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Contos-->A CASA 77 DA TIJUCA -- 30/11/2012 - 16:34 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A casa 77 da rua Ibituruna na Tijuca, viu crescer duas gerações  de Cláudio. Ali Corina quis dar o mesmo aspecto do casario da fazenda, mandando cavar um oratório na parede, e quando entrava no quarto, podia ver a imagem do Crucificado entalhada em bronze sobre um nicho repleto de imagens. No alto da parede, com a face voltada para os pés da cama, também estava o retrato do finado quando jovem. Já na moldura menor, sob o olhar de ontem do pai, a pequena Dulcineia descansava no colo da mãe.  Era o retrato  de família gravado nas tranças congeladas.

Nem tudo que Corina aprendeu, veio das cercanias da fazenda Campo Grande. Ela tinha impressões de viagem do Rio de Janeiro ao Piauí, fuxicando com a neta o Centro-oeste, parte do Sudeste e todo o Norte de Minas para reconstruir a colcha de retalho que era a história  de Cláudio: uma realidade ou uma lenda? A Carimbamba, por exemplo, a mulher de Cláudio achava que era invenção do marido. Ele contava que ninguém do sertão ou do mar, jamais viu a carimbamba. Só à noite se ouvia seu lamento triste, semelhante ao clangor da acauã canglorando, canglorando, agourando morte na aldeia, sem parar. O povo dizia que na lagoa morava um pássaro sanhoso, sanhudo, que trazia presságio agourento em seu canto fino. Quem o visse cantar, ficava menino se fosse velho e ficava velho se fosse menino. E assim, quando Yula Maria nasceu, o pai dela prometeu casá-la com a carimbamba, para quebrar o encanto da lagoa, sonho que muitos sonhavam em usufruir do banho nas águas do pequeno lago. Dizem que a carimbamba que há três mil anos cantava, tinha cabeça de gente e asa que não voa. Era igual em malvadeza ao Cabeça de Cuia queSete Marias[1]precisava tragar. Sete virgens comer pro encanto acabar...  Era quase escuro quando Yula ouviu cantar: “amanhã eu vou... amanhã eu vou”. Curiosa, adentrou a mata e ao pisar o junco na beira do brejo, a vegetação se abriu e a lagoa encantada apareceu. A mocinha viu a carimbamba e nunca mais voltou para casa. Até hoje, corre o boato que uma velha encurvada grasna em noites de lua cheia na lagoa, que não é mais encantada.

— A carimbamba existe mesmo vovó?

— Quando se acredita em uma coisa ela passa a existir de verdade. Mas a carimbamba só existe em teus medos. E agora que se casou com a mocinha camponesa, o encanto foi quebrado.

— E a menina se transformou numa velhinha?

— Bem a velhinha faz parte da técnica utilizada pelo autor para que a história nunca termine, continue viva e passe de geração para geração. Nas lendas e histórias infantis, as personagens não crescem, não envelhecem e não morrem. Estão sempre vivas e quando alguém agita as páginas do livro em que elas moram, uma porta se abre e as personagens saem. Tomam a forma de gente e convivem com os humanos como se humanos fossem. E são humanos, porque a ficção desaparece e se revela palpável. Cada personagem abandona sua maca e sai andando. Outras existem de verdade, são alter-ego do autor, autobiografia, ou, biografia de outrem, as três coisas juntas ou nenhuma delas. Em verdade, uma realidade que virou   ficção ou uma ficção que virou realidade.

Intrigada, sem saber onde a avó tinha aprendido aquelas coisas, Talita deduziu que Corina lera a Coleção de Obras Célebres, antes de vendê-la. E só muito depois, entendeu como os personagens saem das páginas do livro. Saem pela vontade das pessoas como as esculturas de protagonistas do cristianismo que a avó retirava do oratório e levava para o presépio. Pois era assim mesmo: O oratório ficava vazio. As imagens iam adorar o Menino Santo em uma gruta improvisada no canto da sala.

Era Natal.

 Sobreveio a tarde e depois a noite de muitos dias. Talita cresceu e descobriu que tinha um sonho, uma vocação: contar estórias sem monstros, que ajudassem na formação de crianças saudáveis, destemidas e livres de pesadelos.

O homem na cruz que ela via no quarto da avó era o grande mistério de suas lembranças...

— Foi o vento, vovó! Foi o vento.

— Eu sei, foi o vento.

— Eu só ia retirar o vovô da cruz...

— Não diga isso, menina! Aquele pregado na cruz não é teu avô. O homem  na cruz é o Deus dos cristãos.

— Agora, venha. Não quero que fique sozinha neste quarto.

Pouco depois a menina  voltou e pôs-se a olharuma réstia de sol que incidia sobre a imagem em bronze de Jesus Crucificado.

— Você é Deus?

—Sou tocador de flauta.

— Quem te machucou?

— Foram as pessoas que amo.

— Você tem irmãos?

— Sou filho único.

— Eu também sou filha única. Não é bom não ter com quem brincar.

A menina olhava para o Tocador de Flauta  naquela cruz, desprezado. O corpo coberto de chagas, mas o coração não reclamava.

— Vovô também mora nesta parede e não conversa comigo.

— Quem está na parede não é teu avô. É só a imagem dele. Cláudio mora no céu.

— A vovó está me chamando.

 — Vá, pequena Talita.

— Você sabe meu nome?

—Antes de te formar no seio materno, eu ti conheci.Agora vá filha de Jeremias.

Ela saiu com um biquinho de tristeza mesclado com um sorriso docemente infantil. Devagar, em silêncio, sentou-se no sofá, relaxou como se estivesse ali há muito tempo e fez uma varredura procurando por  algum tesouro escondido. Alguma coisa que não conhecia ainda. Não havia nada novo sob aquele teto sem laje. Nada novo sobre o velho piso de mosaico.  E deixou o projeto de literatura infantil para outra oportunidade, começou a escrever para adultos, de modo que crianças também pudessem ler, porque só criança pode ver um carneirinho desenhado dentro de uma caixa de papel fechada. Ela não esqueceu. Não esqueceu  o dia em que ouviu os chinelos do pai no corredor de acesso aos dormitórios. A “Aquarela”  acompanhava como uma sombra os passos de Jeremias.Era o suor da alma de Toquinho sendo derramado no coração da menina.

 

  Numa folha qualquer. Eu desenho um sol amarelo. E com cinco ou seis retas. É fácil fazer um castelo...

 

— Este é o túnel do tempo, disse o pai dando-lhe uma folha de papel em branco. É só  imaginar e podes antecipar tua festa de debutantes, casar,  ter filhos,  netos e voltar a ser menina outra vez. Se quiseres, podes escrever mil verdades por trás de uma mentira e como Serna terás um livro com mais de cem asas para voar.

Ela relutou.

Não arriscaria ainda apresentar os originais de seu livro a alguma editora. Tinha muitos escritos guardados, mas não lhe pareciam coisas de botar em livro. Eram sonhos, apenas sonhos nos quais se via vestida de longo, maquiada e penteada, pisando o tapete vermelho numa trovoada de  fleches. Fleches e sorrisos, enquanto valsava com o namorado na festa  de seus quinze anos. Ela era a mais bonita, a mais alta e mais esguia escultura  a desfilar entre outras debutantes. Em seguida, imaginava-se sozinha numa ilha, e de repente, encontrava um náufrago. Deve ser triste não ter nada que fazer em uma ilha — pensava.   Provavelmente, muitas vezes durante a sobrevivência em uma ilha deserta, o náufrago desejou ter morrido afogado a viver solitário... Mas a sensação de pisar em terra firme é reconfortante e dá ao flagelado um sopro de vida para a alma. Degredado na ilha do medo, o filho de Eva, gemendo e chorando, sente que a morte cada vez mais, arranca-lhe as forças vitais e o náufrago grita e seu grito não ultrapassa os vitrais azulados do céu. Sobreviver. Lutar para sobreviver. Afora isto, nada mais  se tem a fazer numa ilha, senão olhar o horizonte. Ter miragens como um beduíno no deserto. Vê nas espumas flutuantes a borda falsa ou o castelo de um navio fantasma, o monstro do lago Ness, ou um xaveco pirata. “E se não houver água potável?” Indaga a alma em seu desterro e  ela mesma responde: “Há sempre água potável em uma ilha.” E apagou a ideia de encontrar um náufrago. Preferia descobrir uma ilha em que ninguém jamais houvesse habitado, nem mesmo os fenícios. Assim, com caneta e papel, cruzaria os céus nas asas de uma aeronave. Novamente seu pensamento a interrompia. Tinha medo de avião. Viajaria, pois, de navio, deixando o cabelo esvoaçar ao vento da proa e os olhos se encantarem com o sol que se põe atrás das asas de uma gaivota. “E, se o navio naufragar?...” “Bem, se o navio naufragar, poderá então  descobrir uma ilha, uma ilha deserta e dar a ela o nome  Brasileia de Salomão. Gravar o próprio nome nas paredes de uma gruta e escrever sua história em livro de pedra”.

Teve medo. Sentiu-se prisioneira da Caverna de Platão.  Queria dizer para o mundo que a vida é uma sombra tremulante, uma figura tremifusa da realidade projetada na parede. Discordou da sombra. A vida acima de tudo é uma sinfonia, uma orquestra.

“ Uma orquestra”, disse em voz alta, sem perceber...

— Viajando na imaginação? Indagou Robert.

 — Estou pensando como escrever sobre uma ilha deserta.

 

 

 

 

 

 

 

Lembranças daquela menina, quando ainda criança pulando amarelinha que  lhe desfazia a tranças

 

Era primeiro de abril. Foi-lhe dado vestes brancas para aguardar os colegas de escola, que viriam festejar os quinze anos dela.  Todos chegaram cedo e cedo se foram. Robert não dançou a valsa. Contentou-se em fitar o rosto moreno, parcialmente coberto por negros cabelos. Depois descia fazendo uma varredura em câmera lenta, traço por traço, ponto por ponto, curva por curva, da cabeça  aos tornozelos, dando close nos seios rosados como caroço de pitomba a furar as finas vestes desguarnecidas da aniversariante. Nilmário dançava solto e só tinha olhos para Morgana.  Gonçalo era uma cópia apagada de si mesmo e os outros meninos, eram apenas os outros meninos que levaram presentes pouco interessantes. Com as pontas dos dedos Talita afastou uma mexa de cabelos que cobria o olho esquerdo. Alguém assobiou. Ela sorriu disfarçadamente.  Soprou as velas. Todos riram. Os convidados trocaram a posição e o 15 tornou-se  51. Ela riu porque, quando realmente tivesse 51anos, poderia fazer uma festa de 15, apenas trocando as velas de lugar.

Tudo foi muito simples, apenas uma festa oferecida em casa aos amigos e novamente ela estava só. Sozinha, navegando velozmente no silêncio supersônico de sua imaginação, enquanto dizia para si mesma: “Hádentro do homem  uma  gaivota buscando romper os limites de sua espécie ou uma águia que se renova, afiando as garras, arrancando as penas e fortalecendo as asas para alçar novos  voos sem limites nem horizontes. Sem medo de inovar, muitos escritores construíram grandes obras porque não temiam dar asas a seus sonhos. Toma, pois, caneta e papel, menina,  e descreve o voo de uma águia ou despertar de uma gaivota... As biografias não mentem, muita gente famosa publicou antes dos quinze”.

   Realmente, era bobice julgar que estava nova para escrever um livro. Tinha o exemplo de Coralina que  aos 14 anos publicou “Tragédia na Roça”. Ganhou o carinho dos leitores e alguns vinténs de cobre fazendo doces. A filha de seu Jeremias, não deveria temer. Construíra conhecimento, sob a regência do Padre Davi, tornando-se uma sombra dele, de modo que, se o padre bocejasse, ela arregalava os ouvidos para captar o menor sinal de sabedoria que saísse de sua boca, mesmo que fosse um simples “desculpem-me.”   Ela sabia que era preciso decifrar muitos mapas para encontrar o Tesouro de Bresa, por isso, quando penetrava nas páginas dos livros, viajava na imaginação e queria matar os vermes que roeram os livros do Velho Testamento  e nada sabiam sobre eles, nada se lembravam. Ou era de Betinho o livro?... Ou de Casmurro? Ela  leu, releu e remoeu cem livros, e era capaz de regurgitar frase por frase, ainda que lida há muitos anos.  E recordava-se com tristeza a história que ouvira contar de Androceu, o cambista que mais tarde se tornara seu tio postiço, casando-se com Chanana, a menina órfã que Corina trouxera para o Rio de Janeiro.

 



[1]Cabeça de Cuia.Folclore do Piauí. Canção atribuída a Bentinho.

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