, o Sr. Kelada tirou do bolso um passaporte e, ufano, agitou-o junto ao meu nariz.



O Rei Jorge tem muitos súditos estranhos. O Sr. Kelada era baixo e de construção vigorosa, moreno e escanhoado; possuía um nariz carnudo e adunco, e uns olhos muito grandes, brilhantes e límpidos.



Os cabelos negros e longos eram reluzentes e encaracolados. Falava com uma fluência nada inglesa e os gestos eram exuberantes. Tinha a íntima convicção de que um exame mais detido naquele passaporte britânico me revelaria que o Sr. Kelada nascera sob céu mais azul do que se vê geralmente na Inglaterra.



— O que vai tomar? — perguntou-me.



Olhei-o hesitante. A lei seca estava em vigor e, segundo todas as aparências, o navio estava integralmente seco.



— Quando não estou com sede, não sei se o que me desagrada mais é "ginger ale" ou limonada.



Mas no rosto do Sr. Kelada um sorriso oriental.



— Uísque com soda, ou Martini seco, é só dizer a palavra.



De cada um dos bolsos posteriores das calças retirou um frasco, colocando-o sobre a mesa, diante de mim. Escolhi o martini. Ele chamou o garçom e pediu gelo e dois copos.



— Um ótimo coquetel — disse eu.



— Pois há em quantidade na fonte de origem, e se você tiver amigos a bordo, diga-lhes que descobriu um indivíduo que dispõe de todo o álcool do mundo.



O Sr. Kelada era loquaz. Falou de Nova Iorque e de São Francisco. Discutiu peças de teatro, filmes, política. Era patriota. O pavilhão britânico é um impressionante pedaço de pano, mas quando é enfeitado por um homem de Alexandria ou Beirute, não posso evitar a impressão de que perde um quê de sua dignidade. O Sr. Kelada era íntimo. Não gosto de me fazer importante mas julgo sempre inconveniente que uma pessoa totalmente estranha não me conceda o tratamento de senhor. O Sr. Kelada certamente para me deixar à vontade, não usava tal formalidade. Não gostei dele. Deixei as cartas de lado quando ele se sentou: mas, achando que para a primeira vez a nossa conversa já se estendera demais, continuei com a "paciência".



— O três no quarto — disse o Sr. Kelada.



— Nada há demais desesperante quando estamos jogando paciência do que nos dizerem onde devemos por a carta que viramos, antes de termos tempo de olhar por nós mesmos.



— Está andando, está andando — gritou: — O dez no valete.



Com o coração cheio de ódio, terminei o jogo. Neste momento ele segurou o baralho.



— Gosta de truques com cartas?



— Não; detesto truques com cartas, respondi.



— Bem, vou mostrar-lhe só este.



Mostrou-me três. Depois, disse que ia descer para o salão de refeições e escolher um lugar.



— Oh, não se incomode — disse ele. Já reservei um lugar para você. Achei que, como estávamos no mesmo camarote, bem podíamos sentar-nos à mesma mesa.



Sim, eu não gostava do Sr. Kelada. Não somente eu compartilhava o camarote com ele e fazia três refeições por dia na mesma mesa, como também não podia passear pelo convés sem que se juntasse a mim. Era inútil fingir que não o via. Nunca lhe ocorria que não era desejado. Tinha a convicção de que os outros ficavam tão contentes de vê-lo como ele de os ver. Se estivéssemos em casa, poderíamos empurrá-lo escada abaixo, batendo com a porta, sem que surgisse no seu cérebro a suspeita de que não era uma visita desejada. Era muito sociável e, em três dias, já se dava com todo o mundo a bordo.



Dominava tudo. Arranjava apostas, dirigia leilões, organizava subscrições para os prêmios nas competições esportivas, inventava partidas de chinquilho, promoveu o concerto e o baile à fantasia. Estava sempre em toda a parte. Sem dúvida, era o homem mais odiado do navio. Chamavamos-lhe o Dr. Sabe-tudo, mesmo diante dele. O Sr. Kelada considerava-se elogiado. Mas, nas horas das refeições era que se tornava ainda mais intolerável. Então, durante a melhor parte de uma hora, tinha-nos à sua mercê. Era jovial, veemente, loquaz e questionador. Sabia tudo melhor do que qualquer pessoa; e afrontava a sua vaidade presunçosa quem discordasse dele. Não abandonava um assunto, por menor importancia que tivesse, a não ser quando conseguisse reduzir o interlocutor ao seu ponto de vista. Nunca lhe ocorria a possibilidade de que pudesse estar equivocado. Era o homem que sabia.



Sentávamo-nos à mesa do médico. O Sr. Kelada sem dúvida manteria pacificamente a hegemonia, pois o médico era preguiçoso e eu, frigidamente indiferente; mas havia também um homem chamado Ramsay como companheiro de mesa. Era tão dogmático como o Sr. Kelada e irritava-se amargamente com a inabalável firmeza do levantino. As discussões que travaram eram ardentes e intermináveis. Ramsay estava no serviço consular dos Estados Unidos em Kobe. Era um americano do meio oeste, grande e pesado. A gordura esticava-lhe a epiderme, e por sua vez esticara-lhe seus ternos de confecção. Viajava de volta para o seu posto, depois de uma rápida visita a Nova Iorque onde fora buscar a mulher, que estivera passando um ano em sua terra.



A Sr.ª Ramsay era uma mulher miúda e linda, de maneiras agradáveis e portadora de senso de humor. O serviço consular é mal pago e ela vestia com simplicidade, mas sabia tirar partido de seus vestidos. O efeito que causava era de serena distinção. Não teria lhe prestado atenção particular se ela não tivesse uma qualidade que poderá ser bastante comum nas mulheres, mas que hoje não é comum no comportamento delas. Não era possível olhar a Sr.ª Ramsay sem notar desde logo a sua modéstia. Fulgia na sua pessoa como uma flor na lapela. Uma noite, durante o jantar, a conversa casualmente recaiu sobre o tema pérolas.



Os jornais vinham noticiando a cultura de pérolas pelos hábeis processos dos japoneses e o médico observou que as pérolas cultivadas diminuiriam o valor das verdadeiras. Aquelas já eram ótimas; em breve seriam perfeitas. O Sr. Kelada, como era de seu hábito, embrenhou-se no novo tema. Disse-nos tudo o que havia sobre pérolas. Creio que Ramsay soubesse pouco sobre elas, mas não pôde resistir à oportunidade de zombar do levantino e, em cinco minutos, estávamos numa discussão exaltada.



Eu já assistira a outros gestos de impetuosidade e volubilidade do Sr. Kelada, nunca, porém, o vira tão impetuoso e volúvel como agora. Finalmente, estimulou-o qualquer coisa que Ramsay disse, porque ele deu um soco na mesa e gritou:



— Bem, acho que entendo do que estou falando. Vou ao Japão exatamente para tratar desse negócio de pérolas. Estou no ramo e não há qualquer homem no ramo que não lhe afirme que o digo sobre pérolas é lei. Conheço as melhores pérolas do mundo e o que não conheço não vale a pena conhecer.



Eram novas para nós, porque o Sr. Kelada, apesar de toda sua loquacidade, não dissera a ninguém qual a sua ocupação. Sabíamos apenas vagamente que ia ao Japão a negócios. Olhou a volta da mesa, triunfalmente.



— Os japoneses jamais conseguirão uma pérola cultivada que um perito, como eu, não conheça, olhando-a com o canto do olho. — Apontou para o colar que a Sr.ª Ramsay usava: — Pode confiar na minha palavra, Sr.ª Ramsay: "este colar que a senhora está usando nunca valerá um centavo menos do que vale agora."



A Sr.ª Ramsay, à sua maneira modesta, corou um pouco e empurrou o colar para dentro do vestido. Ramsay inclinou-se para a frente. Olhou para nós todos. Um sorriso brincava nos seus olhos.



— É um belo colar, esse da minha mulher, não acha?



— Notei-o logo — respondeu o Sr. Kelada — Hanhan, disse cá comigo; essas pérolas são verdadeiras.



— Não fui eu quem as comprou, naturalmente. Gostaria de saber quanto calcula que custaram.



— Oh, no comércio em grosso devem ter andado em quinze mil dólares. Mas se forem compradas na Quinta Avenida, não me surpreenderia se dissessem que o preço andou pelos trinta mil.



Ramsay sorriu com crueldade.



— Pois vai surpreender-se ao saber que a minha comprou esse colar no balcão de bijuterias de uma loja de departamentos na véspera de nossa saída de Nova Iorque por dezoito dólares.



O Sr. Kelada ruborizou-se.



— Tolice! O colar é legítimo; é, pelo tamanho, um dos mais belos que eu já vi.



— Quer fazer uma aposta? Aposto cem dólares como é imitação.



— Aceito.



— Ora Elmer, você não pode apostar numa certeza — disse a Sr.ª Ramsay.



Trazia um leve sorriso nos lábios e o tom de sua voz era levemente súplice.



— Acha? Se tenho uma oportunidade como esta de ganhar dinheiro facilmente, seria um tolo se não aproveitasse.



— Mas como vamos provar? — continuou ela. — é apenas a minha palavra contra a do Sr. Kelada.



— Permita-me examinar o colar; se for imitação, hei de lhe dizer logo. Posso perder cem dólares.— Disse o Sr. Kelada.



— Tire-o querida. Deixe o Sr. Kelada examiná-lo à vontade.



A Sr.ª Ramsay vacilou um momento. Levou as mãos ao fecho. — Não posso abrir — disse — O Sr. Kelada terá de contentar-se com a minha palavra.



Invadiu-me a súbita suspeita de que estava para acontecer qualquer coisa infeliz, e não me ocorreu nada para dizer. Ramsay levantou-se bruscamente.



— Eu abro.



Entregou o colar ao Sr. Kelada. O levantino retirou do bolso uma lupa e examinou-o atentamente. Um sorriso de triunfo espalhou-se pelo rosto liso e trigueiro. Devolveu o colar. Ia falar quando subitamente reparou no rosto da Sr.ª Ramsay. Estava tão pálido que parecia que ela ia desmaiar. Encarava-o de olhos muito abertos, aterrorizados. Transmitia um desesperado apelo; tão claro que estranhei que o marido não o notasse. O Sr. Kelada ficou silencioso, a boca entreaberta. Enrubesceu violentamente. Quase podia ver-se o esforço que fazia sobre si mesmo.



— Enganei-me — disse — É uma excelente imitação, mas naturalmente, quando examinei o colar com a lupa, vi que não era legítimo. Creio que vale dezoito dólares, no máximo.



— Talvez isso o ensine a não ser tão auto-suficiente de outra vez, meu jovem amigo — disse Ramsay tomando a nota.



Notei que as mãos do Sr. Kelada tremiam.



A história espalhou-se pelo navio, como sucede sempre com as histórias e, naquela noite, ele teve de enfrentar a zombaria de muitos. Era um grande motivo para hilaridade o ter sido apanhado em erro o Dr. Sabe-Tudo. Mas a Sr.ª Ramsay se retirou para o camarote com uma dor de cabeça.



Na manhã seguinte, levantei-me e pus-me a fazer a barba. O Sr. Kelada permanecia deitado, fumando. Subitamente, ouvi um pequeno roçar, e vi uma carta deslizando por baixo da porta. Abri a porta e olhei para fora. Não havia ninguém. Tomei da carta e vi que estava endereçada para o Sr. Kelada. O nome estava escrito em letras de fôrma. Entreguei-lhe.



— De quem é? — Abriu-a. — Oh!



Tirou do envelope não uma carta, mas uma nota de cem dólares. Olhou para mim e tornou a enrubescer. Rasgou o envelope em pedacinhos e os pôs na minha mão.



— Quer fazer o favor de atirar pela vigia?



Fiz o que me pedia e depois olhei-o com um sorriso.



— Ninguém gosta de passar por um perfeito idiota — disse ele.



— As pérolas eram legítimas?



— Se eu tivesse uma linda mulher, não a deixaria passar um ano em Nova Iorque, enquanto eu estivesse em Kobe... — disse-me.



Nesse momento, não antipatizei de todo com o Sr. Kelada. Ele estendeu a mão, tirou a carteira, e nela colocou cuidadosamente a nota de cem dólares.



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