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Contos-->Desgraças, cachaças e velas pretas -- 15/05/2001 - 01:36 (Eduardo Henrique Américo dos Reis) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
“...e a vida o que é?! Diga lá meu irmão! Ela é a batida de um coração, ela é uma doce ilusão. E a vida ela é maravilha ou é sofrimento? Ela é alegria ou lamento? O que é o que é meu irmão?
Gonzaguinha – O que é o que é?

Oito meses já se passaram... parece que foi ontem. É impossível esquecer aquela noite. Foram três socos consecutivos, e no outro dia só restaram as dores espalhadas pelo corpo e o som desgraçado das risadas dos dois homens ecoando na cabeça da velhota.
A casa era simples. Um único cômodo fazia sala e quarto, e o outro, cozinha e lavanderia. O banheiro era lá fora. Toda de madeira e a madeira toda de cupim. O chão era terra batida, mas a velha colocou um tapetão encontrado no lixo para deixar mais bonito. Da janela dava pra ver a cidade inteira (uma vista maravilhosa quando se esquecia do barranco faminto querendo engolir a humilde casa).
Filhos da puta, devem ter nascido de mãe solteira! Bastardos! Bastardos! Ah, se eu ainda tivesse minhas forças de menina nova. Estes filhos da puta iam ver... iam mesmo! Pensam que são os donos do mundo? Filhos da puta. Espero que queimem junto aos mortos assassinos e que sofram até que se segue a última gota de sangue de seus corpos. Bastardos!
A velha resmungava arriada sobre uma cadeira velha de palha enquanto acendia uma vela preta para iluminar o início da noite escura e implorava pela desgraça dos homens que a violentaram no passado.
A menopausa já acontecera há quase uma década, mas dizem que a gravidez é possível devido à aberração genética de algumas mulheres. Uma porcentagem muito pequena. E a velhota contrariou os dados estatísticos e, oito meses atrás, foi embuchada por dois homens que, nem sequer, lembra o rosto.
Com os longos cabelos esbranquiçados correndo pelos ombros e um vestido de chita e desenhos de flores, apoiou os cotovelos sobre a mesa. Teve muito trabalho para destampar a garrafa de cana e encher um copo. A vela ainda brilhava dentro da casinha de madeira, mas a luz era pouca.
Sentada junto à mesa, acompanhada de uma vela preta, uma garrafa de cana e um copo (que não cansava de se esvaziar), a face da velha transmitia expressões de ódio, todos os músculos do rosto estavam contraídos, as unhas sujas e compridas machucavam-lhe a palma da mão esquerda de tanta força que fazia para apertar o nada.
Lembrava das risadas, do movimento repetitivo dos corpos dos homens, das dores no dia seguinte, da urina cheia de sangue. Lembrava de todas as vezes que lembrou do fato e que o nervosismo e os enjôos lhe fizeram vomitar. Mas agora todo aquele medo, aquela impressão assustadora, se transformara unicamente em ódio.
A vela já estava pela metade quando a garrafa de cana chegou à este ponto. Não conseguia parar de pensar na sua vida desgraçada, da violência do pai quando era pequena, do acidente que levou sua mãe embora, a guerra e a viagem sem volta do marido para servir a pátria, o abandono da família, as perguntas constantes dos vizinhos e os dois homens daquela noite, tudo se transformara em ódio.
Embriagada de tristeza, lembranças e pinga barata, a velhota batia o punho cerrado com muita agressividade sobre a mesa. No seu rosto ainda predominavam as mesmas impressões, apesar das gargalhadas altas e agudas que ela emitia.
A preocupação com os poucos dias para a criança nascer já não incomodavam aquela triste alma enrugada, pois tudo o que acontecera em sua vida não possuía valor algum e não seria agora, depois de tantas desgraças, que conseguiria ser feliz a lado de um filho provido de um estupro.
As pernas magras e fracas, recheadas de sangue velho temperado por uma alta dose de álcool etílico não tinham energia suficiente para suportar o peso daquilo que lhe dominara todo o interior do ventre.
Os vizinhos acordaram com a insanidade sonora que a velha proferia aos berros, mas de nada se importavam estavam muito ocupados com o próprio sono para dar queixa sobre uma velhota louca que se aproximara do fim da vida.
Ao se levantar da cadeira (quando a vela e a garrafa já estavam quase finadas de suas utilidades) sentiu fortes contrações no abdome, os joelhos ardiam, o ódio crescia junto com a irritação e os sons daqueles homens e a lembrança do cinismo dos vizinhos ao vê-la passar em frente de suas casas com dificuldades para caminhar e o mesmo chinelo batido calçando os grossos pés.
Os olhos quase fechados, a vista embaçada e a pouca quantidade de luz dificultaram a chegada da velha até a cozinha, mas a raiva era mais forte do que tudo naquele momento. Qualquer força maior, até mesmo emitida por Deus, não impediria de liberar a agressividade contida no conjunto de álcool etílico, ossos, músculos, tristeza e peles idosas.
O braço pesava, mas o movimento feito foi mais do que o necessário para pegar o facão preso num arame sobre a pia. Juntando as mãos no cabo do instrumento, levantou-o a cima da cabeça. A vela ameaça apagar. Ficou parada por alguns segundos. A expressões faciais ainda eram as mesmas, só que agora o as maçãs ossudas tinham sido lavadas de lágrimas.
A ponta da lâmina brilha de felicidade, ansiosa para atravessar a barriga inchada da velha e, talvez, acertar em cheio o pescoço da criança, separando cabeça e corpo.
Os segundos passavam rápido. A velha levantava ainda mais os braços, precisava de um golpe decisivo. Um golpe único que levaria ela e a criança para um lugar onde algumas palavras como amor, piedade, respeito e esperança tivessem um valor concreto. Mas, graças a sua frágil estrutura, a velha não suportou o peso da arma em punhos e despencou batendo as costas no chão e a cabeça na coluna de divisão dos dois ambientes da casa.
As veias saltavam dos olhos, não sentia dor, apesar da fraqueza. Se arrastou até o pé da mesa. E esticando o braço direito conseguiu pegar a garrafa de cana. Voltou a gargalhar. Criança maldita! Você tem que morrer, tem que morrer! Morre desgraçada!
Bebeu o resto do conteúdo alcóolico e, segurando o recipiente pelo gargalo, deu várias e incansáveis pancadas na própria barriga. Morre criança maldita! Morre! Morre desgraçada! Você tem que morrer!
A velha desmaiou ao mesmo tempo que a vela acabou de queimar.
Algum tempo depois a claridade invadiu o casebre, deixando visíveis os cupins nas paredes e o tapetão sujo colocado sobre a terra batida da sala. Os pássaros cantavam nos galhos das árvores do barranco. Lá em baixo, na cidade, os carros transitavam tímidos, ao contrário dos vendedores da feira que já gritavam oferecendo seus produtos.
E a velha, estava ali, sentada no chão batido, posta a chorar sobre uma poça de sangue coagulado e observando um bebê com os delicados ossinhos amassados, um cordão ainda ligado à mãe e sem vida. Deitado na terra, sujo do parto e, apesar do pequenino crânio quebrado, um leve sorriso no rosto. Uma delicada expressão de felicidade.
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