"Não vim trepar,só vim pegar umas coisas.",ela disse,fulminante,categória,num tom de voz excessivamente seguro,e as mãos,patéticas e pequenérrimas,trêmulas,segurando o casaco e denunciando toda a sua insegurança e fragilidade moral num paradoxo tão gritante que beirava o inverossímil.Pegar umas coisas?que coisas?não havia mais nada ali além de um jogo de poltronas vermelhas de terceira mão,comprado de farra numa feira de usados no Cruzeiro,imitações tão horríveis quanto os originais de quadros de um pintor russo obscuro onde se viam cristos com o coração sangrando,alguma louça imunda empilhada na cozinha,livros e revistas espalhados por todo o apartamento e não muito mais que isso:restos.Ele estava a um canto,sentado no chão nu,havia dias que passava o tempo todo assim,improvável e lastimoso em seu silêncio depressivo.Ao vê-la entrar não esboçou reação nenhuma,não disse palavra,pegue o que quiser,ela atravessou a imensa sala vazia apressadamente e desapareceu no interior do apartamento em seu ensaio de pânico, criança em iminência de surra,que merda de teatro é esse,ele pensou mudo,e fechou os olhos novamente:pode levar tudo,que se foda. |