Um Adeus (5/02/03)
Acabei de saber ontem, através do jornal “O Público”, que tinha falecido João César Monteiro, muito provavelmente vítima de cancro o que normalmente surge referido na imprensa portuguesa como “doença prolongada”. Confesso que me enchi de tristeza e comoção: acabara de desaparecer aquele que é, talvez, o nosso mais revolucionário cineasta da contemporaneidade e um vulto respeitável do cinema europeu (cuja obra foi, por fim, reconhecida em 1995 pelo festival de Veneza).
Quase sempre excluído dos monótonos circuitos do cinema de modas, ou dos “artistas” reconhecidos pela “fibra” dos regulares subsídios estatais, João César Monteiro (que nunca cedeu à onda ditatorial do “politicamente correcto”) pautou a sua atitude pelo descomprometimento, pela independência e pela maldição. Autor de um universo ficcional sem par (diria que, mesmo a nível da literatura contemporânea portuguesa, só Luiz Pacheco se lhe assemelha em irreverência), ficará para sempre célebre pela sua personagem João de Deus, cujas peripécias e desventuras invadem uma excelente trilogia cinematográfica que inclui “As Recordações da Casa Amarela”, “A Comédia de Deus” e “As Bodas de Deus”. João César Monteiro soube, com o seu cinema ( talvez a modéstia - em que, diga-se, nunca foi pródigo - levasse a dizer que não lhe pertencia, mas, sim, ao mundo), marcar pela imagem duas áreas importantes daquilo a que se convencionou chamar “arte” e que tantos debates suscita. Por um lado criou uma galeria de fguras que pinta uma imagem satírico-realista do quotidiano português; por outro, transformou cada obra num espaço inacabado de diálogo interpretativo sobre o qual soube, inclusivamente, fazer descer o fantasma da paródia aquando da estreia de “Branca de Neve” (curiosamente o seu filme mais subsidiado), filme esse que deixa os espectadores numa sala escura apenas confrontados com os diálogos e com um écran negro.
Muito criticado também pelas constantes aparições de jovens moças, com as quais João de Deus mantinha relações de cariz angelical, platónico mas também erótico, Monteiro criou, com essa monumental figura (que ele próprio interpreta), o epíteto de um “Zé-Povinho” pós-moderno: anti-herói por excelência, João de Deus deambula pelas ruas dos bairros típicos de Lisboa, meio rurais meio urbanos, à sombre da sorte de quem anda literalmente “ao deus dará”. Meio fuínha, meio génio, discreto e atrevido, abusador e tímido, João de Deus encarna o paradoxo permanente do nosso ser português; no seu caso, há sempre mais um cigarro a fumar antes da derrocada final (assim como espero que o próprio João César tenha fumado mais um dos seus – interminéaveis e ondulantes – cigarros antes de expirar).
Em termos artísticos, a sua obra não foi nunca pacífica: nela, a arte torna-se fluida, permanentemente aberta a espaços de percepcão, permanentemente questionável, permanentemente polémica. Não existem, ali, espaços fechados, quadros rígidos ou visões unívocas. Tudo é incómodo, tudo funciona como um permanente jogo de espelhos (profundamente enraizados no nosso modo cultural de ser) que chama a atenção e apela à interpelação.
João César Monteiro deixa um espaço muito vazio no cinema português e nas nossas artes em geral. Talvez a sua morte sirva para que a obra possa, finalmente, ter a atenção que merece. Neste momento final, recordo a face ingénua de Maria de Medeiros em “Silvestre”. Nela se condensa toda a maravilha de um cinema verrinoso e provocatório, mas também capaz de nos fazer sonhar com uma alternativa aos muitos quotidianos cinzentos.
Francisco Nazareth
Sydney, Fevereiro de 2003
A MINHA CASA SEMPRE AMARELA
Deste-me as imagens
Com que sonhei
Os pássaros,
Os sons de fora
Que iluminavam a pequena gaiola
Da honerosa,
Por vezes horrorosa, vida.
De dentro das "retretes culturais"
Onde trabalho
Educaste-me para o sorriso
Com que se confronta o opressor
E mostraste-me,
Lá de longe,
Do meio desse país triste,
Como o teu sorriso
Se sabia esconder
Lá na ponta do teu cigarro.
Partiste: não se sabe para onde;
Tu provavelmente dirias
Que "para lugar nenhum
Essa agora!"
E estenderias o cigarro
Outra vez para bem longe,
Como se cada gesto
Do teu último filme,
Esse que ontem acabou,
Fosse só aquele.
Deixas-me saudades
De não ter saudades.
És eterno nas tuas meninas,
Na Joaninha,
Em cada Joaninha
Do nosso pequeno mundo
Que pede, sorrindo,
Para eu a afagar.
Em memória de João César Monteiro, para mim o maior génio do cinema português, falecido prematuramente a 3 de fevereiro de 2003. Um abraço João: vou rever(-te) (n)os teus filmes.
"A escola é a retrete cultural do opressor"
João César Monteiro
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