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Contos-->Plínio e a voz -- 02/11/2012 - 17:01 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Plínio e voz

 

  Não é uma história de um futuro distante, como aquelas que se escreve para participar de concursos literários: “Como será o mundo em 2058?”.  É um caso de hoje, crônico, capaz de se tornar fato agora, logo depois do cafezinho ou amanhã antes do almoço.  Plínio levanta-se da cama após alguns minutos de “preciso descansar o esqueleto um tantinho”. Nem cochilou, mas teve a sensação de que sonhou. No que talvez tenha sido mesmo uma atividade de seu inconsciente, sentiu que alguém lhe dava uma injeção na têmpora esquerda, mesmo lugar em que suporta, vez ou outra, uma enxaquecazinha irritante.   Antes de calçar o sapatênis, fez questão de conferir se abelha ou bicho da dengue não o tinham ferroado, picado, ferrado a cabeça. Não tinham. Tudo em ordem, meio tonto com o sono que não pudera curtir, tomou o rumo da garagem. 

            -  Não saia sem apertar o registro da torneira.

            Ouviu a voz que  ecoou não como o alarme de algum carro que berrava na rua. A voz vinha de dentro de sua cabeça e talvez até pudesse ser ouvida pela Marissol que passava roupa na salinha do escritório, distraída em seus fones de MP3 paraguaio. 

            - Deve ser sono atrasado! , pensou ele tentando ignorar o alerta. E a voz:

            - Não há relação evidente de déficit de sono, senhor. Fato:  a torneira do banheiro encontra-se parcialmente aberta. Isso provocará o desperdício de trinta litros de H2O até o seu retorno,  que deverá ocorrer às dezoito horas e trinta e dois minutos e...

            Plínio estava congelado. As palavras recitadas de forma monótona e maquinal vinham mesmo de uma voz em sua cabeça. Chacoalhou a cabeleira antes de perguntar a si mesmo:

            - O que é isso?

            - Especifique “isso”?

            - Para, caramba!

            - Estamos parados, senhor, embora esse seja um conceito relativo. A água segue se perdendo pelo ralo.

            Quem sabe se corresse ao banheiro e apertasse bem o registro... Fez isso. A voz não se manifestou. Acendeu a luz para poder se ver no espelho. Algum sinal de loucura? Alguma baba escorrendo discreta pelo canto da boca? Talvez um vasinho estourado no olho esquerdo? Nada. Rosto saudável. Era certo: delírio.  Deu meia volta, decidido a não comentar o assunto sequer nas sessões quinzenais de terapia.

            - A luz do banheiro continua acessa. Isso aumentará o consumo de energia nessa unidade em 0,023 por cento a cada hora.   É aconselháv...

            - Não!

            - Sim, é aconselhável, pois cada cidadão deve contribuir para a economia dos recursos naturais. 

            - Quem é você?

            - A pergunta não se aplica, uma vez que eu não sou uma pessoa ou um ser personificado. Mais adequado seria perguntar “O que é você?”. Gostaria de fazer essa pergunta?

            - Ahhh!

            - Não entendi sua resposta. Favor repetir.

            - Quero! Eu quero fazer essa pergunta!!

            -...

            -...

            - Aguardando a enunciação da pergunta.

            - Hum?!

            - Não entendi sua resposta. Favor re...

            - Tá, tá! O que é você?

            - Sou um dispositivo artificial de consciência ecopolítica, versão 4ponto2ponto1, configurado em... 0-2-de-mai-o-de-2-0-1-2. Implantado em 0-3-de-mai-o-de-2-0-1-2.

            - Implantado. Puta que pa...

            - O senhor parece estar pronunciando uma palavra de baixo calão. Aconselha-se a substituição por um eufemismo. Gostaria de consultar nosso roll de xingamentos leves e socialmente aceitos?

-       ... 

………………….

 

Na semana passada, Plínio estava enlouquecendo com uma voz intrusa que ecoava em sua cabeça. Paramos mais ou menos neste pé, quando a tal voz se identificava:

            - Sou um dispositivo artificial de consciência ecopolítica, versão 4ponto2ponto1, configurado em... 0-2-de-mai-o-de-2-0-1-2. Implantado em 0-3-de-mai-o-de-2-0-1-2.

            - Implantado. Puta que pa...

            - O senhor parece estar pronunciando uma palavra de baixo calão. Aconselha-se a substituição por um eufemismo. Gostaria de consultar nosso roll de xingamentos leves e socialmente aceitos?

            Plínio ainda esperava o momento em que Marissol e sua cantoria de passar roupas o acordassem do pesadelo, mas o martírio se alongava sem dar pinta de sonho. Percebeu que, se ficasse sentado na beira da cama, os pés plantados no chão, a voz parava de se manifestar.  Dispositivo artificial de consciência ecopolítica? O que significava isso? Tinha sido implantado em maio? Como? Não tinha respostas. Tinha era medo de perguntar, pois, caso perguntasse...

            - As respostas viriam prontamente.

            Ups... Se é capaz de captar até as estratégias de discurso indireto livre do narrador, imagine se a tal voz não poderia ler os pensamentos de Plínio! Ainda assim, não se manifestava. Precisava que uma pergunta fosse elaborada de fato.  

            - Sinto informar que o senhor está atrasado para o tratamento odontológico. A consulta começa em zero-cinco-minutos.

            - Eu sei.  Ai, meu Deus, estou conversando com a voz!

            - Seu nível de adrenalina está acima do indicado. Favor iniciar processo de relaxamento. 

            - Relaxamento? Como posso relaxar numa situação dessas?!

            - Primeiro passo para o relaxamento: solte seus braços sobre as pernas. Segundo...

            - Sei, sei! Não foi uma pergunta!

            - Sim, senhor, foi uma pergunta marcada com a entonação específica de uma indagação. Deseja ouvir sua fala novamente?

            - Não, não quero ouvir... Opa! Calma. Posso ouvir o que falei antes?

            - O seu pacote de implante permite a recuperação imediata de todas as falas e pensamentos dos últimos vinte-e-um dias. Consulte a operadora para a ampliação de memória de gravação.

            - Caral...

            - O senhor parece, novamente, querer pronunciar uma palavra de baixo calão. A sugestão...

            - Entendi, entendi. Desculpe-me. Quer dizer... Existe, então, uma operadora desse negócio, como é mesmo? Dispositivo?

            - A operadora é a mesma de seu serviço de telefonia celular, senhor.

            - Oi?

            - Olá!

            - Não. A operadora é a Oi?

            - Claro!

            - Foi uma piada?

            - Não, senhor, foi uma resposta à sua pergunta. Deseja ouvir a pergunta formulada novamente?

            - Não, não desejo.  Então quer dizer que você foi implantado, implantada ou, sei lá, quando eu troquei de plano?

            - Implantado em 0-3-de-mai-o-de-2-0-1-2.

            - Hum... Deve ter sido nessa época mesmo.  Peraí! Eu não me lembro de ter pedido esse tipo de serviço. Nem sei se isso é um serviço ou se...

            - O aviso de adesão foi entregue nesta unidade residencial no dia  0-7-de-mai-o-de-2-0-1-2. A assinatura do aceite é de Ma-ri-s-sol Fer-rei-ra de Je-s...

-       Jesus! Marissooool! 

 

................................

 

Deixamos Plínio em meio a um bate-papo quase amistoso com a voz que passou a habitar sua cabeça. Estávamos por aqui:

            - Peraí! Eu não me lembro de ter pedido esse tipo de serviço. Nem sei se isso é um serviço ou se...

            - O aviso de adesão foi entregue nesta unidade residencial no dia  0-7-de-mai-o-de-2-0-1-2. A assinatura do aceite é de Ma-ri-s-sol Fer-rei-ra de Je-s...

            - Jesus! Marissooool! 

            A conversa com a Marissol foi daqueles que só quem tem empregada em casa sabe entender: não, eu? imagine!, nem estava aqui no dia, nunca ouvi falar disso!, alguém escreveu meu nome no papel, eu não faço esse tipo de coisa.  Ficou nisso mesmo. Para ser honesto com você, leitor, Plínio já não estava assim, tão preocupado com a voz. Havia outras vozes além daquela em sua mente, e essas falavam tão profunda e intimamente que nem eu consegui ouvir. Nem o ouvido virtual da tal voz.  Poderia ser bom. O jeito era seguir para o dentista.

            No caminho, a voz mostrou que entendia tudo sobre regras de trânsito, meteorologia, física quântica, relacionamentos amorosos, religião ortodoxa. Era um Google implantado na mente de Plínio. Tudo bem, falava demais, era intrometida e persistente. Nisso, lembrava muito a ex-mulher de nosso protagonista, com diferenças importantes: não dava beliscão, não ameaçava chilique e, melhor, não pedia divórcio nem entrava com pedido de aumento de pensão quando contrariada.  Com o tempo, talvez o incômodo valesse a pena.  O carro de Plínio já estava devidamente estacionado numa vaga localizada pela voz. Sim! Ela tinha GPS!

            Já na cadeira do dentista:

            - Vamos fazer a limpeza hoje, ok?

            - Uhhuhh ehmm!

            “Por que dentistas fazem perguntas para pacientes de boca aberta em suas cadeiras?”, foi o que Plínio pensou com seus botões...botões que, desde hora e pouco atrás, acionam a voz:

            - Resposta: a profissão de dentista ou bacharel em odontologia impõe a seus praticantes um grau de isolamento muito grande. Mesmo acompanhados por seus pacientes durante todo o dia, tais profissionais não obtêm interação real com outros seres humanos. Isso explica a necessidade de simular conversas, ainda que não ob...

            “Voz, poupe-me. Tem rádio FM aí?”, interrompeu Plínio em pensamento.

            - Escolha o país.

            “Aqui mesmo. Pode ser a Rádio USP, por favor?”, completou mentalmente o homem de boca aberta e repleta de bicarbonato de sódio.

            Não é que a voz fornecia som ambiente da melhor qualidade? Com tantos serviços, Plínio começou a achar que Marissol tinha cometido um erro feliz.   O dentista já liberava o homem de dentes limpos como nunca.

            - Muito bem, Plínio. Agora, só daqui a seis meses. O senhor vai se lembrar.

            - Eu não vou, mas minha voz interior certamente lembrará.

            - Que bom. Gostaria de ter essa capacidade.

            - Pois é...

            Plínio passou pela recepção e até pensou em dar uma cantada em francês na loirinha que falava ao telefone, só sorrisos (traduza para francês, voz), mas achou que era munição muita para presa pouca.  A observação do dentista – “gostaria de ter essa capacidade”- ainda intrigava Plínio. Se ele tinha agora uma internet plugada na cabeça, quem mais teria? A voz tinha afirmado que era um serviço oferecido pela mesma operadora do celular. Então...

            - Esse serviço que você oferece, voz, está disponível para qualquer usuário?

            - Em fase de teste. Apenas no-ven-ta e no-ve usu-á-rios foram habilitados no Bra-sil. 

            - Quantos nesta cidade?

            - Nesta cidade, apenas este implante e mais um.

            - Puxa!

            Plínio já – e ainda – se sentia um privilegiado. Ele e mais um! 

 

……………………………

 

Na  semana passada, a voz informava a Plínio o número de “contemplados” com o tal implante. Foi algo assim:

            - Nesta cidade, apenas este implante e mais um.

            - Puxa!

            Plínio já – e ainda – se sentia um privilegiado. Ele e mais um!  A irritação que o acometera pouco antes, quando a voz surgira, transformava-se em animação. Quem não iria querer uma voz que soubesse tudo sobre tudo? Enquanto eram apenas dois na cidade e as notícias incrivelmente ainda não haviam se espalhado, talvez fosse possível tirar proveito desse assistente de luxo.

            - Existe uma cláusula de sigilo sobre esse implante, voz?

            - Em fase de teste de riscos. Nada vazou para a imprensa até o momento. Deseja ativar o escaneamento de novidades sobre esse assunto específico.

            - Por favor, voz.

            - Escaneamento acionado.

            Plínio estava excitado além, e não percebeu que a voz se referiu a certos “riscos” que estariam em análise. Em sua constante presa de chegar não sabia onde, Plínio sempre fora um mau ouvinte. Agora era obrigado a ouvir sem trégua.  De volta ao carro:

            - Radar a 200 metros.

            - Obrigado. Tive uma ideia.  Vamos visitar um cliente meu.

            Vou poupar o leitor da totalidade do episódio seguinte.  Plínio é daquele tipo de pessoa que tenta tirar alguma vantagem das piores situações. Há quem diga que isso é persistência e que a tendência de nunca desistir estaria no DNA de certos povos, o nosso incluído. É difícil apostar fichas nesse tipo de generalização. O que me parece é que Plínio é como aquele sapo que tenta apertar o pescoço comprido da garça que o engole. Plínio e o sapo têm um instinto de sobrevivência insano. Outra imagem que deita bem sobre esse personagem é a do homem que, diante da iminência de ter a pele arrancada para que selvagens fizessem dela uma canoa, consegue uma faca e corta a si mesmo em diversos pontos gritando: “Quero ver fazer canoa com a minha pele agora, selvagens!”. Plínio era também assim: guardava uma posição eterna na defensiva, quase no terreno da vingança.  Era discreto, mas havia ali algo de vingativo, talvez um gotinha de sangue em copo d´água. O suficiente para turvar o líquido.

            O briefing do que Plínio foi fazer no tal cliente é curto, como deve ser qualquer resumo. Vai que o empresário em questão estava havia meses protelando a compra de louças de banheiro fornecidas pela distribuidora de nosso sapo armado de faca.  As peças eram para  um grande condomínio na saída da cidade e a venda representaria o fechamento da quota do mês para Plínio, mesmo faltando dez dias para o limite imposto pela diretoria.   O dono da tal construtora, conhecido amante de náutica, exibia na parede uma coleção de nós de marinheiro. Antes da voz, Plínio era um ignorante sobre barcos; não sabia a diferença entre proa e popa ou vice-versa. Com o upgrade da voz, entrou na sala do engenheiro e iniciou uma conversa tão rica em detalhes sobre cada um dos nós emoldurados e suas respectivas funções em alto-mar que o resultado não poderia ser outro: um novo amigo para um cruzeiro em iate particular, em janeiro, e um contrato sorridente no bolso. Muitas pias, cubas, bacias, bidês e acessórios sem utilidade vendidos no máximo preço da tabela. E sem choro.

            Se você ainda não entendeu como Plínio fez para acessar as informações sobre barcos e badulaques, pense que além de sapo armado com faca até os dentes, Plínio também tinha trabalhado como ponto em teatro amador. A voz, se ouvisse nossa narração, diria a você que “ponto” é aquele indivíduo que “sopra” as falas para os atores esquecidos e, em grupos de teatro menores, fica com um fone e um rádio avisando sobre a deixa de cada ator que entra em cena. Plínio começou a conversa com o empresário fazendo uma pergunta genérica sobre os nós exibidos na parede da construtora. A partir daí, acionou mentalmente a voz com todo tipo de dúvidas sobre os nomes escalados pelo engenheiro ao longo da conversa: nó de moleiro, nó de amarra, nó de balsa, nó de estiva, volta da ribeira. Cada novo “input” gerava um output em forma de muita informação. Bastava encontrar os filés e descartar o sebo.   Deu, fácil, o maior dos nós no homem dos nós.

            - Voz, vou usar uma frase de cinema: “sinto que esse é o começo de uma longa amizade”.

 

......................................

 

        Plínio confessava seus sentimentos pela voz. Paramos aqui:

        - Voz, vou usar uma frase de cinema: “sinto que esse é o começo de

uma longa amizade”.

        O sucesso da negociação com a construtora deixava Plínio em condições

de levar o resto do mês no sossego pleno. Um sossego plínio.  A ideia

era testar a utilidade da voz em outras situações. Ainda era cedo, mas

Plínio estacionou o carro perto do bar da moda daquela semana.

        - Este veículo está ocupando uma vaga reservada a emergências

médicas. É uma vaga para clientes da Dro-ga-ria San-ta Mar-ta. Há uma

vaga regular oitenta metros à frente.

        Plínio foi obrigado a se lembrar da real função do Dispositivo de sei

lá o quê: torrar a paciência.

        - Certo, voz. Você está com crédito.  Onde está essa vaguinha?

        - Siga em frente e vire a próxima rua, à esquerda.

        - Sim, senhora.

        Carro devida e legalmente estacionado. Plínio fez questão de entrar

no bar pela porta principal, em alto estilo. A única mesa ocupada

exibia  duas loiras replicadas, que não sofreram grandes impactos com

a chegada do vendedor de louças de banheiro.  Plínio também não ficou

animado com o que viu. As meninas tinham olhos carentes e jeito de

anêmicas. O desafio precisava ser épico. Melhor escolher um lugar

estratégico ali no balcão, nem muito exposto nem muito longe dos olhos

delineados que em breve desfilariam pelo salão.  Até lá, um Jack e

alguma conversa jogada fora.

        - Voz, andei pensando. Você tem um nome?

        - Dispositivo artifi...

        - Sei, sei. Mas isso nem é nome.  Acho que eu devia batizar você. O

que você me diz?

        - Digo o que for pedido, em sete idiomas diferentes. Deseja que...

        - Putz. Você é mesmo literal, voz. Quero saber sua opinião sobre ter

um nome de verdade?

        -  Sistema não programado para emitir opinião original sobre qualquer

tema. Deseja saber a opinião de algum escritor, pensador, consultor?

        - Não. Não desejo. Vamos reformular:  existe algum impedimento para

renomear este implante?

        - Não existe impedimento.

        - Ótimo. Vamos pensar num nome que tenha a ver com você. Nome, nome...

        - Deseja acessar listagem de nomes?

        - Talvez seja um bom começo.

        - Sim ou não?

        - Sim, voz. Quero ouvir nomes.

        - Letra A: Aarão, Aarona, Aashta, Abel, Abelardo...

        - Voz, liste apenas nomes femininos.

        - Aarona, Aashta, Abelarda, Abelia, Abi, Abigail, Abril, Acácia, Ada,

Adalberta, Adália, Adamaris, Adana, Adela, Adelaida, Adelaide, Adélia,

Adelina, Adelma, Adolfa, Adôncia, Adoracion, Adriana, Afra, Ágata,

Aglae, Agnes, Agnese, Agostina, Agustina, Ainda, Aidée, Aisha, Aitana,

Alameda...

        - Alameda? Isso é nome de gente?

        - Alameda: nome de origem latina. Seu significado literal é

equivalente à planície.

        - Tem louco pra tudo. Hum... Eu acho que esse método é meio

cansativo. Melhor pensar um pouco. Vejamos: quem é você?

        - Dispositivo art...

        - Tá, tá, tá. Você é chata, fala muito, sabe tudo, teima feito um

jegue. É... isso se parece com todas as mulheres que eu já conheci.

Não ajuda muito.

        O barman, estranhando a reza discreta de Plínio, interrompe:

        - O senhor quer beber alguma coisa?

        - Um Jack, por favor. Olha aí! Jack é um bom nome.

        - Não entendi.

        - Não, não. Estava pensando alto.

        Se Jack in the box, por que não “Jack in the Mind”? Jack Inside.

Ficou Jack In.  Eu te batizo…

 

……………..

 

Na semana passada, a voz que habita a cabeça de Plínio foi batizada com o nome de Jack. Jack in. Ambos, Plínio e a voz, estavam no barzinho da moda. Lembre-se de que Plínio estava ansioso para testar o poder de Jack In durante uma cantada.   O bar ainda estava vazio. Agora começou a ferver. Na panela de pressão, muitas mulheres em duplas, trios e até quartetos. Plínio esperou que elas se acomodassem e iniciou a investida.

            - O nível de álcool em seu sangue está muito próximo do limite recomendado pela Organização Mundial de Saúde.

            - Sei, Jack In. Não precisa atualizar essa informação nas próximas cinco horas.

            - Impossível atender a esse pedido. Este dispositivo, Jack Inside, foi programado para manter o usuário nos limites do política e ecologicamente correto.

            - Entendo. Olá, meninas!

            A loira e a oriental até que foram simpáticas e responderam em coro:

            - Olá.

            - Meu nome é Plínio.

            - Oi, Plínio.

            - Eu estava sentado ali no balcão e comecei a me sentir sozinho. Pensei que talvez vocês pudessem me ajudar.

            - Ih, Sâmia, a assistente social aqui é você!

            - Assistente Social? Puxa, Sâmia. Que profissão bonita a sua!

            - Você diz isso porque não vê o que eu vejo todo dia.

            - Gostaria mesmo de entender mais sobre assistência social.

            Plínio já estava expert. Ao dizer às menina que gostara de ter mais informações sobre assistência social, passou a receber dados de Jack In. Muitos dados.

            - Você não iria achar nada interessante.

            - Posso discordar? Melhor: posso discordar sentado aqui?

            - Acho que pode. Pode Andreia?

            - Por mim, pode.

            Foi o que bastou. Plínio conseguiu separar os conceitos de ajuda, apoio, assistencialismo e assistência. Fez críticas severas a alguns políticos que interpretaram mal o papel do assistente social. Enfiou zen-budismo, Fernando Pessoa e Chico Buarque no mesmo argumento. Arrematou tudo com um raio-x da administração do hospital no qual Sâmia trabalhava. Fez tudo isso com elegância, sempre respeitando o mandamento do conquistador barato: deixe sempre a mulher falar sobre ela mesma. 

            Foi mesmo o que bastou. A pobre Sâmia já tinha ficado interessada no “posso discordar”.  Quando Plínio discorreu sobre a “sua opinião” a respeito do futuro da profissão de assistente social, “indispensável para o projeto de país”, a moça estava sem defesas. Nem era preciso, mas...

            - Além disso, Sâmia, uma pessoa para ser assistente social, ao contrário do que muita gente pode pensar, precisa ter uma noção exata de quem ela é. Só se pode prestar assistência, dar apoio ao próximo, quando certos valores já estão sólidos em nós.  Volto a dizer: sua profissão é linda. 

            - Ora, Plínio. Fico feliz que alguém pense assim.

            - E cá entre nós, Andreia, uma mulher linda como a Sâmia só pode ter uma profissão especial mesmo, não acha?

            A última fala, típica do Plínio pré-Jack, nem foi ouvida. Sâmia já estava convencida: Plínio era encantador. Seguiram-se duas horas de conversa ao longo das quais os assuntos foram todos levantados pelas moças e arrematados pela lábia de Plínio somada ao conteúdo compilado por Jack In.  Até as escorregadas do vendedor de louças de banheiro pegaram bem: temperaram com humanidade aquilo que era dito. Plínio, destaque-se, sabia fugir da armadilha do tom professoral. Foi simpático e só não se pode dizer que tenha sido correto, pois de tudo que falara, um nada era de fato dele. Naquele momento, isso não incomodava, não atrapalhava, não existia.

                Como acaba esta passagem? Acaba com a conta fechada, Plínio pagando tudo, Andreia despachada e Sâmia na cama de Plínio. Tão fácil quando se tem Jack In... 

……………..

  Como acabou nossa última passagem? Acabou com a conta  do bar fechada, Plínio pagando tudo, Andreia despachada e Sâmia na cama de Plínio. Tão fácil quando se tem Jack In...

            Plínio ficou muito, talvez íssimo, animado com os resultados práticos das conquistas que angariou após o implante.  A maior venda do ano e a noitada erótica mais redondinha de toda a sua existência foram a razão para que muitos outros embustes fossem praticados. Embuste é palavra minha, talvez sua, mas não de Plínio. Enquanto encantou meia cidade com tudo que “sabia” sobre tudo que fosse catalogável, o feliz proprietário de Jack in não teve tempo de pensar sobre o fato de que ele era um bom engodo.

            A época é disto mesmo: de gente que é expert em esperteza. Uma consultinha básica e rápida ao Dr. Google e qualquer ser de mediana inteligência é capaz de encarar um jantar com outros seres igualmente medianos e sair de lá com placa de “entendedor”.  O encontro é com gente do vinho? Meia hora de portais de enologia e alguma memória de curto prazo resolvem o problema. Se o indivíduo em questão já tiver uma personalidade magnética, é possível até ser confundido com um “especialista” no assunto.  O pecado de Plínio, assim, não é maior que aquele que a maioria de nós comete. Estamos na era das opiniões e ter uma, mesmo que colada da rede, é questão de vida ou morte.

            Jack in, porém, é um abuso. É covardia. Um Google embutido na mente, acessível a qualquer momento, sem ruídos? Nem o Jacinto de Eça de Queiroz admitiria isso. É uma vantagem mais que tremenda sobre o ser humano cru.  É a máxima potência da tecnologia.  Energia atômica contra lamparina.  Alguma paridade deveria existir, mesmo considerando todas as teorias positivistas e evolucionistas.  Plínio estava trapaceando.

            Há outra consideração: a voz não fora criada para isso. Seu papel era mais de controle que de descontrole.  Dispositivo artificial de consciência ecopolítica. Dispositivo de CONSCIÊNCIA e não de inconsciência ou inconsequência. Plínio usava Jack In não para se melhorar, mas para tornar tudo mais fácil.  Duas vezes trapaceiro.

            Antes de seguirmos, pense que até o momento, Plínio não se fez perguntas importantes sobre essa tal implante. Im-plan-te. Implantado como? Como Jack In foi parar na cabeça de Plínio? Há um chip em seus miolos ou é tudo virtual? Se há um chip, onde está? É seguro? Se é remoto, como funciona? Que raio de tecnologia é essa que permite a alguém ou algo estar em seus pensamentos o tempo todo sem que se queira isso?

            Confesse: você também não tinha feito essas perguntas! Até aqui, leu a história, crente de que isso nem era importante. Eh! Se você não se preocupou com detalhes assim, quem pode condenar Plínio por se coçar mais com a possibilidade de abrir um escritório de consultoria num centro empresarial?  Consultoria sobre o quê? Sobretudo, sobre tudo.  Com nome já bolado:

            - Inside consultores associados.

            Concordemos que, ao menos, há alguma honestidade, e muita ironia, nesse nome.

………………..

 

A pequena aventura de Plínio e sua Jack In está no momento tranquilo em que uma nova empresa de consultoria deverá ser criada:

            - Inside consultores associados.

            Plínio estava animado, quase excitado. Seria a sua grande chance de se destacar da massa, de ir além da mediocridade que imperava no mundo. A classe média que invade os recantos antes reservados aos média-alta sufocava Plínio. Nos restaurantes, nos bares, no cinema, no teatro, nos aeroportos, na TV, na Internet, em tudo estavam eles: os seres da classe média. Embora sem dinheiro para ser outra coisa que não um medíocre, Plínio sempre tivera alma de lorde. Sofria com a pouca ambição, segundo seus critérios, dos emergentes.

            Agora seria diferente.  Plínio tinha consigo, e em tempo integral, a sua passagem para fora da Terra Média, o bem mais precioso do século: a informação. Poderia, com um pouco de astúcia, a qual não lhe era negada pela natureza, usar essa ferramenta para construir uma escada, um elevador, um foguete para um mundo de escolhidos. Bastava fazer tudo com cuidado e usar o potencial de Jack In da melhor maneira.  Para ele.

            - Informações sobre a divulgação do implante, senhor.

            - Diga, Jack.

            - Há uma afirmação num depoimento postado num blog que insinua, de forma jocosa, a possibilidade de um serviço como este implante Jack In.

            - É apenas uma insinuação?

            - Até o momento, é o que há de novo.

            - Não deve nos tirar o sono. Aliás, você dorme, Jack?

            - Sou um implante imaterial, senhor. Dormir é uma característica de seres animados.

            - Pois, pra mim, você parece bem animadinha.

            Quase emocionante essa relação dos dois pombinhos.

            - Jack In, fale-me sobre como você entrou em minha mente.

            - O dispositivo artificial de consciência ecopolítica não está em sua mente. De fato, a palavra “implante” é inadequada para definir como o dispositivo opera.

            - Então você não está dentro da minha cabeça? Por que escuto sua voz aqui?

            - Uma tecnologia denominada sintonia biofrequencial permite que esse canal se complete usando elementos ferrosos existentes em seu organismo. Ondas de comprimento muito específico são capazes de obter reflexão em cada uma das moléculas desse tipo presentes num ser vivo. Na verdade, você me escuta em sua cabeça, mas estou presente em todo o seu corpo.

            - É mesmo?! Como só eu escuto?

            - O volume é equivalente ao que alcança os seus batimentos cardíacos. Um cardiologista seria capaz de ouvir a minha voz usando mecanismos adequados, como um estetoscópio.

            - Interessante. Mas ainda não entendo como você não se sintoniza, por exemplo, nesse cara que está passando aí fora.

            Ah! Esqueci de dizer que Plínio estava sentado na varanda de uma cafeteria, sorvendo um cappuccino.

            - Essa é a explicação para a denominação biofrequencial. A conexão se estabelece por compatibilidade de DNA. Só o seu DNA fecha a conexão do serviço que foi contratado por você.

            - Caraca! DNA?!

            Difícil não assustar, hein? 

 

………………….

 

Deixamos Plínio de queixo caído com a explicação de Jack In sobre o funcionamento do “implante”, que está entre aspas por não ser, de fato, um implante. Há toda uma engenharia biológica, que envolve até DNA para a operação da voz.  Além de espantado, Plínio ficou meio sem entender o que era tudo aquilo. Resolveu esfriar um pouco a cabeça e permanecer calado por algumas horas, numa tentativa de parar de ouvir os sopros ecopoliticamente corretos de Jack. Foi andar pelos corredores de um Shopping, desinteressado das vitrines e do vai e vem dos ávidos compradores em busca de oferta.

            A caminhada foi várias vezes invadida pelos pitacos de Jack In. Ela não deixou de indicar as condições meteorológicas, as oportunidades de oferta dessa e daquela loja. Pela primeira vez, Plínio teve a impressão de que aquele serviço não era um presente, mas um transtorno. Jack In, sempre que podia, dava um jeito de inserir um foguetinho com propaganda na mente de Plínio. Nunca as investidas tinham sido tão constantes, e o passeio no Shopping talvez explicasse essa intensificação. Propaganda da Casa Azul exatamente na hora em que Plínio passava em frente à loja?  Não era coincidência.

            - Jack, você pode interromper essa enxurrada de propaganda?

            - Não é possível descontinuar esse serviço. É uma contrapartida prevista no contrato assinado no dia...

            - Tá. Já entendi. To fu...

            - Evite o uso de palavras ofensivas. Esse tipo de linguagem pode acarretar disfunções sócias importantes.

            - Put...Desculpa. Fechando a boca.

            Depois que o DNA de Plínio foi envolvido na história, a brincadeira não era mais tão divertida para ele.  Começou a pensar que, talvez, devesse voltar à vida sem Jack.

            - Jack, qual seria o procedimento para o cancelamento desse serviço de implante.

            - O contrato não pode ser encerrado antes de três meses, sob pena de multa prevista em contrato assinado no dia...

            - Já entendi, Jack. Mas eu não assinei o contrato. Foi a Marissol.

            - Essa situação está prevista no próprio contrato. O senhor teria 48 horas para recusar o serviço, o que não foi feito em tempo hábil.

            - Isso me parece ilegal...

            - Gostaria de contatar nosso departamento jurídico? Gostaria de contatar um advogado? Sugiro o Dr...

            - Não. Por enquanto, deixa assim.

            - Perfeitamente

            Esfriar a cabeça. Era esse o objetivo do passeio. Melhor com um sorvete. Entrou na pequena fila. À frente, uma jovem mulher, cabelinho curto. De costas: aprovada.  Pediu casquinha com creme de baunilha. Pagou e, enquanto esperava, falou consigo mesma:

            - Eu sei que faz mal. Mas eu quero.

            Plínio achou graça e deixou escapar um risinho. Ela virou-se, sobrancelhas levantadas atrás dos óculos de armação preta.

            - Desculpe-me. É que eu também ando falando muito sozinho.

            A menina sorriu um pouco mais que a Monalisa. Plínio se animou e deu o comando mental:

            - Jack In, tudo sobre a moda de óculos e a relação deles com cabelos curtos. Agora!

…………………

 

Plínio acabara de dar a ordem mental para Jack In:

            - Jack In, tudo sobre a moda de óculos e a relação deles com cabelos curtos. Agora!       

            Ela era bonita de um jeito certo: rosto nem muito redondo nem muito esticado, olhos grandes mas não a ponto de incomodar quem os mirasse, nariz presente o tanto necessário. Os óculos davam o ar de segurança que faltava ao conjunto. Não era alta, mas sabia se fazer notar em saias abaixo do joelho. De volta aos óculos: eram o centro daquilo tudo. Parecia que, sem eles, era possível que a moça ficasse perdida no vai e vem de anônimos do shopping.

            - Gostei dos seus óculos. Você sabia que óculos assim, de aro preto e grosso, dizem muito sobre a personalidade de quem os usa?

            - É mesmo? Dizem por exemplo que a pessoa em questão “gosta de ser vista com uma certa autoridade e que, apesar de ser um desenho masculino de óculos, acabam dando um toque de autenticidade e jovialidade a um rosto feminino”?

            Plínio gostou da espertinha. Na certa, era paciente do Dr. Google. Esqueceu o sorvete e resolveu entrar na brincadeira, o que, de qualquer forma, era um jeito de esfriar a cabeça também.

            - Diria mais...

            - Cuidado, meu caro: o que um homem diz sobre uma mulher permite que se conclua muito sobre ele também.

            - Isso não chega a ser um problema. O que vou dizer é muito próximo de uma crença pessoal minha. Ainda sobre os óculos: esse acessório deixou de ser visto como coisa de certinhos, comportados e viciados em...        

            - “... tecnologia pra cair nas graças dos descolados e antenados na moda”? Era isso que você ia dizer?

            Plínio travou por uns três segundos.

            - Era mais ou menos isso. Também ia elogiar seu cabelo. Esse estilo curto fica bem em pessoas que querem se declarar...

            - “...independentes, ativas e decididas, ao melhor estilo mulher emancipada”? Esse seria seu elogio- mais-que-original?

            Agora Plínio não sabia como evitar a gagueira

            - É, sim, ah. Você lê pensamentos?

            - Não creio. Talvez eu apenas saiba a diferença entre o original e a cópia. Se bem que originalidade é apenas uma ilusão...

            - “...de pessoas que se acham mais perfeitas que Deus”?

            A vez de engolir a fala e arregalar ainda mais os olhos foi da moça.

            - Hum. Parece que você também tem poderes paranormais...

            Aquela capacidade de adivinhar pensamentos tão específicos e de completar citações não poderia ser só esperteza da moça. A expressão de espanto de Plínio encontrava um espelho no rosto de sua interlocutora. Ela também parecia intrigada com as frases de efeito de seu admirador, tudo tão adequado e reproduzido fielmente. Ele também “lia” seus pensamentos.  Tinha coisa ali! A pergunta que vai abaixo foi feita pelos dois, Plínio e a moçoila a caminhar pelo corredor da ala vermelha do shopping. Entoada ao mesmo tempo, com o mesmo acento de “eureka”:

            - Qual é o seu nome?

            O jogral involuntário fez com que ambos parassem no meio do corredor e fundiu seus olhares. O silêncio foi quebrado por gargalhadas nervosas também em sincronia.

            - Meu nome é Plínio. E o seu?

            - Wanda. Muito prazer.

            Plínio nem disse que o prazer era dele. Estava ocupado disparando um comando mental para Jack In: “Qual o nome do segundo usuário do serviço de implante nesta cidade?”. A moça também parecia distante, como quem conversa com algum deus.

 

...................................

 

- Wanda. Muito prazer.

            Foi estranha a coincidência da semana passada. Tanto Plínio quanto a moça, que agora sabemos se chamar Wanda, fizeram a pergunta “qual é o seu nome?”, e ao mesmo tempo.  Para os bons entendedores, isso é mais que um pingo com cara de letra; é quase um discurso completo. Se a atitude de Plínio, após ouvir o nome da morena,  foi consultar Jack in a respeito do nome do segundo usuário do serviço de implante, não deve ter sido difícil supor qual seria – e foi! – o passo seguinte de Wanda. Criteriosamente, o mesmo. 

            - Wanda Mauro Leni?

            - Plínio de Paula Santos?

            Quem diria? Nem Jack In seria capaz de prever isto: Plínio estava cara a cara com Wanda! Ambos implantados. Wanda também tinha sua Jack In, que, certamente, tinha outro nome.  Não preciso perder seu tempo descrevendo a expressão de espanto disfarçada num sorriso meio amarelo dos dois. Também há um toque de constrangimento na jogada. Até aqui a talvez paquera tinha sido construída sobre o alicerce da informação emprestada. A revelação do acesso dos dois a uma fonte infinita de material a plagiar os deixou nus. Dali para frente, ou eles batiam em retirada ou engoliam o orgulho e abriam logo o jogo.

            - Faz tempo que você está com o implante?

            - Alguns dias. E você?

            - Também. Foi um erro da minha empregada...

            - Eu ainda não entendi como foi que isso tudo aconteceu. Comecei a ouvir essa voz e não parei mais.

Demorei para achar que era bom. Quase dei um tiro na cabeça.

            - Seria uma pena.

            - O quê?

            - O tiro. Na cabeça.

            Wanda chegou a pensar que a frase tinha sido colada de algum site de cantadas baratas, mas percebeu que Plínio era bobo mesmo, sem precisar de ajuda. Achou fofo. Sentaram-se num banco da praça de alimentação.

            - Você usou seu implante para alguma coisa especial?

            - Ah. Tenho vergonha de dizer...

            - Então eu digo primeiro: eu usei para fechar um negócio impressionando um cliente com informações sobre o hobby preferido dele. Fiz a maior venda da minha vida.

            - Eu fui mais longe. Ai, meu Deus! Fiz um prova de concurso e colei todas as repostas da Ioda.

            - Ioda? É o nome da sua voz?

            - É. E a sua? Tem nome?

            - Tem: Jack In.

            - Jack in the Box?

            - Por aí!

            A conversa seguiu nesse passinho manhoso. Os dois até se esqueceram de Jack in e de Ioda, que insistiam em avisar que os batimentos cardíacos do moço e da moça estavam acima do esperado para um ser humano em repouso.  Apesar dessas interferências das vozes, tudo indicava que algo além da curiosidade começava  a mover a conversa dos implantados. Prestando um pouco mais de atenção, seria possível dizer que perguntas como “o que você faz, onde você mora, tem namorado ou namorada?” já não estavam diretamente ligadas ao funcionamento do dispositivo de consciência sei-lá-das-quantas.  Os pombinhos só foram interrompidos pelo aviso de Jack In, imitado por Ioda.  Fecharam o bico e ouviram com cuidado.

            - Atualização sobre a oferta do serviço de implante em sua cidade: diante do sucesso dos testes iniciais, existem mais habilitações ativas. Neste momento, três mil, seiscentas e vin-te e duas pes-soas cir-culam por esta cidade com o dispositivo ativado.

            Plínio e Wanda entreolharam-se e, automaticamente, observaram as centenas de pessoas engolindo sanduíches, pedaços de pizza e sashimis. Quem ali teria uma voz ecoando na mente com a possibilidade de acessar todos os dados disponíveis no sistema? Como saber? Além disso, diante do fato de que agora todos poderiam ter uma Jack In ou uma Ioda, que graça havia em usar esse serviço?  De volta ao estado de graça da mediocridade, Plínio encarou Wanda com seriedade e propôs:

            - Que tal um cineminha?       

            - Agora?

            - É.

            - Ah...vamos.             

            Plínio levantou-se, segurou a mão de Wanda, que também se ergueu. Caminharam em direção à melhor sala Multiplex enquanto Jack In e Ioda informavam a programação de cinema para aquela tarde. 

 

(FIM)

Jefferson Cassiano é professor e publicitário. Ocupa a cadeira 31 da Academia Ribeirãopretana de Letras

 

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