Olhando pela janela, a mulher grisalha rememorava; na sua mente , uma vaga música indistinta como um toque de realejo. Eram os tempos frescos no Parque das Fadas, que era como seu Albino, seu velho pai que fabricava os carimbos da cidade chamava a Praça Antiga de Três Corações. Era onde ela, Dona Adélia, agora já avó e viúva, recordava quando ia ela, o paí e Nosso Senhor. Sim, O Pai a levava semanalmente ao fim da tarde, com dois ou três livros em mãos para contar-lhe histórias. A menina Adélia gostava sobretudo do livro negro, a Biblia, que contava a história do homem que reinava em cima de um burrinho e multiplicava pães e peixes.
__ Como Jesus faz isso pai?
__ Minha Filha, tem coisas que só Deus sabe. Aprende isso.
__ Jesus sabe ainda mais que o vovô?
__ Com toda certeza.
Dona Adélia agora olhava pela janela. Mas o que via e ouvia assim que voltava ao silêncio, era o bonito homem de negro com seu bigode antigo. O pai fizera daquela simples Praça um lugar mágico. Durante anos tinha que caminhar um tanto para estar ali. Agora já podia tudo. Aposentada e proprietária de ainda duas casas que lhe trouxera o marido; era ela uma das pessoas mais queridas da cidade mineira. Na sala, o retrato dela com o Pelé, um dos filhos ilustres da cidade. E Dona Adélia era mesmo elegante! Naquela Praça que ela contemplava de sua janela agora, fazia quase meio século que caminhara com Dom Quixote a lutar com moinhos vento. Ali chorara com Gonçalves Dias a saudade de sua terra, onde o Sábia cantava. Um dia seu Pai foi para o hospital e não voltou mais. Adélia tinha já adorno nos cabelos, curvas no corpo e o secundário. Herdara do pai principalmente aqueles livros, aquelas figuras. E foi dali, ensinando a outras crianças, que Adélia foi passando a magia do seu Albino. Logo um outro homem de bigode e Farda deu-lhe uma casa mais ampla e mais uma menina de Tranças. Tempos depois sua mãe partiu para o outro mundo, assim como o marido. Ficou-lhe a filha e os livros...
Dona Adélia volta sempre ao Parque das Fadas. Volta com a neta, mais livros e a seu redor como pombos em busca de milho quase uma dúzia de outras crianças, que silenciam de olhos brilhantes quando ela começa a contar, sem saber ao certo onde o real e o sonho, a vida das figuras de dentro dos livros.
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Marcelino Rodriguez - escritor hispano-brasileiro, autor de "Bom Dia, Espanha!"