"Lá para as bandas do mangue da Cidade Nova, havia, ao pé de um charco, uma casa coberta de palha da mais feia aparência, cuja frente suja e testada enlameada bem denotavam que dentro o asseio não era muito grande. Compunha-se ela de uma pequena sala e um quarto; toda a mobília eram dous ou três assentos de pau, algumas esteiras em um canto, e uma enorme caixa de pau, que tinha muitos empregos; era mesa de jantar, cama, guarda-roupa e prateleira. Quase sempre estava essa casa fechada, o que a rodeava de um certo mistério. Esta sinistra morada era habitada por uma personagem talhada pelo molde mais detestável; era um caboclo velho, de cara hedionda e imunda, e coberto de farrapos. Entretanto, para a admiração do leitor, fique-se sabendo que este homem tinha por ofício dar fortuna!
Naquele tempo acreditava-se muito nestas cousas, e uma sorte de respeito supersticioso era tributado aos que exerciam semelhante profissão. Já se vê que inesgotável mina não achavam nisso os industriosos!
E não era só a gente do povo que dava crédito ás feitiçarias; conta-se que muitas pessoas da alta sociedade de então iam à s vezes comprar venturas e felicidades pelo cómodo preço da prática de algumas imoralidades e superstições
(...)
Entegou-se portanto em corpo e alma ao caboclo da casa do mangue, o mais afamado de todos os do ofício. Tinha-se já sujeitado a uma infinidade de provas, que começavam sempre por uma contribuição pecuniária, e ainda nada havia conseguido; tinha sofrido fumigações de hervas sufocantes, tragado beberagens de mui enjoativo sabor; sabia de cor milhares de orações misteriosas, que era obrigado a repetir muitas vezes ao dia; ia depositar quase todas as notes em lugares determinados quantias e objetos com o fim de chamar em auxílio, dizia o caboclo, as suas divindades; e apesar de tudo a cigana resistia ao sortilégio".
(Manuel António de Almeida, in "Memórias de um Sargento de Milícias).