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Cronicas-->CADA HOMEM É UMA RAÇA -- 21/02/2007 - 14:00 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


CADA HOMEM É UMA RAÇA
Crónica
João Ferreira
21 de fevereiro de 2007


Quem me acordou para esta verdade foi o escritor moçambicano Mia Couto.
Quando pela primeira vez me enfrentei com esta sentença, pensei comigo: será??? Será que cada homem é uma raça, mesmo???
Sentei e ponderei. Depois de algumas reflexões, concluí: pode ser isso, mas desde que nos entendamos. E daí parti para a aventura de caçar a verdade dessa fórmula, que agora já sei que é de João Passarinheiro, um personagem de Mia Couto.
- Puxa! De minha parte, adoraria que fosse verdade esse negócio de cada homem ser uma raça aparte. Parece evidente que ninguém dispensa de ser e de se achar ele próprio. Cada pessoa tem sua raça, sua personalidade, seu jeito, sua maneira de ver o mundo. Nisto reside a tal raça. Raça, que pode ser traduzida por genica, por capacidade de reagir e por outras qualidades mais. Quem não gosta de lutar por ser ele próprio? Lutar pela própria maneira de ser, de uma forma coerente, dá vantagens. Cada indivíduo pode falar dos cantos da sua casa. E falando dos cantos da sua casa, pode falar também dos artigos de sua botica.
Aliás, a doutrina vem de longe. O romantismo tinha colocado em destaque o indivíduo, a individualidade. Depois vieram os coletivistas e os sociólogos e foram eles que estragaram tudo. Mais concretamente, estragaram o núcleo central da reflexão, o eu entronizado por Fichte e por Schelling, que era a voz proclamante de cada um ter o direito de ser ele, de cada um se sentir como é.
No conto "O embondeiro que sonhava pássaros" Mia Couto ilustra a figura de João Passarinheiro, o negro moçambicano que "todas as manhãs passava nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas", "o homem dos passarinheiros", como dizia a menina que ouvia o pregão dele passando na rua, e que tocava gaita-de-beiços, a muska chissena. João Passarinheiro morava no buraco de um embondeiro. Era o homem simples que encantava as crianças, o homem que se caracterizava pela maneira peculiar de ser.
A narrativa de Mia Couto, ao mesmo tempo que é uma singela mas trabalhada narrativa da alma moçambicana, retoma, na ancestralidade, uma verdade histórica que já passou pelo cristão Santo Agostinho, pelo árabe Avicena, pelo mestre parisiense Pedro Hispano Portugalense e por outros. A partir de Descartes, no século XVII, ganhou foro de verdade parcial em termos de axioma intelectualista esse estatuto da individualidade. A modernidade posterior se encarregou de completar Descartes. Ao "cogito ergo sum" do francês, a humanidade, por conta própria, acrescentou o evidente "Sentio ergo sum" (=eu sinto, logo existo). Venerou, em consequência, o "esse est percipi" (=ser é perceber, ter percepção) de Berkeley. Desde então, o homem ficou mais apaziguado porque agora se sentia como um ser que raciocinava e tinha emoções.
Estes ecos históricos avivavam-se na estória de Mia Couto. Passam vivíssimos, de João Passarinheiro para a consciência do leitor um pouco mais erudito. E que, a velha Europa, antes da África Oriental, havia ressuscitado em seus pergaminhos, essa verdade que traduziu num sentido de verdade filosófica.
No manuscrito de Mia Couto surge, viva, uma diferença fundamental. A verdade secular de que "cada homem é uma raça" tem um novo arauto. Desta vez um arauto popular. Por Mia Couto, a sentença que era incolor e universal toma o caráter vivo de um enxerto num tronco secular, como que a celebrar a chegada de uma verdade metafísica ao foro de um homem simples, homem popular, um moçambicano vendedor de passarinhos.
Foi isso exatamente o que confirmei. Ao trazer da livraria e ler o precioso texto do ilustre escritor moçambicano, um simples livro que era uma coletànea de estórias e narrativas, tornou-se um texto de aula esclarecedora. O simples título "Cada homem é uma raça", além de relíquia literária, catalogada como texto de literatura africana de língua portuguesa, passava a ser especificamente a biografia popular de João Passarinheiro. Uma biografia assinada por estas emocionantes palavras "- A minha raça sou eu, João Passarinheiro. Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia".

João Ferreira
21 de fevereiro de 2007

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