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Contos-->A balança de São Miguel -- 04/12/2012 - 21:03 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 

 Ora Chanana achava  que o amor é coisa feia que se faz às escondidas, ora que amor é vida e desse amor se vive eternamente, pregado numa cruz.

Durante sete semanas  vestiu luto na cor azul. Tudo era azul... 

— Pelo visto, a viuvinha  não ficou desamparada, não é mesmo?

— Vá pro inferno, Anacleto!

Se o Anacleto soubesse, teria dito que viúva só guarda luto do marido enquanto durar o dinheiro que ele deixou para ela. Malandro solteiro, ele sabia que  Chanana tinha boa pensão do falecido, o faturamento do colégio Intensivo, e ajuda da igreja que o padre fazia questão de levar pessoalmente à casa dela. Na medida do possível, o cunhado também ajudava. “Se precisar de mim, cunhadinha é só falar.”  E em cumprimento da promessa ele mandava  trazer de Minas,  dúzias e dúzias de pequi para a cunhada postiça.  Católico não praticante, pouco faltava a Jeremias para rezar a missa. Sabia a Bíblia quase de cor e articulava bem as palavras. Bom pai. Mas bom esposo talvez não o  fosse, pelo menos era o que a mulher dizia. Às vezes seu Jeremias  rezava mil ave-marias em um só dia. Às vezes, em mil dias não rezava uma só ave-maria. Era o outro eu de si mesmo, outra personalidade da mesma pessoa. Criou personagens que mostram diferentes culturas dos mais diversos  lugares por onde passavam, mas,  ele mesmo, escondia o próprio rosto. Seus personagens deixam pingar gotas de lágrimas no papel e viajam em nuvens brancas, negras e azuladas carregadas de paixão. Mesmo triste, Jeremias Palmeiras arrancava dos outros um sorriso com seu jeito maroto de fazer humor:

 

Tristeza, pra quê tristeza? Esse mar não mora em mim. Lápide, lapidada assim. Não quero, com certeza, esse mármore em mim.

 

—  Um dia, todos morreremos. Disse sua mulher.

— Minha doce Dulcineia. A morte não é o fim...

Dulcineia não poderia permitir que  Chanana, a irmã de criação, fosse atirada do monte  Capitolino e confessou:

— Jê. Eu gostaria muito de ter um menino ou uma menina.

— Dulcinha, dulcíssima Dulcineia. Façao que mais te aprouver.

— Você sabe como é a língua do povo... Simulo uma gravidez e Chanana esconde a dela.

A família cresceu. Jeremias refez os cálculos, ajustou o orçamento familiar e matriculou Talita e Victor Augusto no colégio dos padres.  Os alunos que se destacavam no colégio, logo padre Davi imaginava para eles alguma função na igreja. Robert daria um bom presbítero, tem boa oratória e, por certo, impressionará os fiéis com sua homilia. Entusiasta, o padre chegava a colocar um manto de freirana cabeça de Talita Cumi e com tristeza, vestes de Madalena em Tília Abraham.

Naquele dia, a aula pareceu endereçada a Tília. Davi não teria abordado o tema se ela não houvesse perguntado, publicamente, aquilo que em particular já lhe dissera sobre música funk: “A Igreja  sabe muito bem o efeito da música sobre as pessoas: a música prepara o ambiente para a ação do espírito de Deus, se provém dele ou, para a ação do mal, se vem do inimigo. Existe uma canção nova, uma música nova,  que faz  novas todas as criaturas. É Deus fazendo novas todas as coisas através da música. Existe também uma “canção velha”, a música do homem velho, da velha criatura. A música velha, mundana, alienante e pornográfica deve ser banida entre os cristãos, para que não guardem material explosivo em seu interior. Assim como se escolhe o alimento do corpo, deve-se também escolher o alimento espiritual. A boa música faz bem a alma, mas se não for boa, pode fazer mal. Tudo vai depender dos frutos que ela produz na mente e no espírito de quem ouve. A música só é boa, se der bons frutos.Enfim, não  queira, pois, ir para Nínive quando eu te mandar para Tárcis!”   E olhou por cima dos óculos para um canto da sala, na direção de Tília.

Robert questionou:

— Agora há pouco o professor dizia: “Não queiras ir para Nínive, quando eu te mandar para Tárcis.” Não seria o contrário: não queiras ir para Tarcis, quando eu te mandar para Nínive?

— Ora! — explica o padre: Alexandria tinha uma biblioteca com 700.000 volumes em rolos de papiro; Nínive, talvez a segunda maior da antiguidade, com 30 tábuas contendo ensinamentos de Astrologia. Quem sabe, Jonas além de profeta era também vendedor de livros, e preferiu vender suas idéias em Tárcis que não tinha biblioteca!? Agora imagine. Não queiras ir para Nínive, quando eu te mandar para Tárcis e não queiras ir para Tárcis, quando eu te mandar para Nínive, tem o mesmo princípio: a obediência.

Davi se sentia pastor ferido, incapaz de conduzir o rebanho da casa de Jacó. Servia a Deus na esperança de que a Madre Igreja não tardasse permitir que os sacerdotes se casassem. “Por que não agora? Quanto tempo esperar ainda?” Estaria padre Davi vivendo o processo agostiniano de conversão? Um processo inverso, porque primeiro, Agostinho viveu a concupiscência da carne, e depois se converteu. Ele, Davi, estava  profundamente perturbado com a pergunta que Morgana fizera há poucos dias no colégio: “É verdade que José de Alencar é filho de um padre?” Teve vontade de dizer que o romancista brasileiro era filho do ex padre José Martiniano de Alencar. Mas sabia que padre, uma vez padre, mesmo perdendo as atribuições do ofício, nunca deixa de ser padre. Levantou, vestiu a batina e pouco depois já estava na Basílica celebrando a missa das sete. Consagrou o pão e o vinho. Distribuiu as partículas consagradas, deu a bênção final aos fiéis e ficou em adoração ao Santíssimo. O Auto da Alma se lhe passou pela mente:“Nesta triste carreira   desta vida, para os muitos perigos,  a  ALMA houvesse de alguma forma, encontrado guarida. Pousada com mantimentos,   mesa posta em clara luz e fartura,   sempre esperando  com dobrados mantimentos a criatura,   dos tormentos    que o Filho de Deus resgatou na Cruz,    comprou, penando... Sua morte foi avença,     dando, por dar-nos paraíso,   a sua vida.  A Alma que lhe é encomendada, mesmo enfraquecida,  vai tomando raio.  E em   se achegando nesta pousada  se abastece, recobra as forças, sai do desmaio...” Como se saísse lentamente de um estado de letargia, Davi ainda não respirava bem, mas podia ouvir o rufar de asas e o sussurro do  Anjo de LUZ  e quando o padre  percebeu estava voando nas alturas, em direção às SOMBRAS e à ESCURIDÃO... A luz sumia na distância, cada vez mais longe. Até que, na última hora, abraçou  a CRUZ,   e deu um grande e decisivo mergulho para a eternidade. Venceu o temor e o asco. Beijou a MORTE e viu o anjo das trevas desaparecer na escuridão. Mergulhou na direção da LUZ,  onde a Vida o resgatou...  Sem temor nem medo, escarneceu do anjo negro e voou para a luz.

Como em transe, o padre viu as cenas de seu  juízo particular: São Miguel tentando resgatar sua alma e o Diabo querendo arrastá-la para as trevas. Persignou-se. Selou com o sinal dos cristãos a testa, a boca e o peito e em seguida, telefonou para Chanana suplicando por uma refeição.

— O padre não tem quem lhe faça o almoço.

— Não tenho nada especial no cardápio de hoje, se não se incomodar com o trivial... vamos comer arroz, feijão, alface, bife e ovo frito.

— Ótimo! Não aguento mais frango caipira.

Chegou cedo trazendo na mão esquerda uma valise e na direita, uma sacola.

— Que é isso? Veio de mudança?

Teve vontade de dizer “SIM”. Mas se calou.

— Fique à vontade, padre! Ainda não terminei o almoço.

— Sim, sim! Mas gostaria de te entregar estes paramentos! Se puderes mandar lavar, quero dar a eles uma aposentadoria digna.

— Aposentar por quê? Estão novos.

— Não é bem por quê é para quê. O sacerdócio é uma página virada no livro de minha vida.

­Durante a refeição a anfitriã olhava os movimentos de Davi cortando a carne com a mão esquerda.

— Canhoto, o senhor é canhoto?

— Quem criou as etiquetas de boas maneiras, esqueceu dos canhotos. Como posso cortar com a faca na mão direita? As pessoas acham-se no direito de determinar um padrão único para destros e canhotos e ainda pedem explicações aos que não se afeiçoam aos moldes que eles criaram.  Percebeu que tinha dito uma asneira. Ele devia explicações ao bispo diocesano sobre os motivos da decisão de deixar a batina. E quando o fez, o diocesano já sabia pela boca do povo.

O bispo sugeriu-lhe que tirasse férias, pensasse bem e decidisse da melhor forma, de modo a não causar escândalo na comunidade, mormente, por causa da intenção do pároco de se unir a uma paroquiana. Mas o padre estava decidido e assinou os papéis. Meses depois, correu a notícia que a Santa Sé negara a padre Davi o pedido de dispensa, no entanto, ninguém falava em excomunhão. A própria igreja já não se valia deste termo, mesmo porque há uma comunhão parcial do padre que abandonou o sacerdócio. Sem a excomunhão, pode ser cristão como um leigo, um ordenado sem direito de exercer a ordem.

Enquanto durou sua gestão como Reitor do Marista, as árvores do pátio recebiam decoração luminosa, as portas e janelas ficavam adornadas com o tom vermelho dos adereços natalinos e o auditório se transformava em enorme salão de festa para confraternização dos professores. No último ano letivo, a conversa informal parecia tentar resolver pendências que sofreram solução de continuidade. Davi contou que o pai de Tília viera reclamar da diretoria, por causa de medidas administrativas em relação às vestes usadas por baixo dos uniformes. Estavam proibidas as estampas de monstros e outras que o religioso chamava de símbolo da Nova Era.

— O Senhor humilhou minha filha, diante dos colegas no pátio da escola — disse o pai de Tília.

—Senhor HostílioAbraham, tudo que compõe ou está contido nesta escola, ainda que em caráter temporário, deve constituir-se em ferramenta paraeducar. A atitude de pedir a tradução do letreiro em inglês foi educativa, primeiro porque a camiseta usada pela menina, continha erro de gênero: Bad Boy significa rapaz mau ou rapaz ruim. Girl seria o nome propício para moça. Ademais, cada um escolhe o adjetivo com o qual quer definir-se, mas não posso permitir em minha escola uma Groupie que declaradamente afirma sua condição de andar pelos bastidores atrás de garanhão e faz isso através de inscrições em língua estrangeira, exibindo durante o recreio o letreiro das vestes usadas por baixo do uniforme.

— Padre, eu e minha filha não servimos ao teu Deus, ainda assim, as paredes do colégio que ela estuda estão cheias de estampas e imagens de um deus feito por mãos humanas!  Vou entrar com uma representação contra o Senhor.

— Pois entre logo. Disse o reitor dando as costas.

— Sacripanta! O velho reitorperscruta a imensidão do céu e não vê o recife de coral que fura o casco do navio. Se nós conselheiros, não fizermos oposição a esses abusos, logo o padre estará determinando a cor das calcinhas que as meninas devem usar.GROUPIE backstage pass é quase um movimento jovem. Quem consegue por freio numa juventude desembestada!

Solange Gomes sorriu

— Calma, Arnaldo!  Não convém premiar  delinquentes com as benesses do auxílio detenção, tampouco se deve espicaçá-los com a foice Carandiru.

  As palavras de Arnaldo ressoavam na alma do padre como um pecado público. Viver com uma mulher sem as bênçãos da Madre Igreja, doía-lhe muito. Não podia mais celebrar missas nem casamentos. Não podia participar da Partilha do Pão. Perdera o cargo de Reitor do Seminário e também de professor do colégio Marista, mas ganhara o coração de Chanana. Todas essas coisas colocadas na balança de São Miguel poderiam pesar contra ele. Ou talvez não! Já fora punido na terra! Portanto, Deus não cobraria duas vezes a mesma conta. Não teria o Criador selado aquela união? 

O afastamento de Chanana do colégio Marista foi também uma consequência de seu relacionamento com Davi. Com muito jeito, o novo reitor disse a ela:

— Filha, não fica bem para o Marista ter uma professora em nosso quadro que vive maritalmente com um padre... E como vai o Intensivo?

O questionamento do reitor trazia a sombra de uma proposta amigável de rescisão contratual.

— Padre Davi pediu demissão? Perguntou  Chanana.

— Digamos que houve um acordo.

— Está ficando tarde — disse ela — e assinou a rescisão contratual.

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