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Cronicas-->EU, a AIDS e BRENDA ( texto realinhado) -- 03/04/2007 - 22:08 (Heleida Nobrega Metello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
FOI ASSIM, QUE CONHECI BRENDA



imagem:http://www.medicinaintegrativa.net




Após vários anos de vida liberta e clandestina, Brenda decidiu deixar Paris. Retornou para o Brasil, São Paulo. Sua hora de renascer, dizia ela. Investiu suas economias em duas oficinas mecànicas e uma pensão para travestis. Seus irmãos gerenciariam as oficinas, com o intuito de facilitar-lhes o sustento; a pensão, a "Casa das Bruxas", seu xodó, sua responsabilidade.

Iniciou a nova rotina com uma estranha sensação, um arrepio que costumava anteceder ao prenúncio de tempos difíceis. Não passou muito tempo para que a ameaça se transformasse numa cruel realidade. Inúmeras pessoas poderiam estar contaminadas pelo mais novo e temível vírus.

Assim, conhecidos e amigos começaram a sumir da circulação. Este foi o primeiro sinal, o mais significativo.

Suas suposições se confirmaram: A AIDS, a mais terrível doença dos últimos tempos,aportara no Brasil!

Implacável, o vírus tomou posse de vários territórios, inclusive, sua pensão.

Grupos caracterizados de `risco´, passaram a desvelar seus medos, organizar um movimento que culminou no nascimento do Grupo de Apoio ao Portador de Aids (GAPA) sob assessoria técnica de funcionários públicos.

Brenda, exuberante, participou ativa e destemidamente desse movimento, em paralelo à rotina do adoecimento de seus `hóspedes´.

Cuidou de todos, suprindo suas necessidades. Seu carro, um monza preto e novo passou a ser utilizado sistematicamente, para correr atrás das providencias emergenciais como: internação, alta, medicamentos, alimentação, vestuário, óbito, caixão, enterro...

Brenda esmoreceu? Absolutamente. Uma verdadeira guerreira diante dos desafios que passou a enfrentar no seu dia a dia tão dessemelhante da vida que levava em Paris.

Lembro-me bem do furor que ela causou, por ocasião de uma reunião especial com o secretário de saúde e seus assistentes. Vestia um modelo `tomara-que-caia´ de couro, sob o casaco de `Vison´, ainda com vestígios do perfume francês. O dia estava frio, muito frio... e eu vestia um casaco comum. Salário de funcionário público nunca permitiu certas extravagàncias.

Na portaria da Secretaria de Saúde, seus colegas aguardavam ansiosamente sua presença pois tinham a mais absoluta certeza de que iria agitar o `quarteirão da Saúde´. Dito e feito! Foi um `senhor´ reboliço. Após primeiro impacto `todos´ ou `todas´ subiram até o sexto andar e acomodaram-se na sala vip de reuniões.

Eu já havia estado em vários encontros naquele local, mas nunca presenciado um dia tão `festivo´.

O senhor `Secretário de Saúde´, obviamente, fez-se substituir por seu secretário adjunto, assistentes e, a presença dos mesmos fez com que o grupo retomasse ao principal objetivo: impedir a transferência do Ambulatório (da Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 188) para o Centro de Referência de AIDS, a ser inaugurado.

Contrariando a expectativa do grupo, as autoridades fizeram o anúncio da decisão da transferência.

Foi neste momento que Brenda estirou seu braço desembaraçando-se das peles do `Vison´ , posicionou suas longas unhas sobre a mesa e disse: -"Só um travesti é capaz de saber o que é preciso para se defender dos reveses da vida." E `pousou´ seu olhar em cada um deles.

O secretário adjunto e seus assistentes remexeram-se com impaciência, enxugaram seus rostos do `suor´ do inverno´, reorganizaram os nós das gravatas e sinalizaram veementemente, que não mais se enquadravam naqueles engomados colarinhos brancos.

A partir desse encontro, a secretaria de saúde prosseguiu com suas falácias, ignorando inúmeras providências que seriam cabíveis e imprescindíveis, arriscaria dizer, diante de uma situação que se avolumava a cada dia, tornando a nossa prática profissional quase que insustentável.

Veladamente, seus representantes tomaram uma decisão acertada: solicitaram a colaboração de Brenda , que permitiu a reforma e reestruturação interna de sua pensão.

A `Casa das Bruxas´, da noite para o dia passou a desempenhar o papel mais importante e triste de sua existência: o de retaguarda (após alta hospitalar), para os `aidéticos´ (não somente os travestis) desprovidos de apoio familiar e residência. O que, aliás, na época, a grande maioria!

Brenda assumiu o comando da nova casa, sob supervisão de técnicos da Secretaria de Saúde. De início, chegou ao exagero de criar uma sobremesa para o gosto de cada um. Aos poucos, adaptou-se à realidade.

Por outro lado, não conseguiu administrar sua família como gostaria. Sentia falta de uma relação mais afetiva. Apesar de mantê-los, sempre foi ignorada por todos. Por vezes, chegou a falar sobre esse constrangimento e dor.

Mas, infelizmente, na ànsia de viver e cobrir suas carências, Brenda, que nunca se permitiu estacionar apaixonou-se pela pessoa errada.

Nessa época, o Centro de Referência para o Tratamento da AIDS já funcionava no novo endereço e, eu já havia feito a opção de permanecer na minha escolha de sempre: Hanseníase. Assim, por força das circunstàncias, acabei perdendo o contado com o personagem desta narrativa.

Após tantos anos, me recordo do impacto por ocasião em que o secretário da saúde pré-julgou a equipe de hanseníase como apta para o atendimento à AIDS, avaliando sua habilidade em lidar com o estigma da `lepra´.

A partir deste argumento, nos vimos, repentinamente, no meio de um terrível vendaval por cinco longos anos, sem o cuidado de um apoio psicológico. Foi aí que aprendemos a arte dos bandeirantes: desbravar sertões e fincar bandeiras.

Endereços foram trocados, contudo, as bandeiras permaneceram fincadas na história da nossa prática e com elas, a imagem de Brenda.

Foi assim que o ambulatório de Dermatologia Sanitária, sede e referência para a Hanseníase desde sempre, encerrou seu período de 1ª referência para AIDS em São Paulo e Brasil, após ter capacitado quase todas as equipes de referência dos demais estados.

Meu próximo e inesperado encontro com Brenda ocorreu no momento em que folheei o jornal daquele dia e li em letras garrafais: Brenda assassinada! A paixão, seu algoz!

Uma tristeza atravessou meu peito e fez-me refletir sobre essa experiência na minha vida: no primeiro dia em que me vi frente a frente a um travesti em minha sala, tinha certeza de que havia chamado o Sr. José Roberto. No entanto, adentrou e sentou-se displicentemente uma mulher grande, de beleza exótica. Sabia que alguma coisa não havia dado certo. Não mais do que de repente estava diante de um segmento da sociedade que não conhecia de perto. Não era o meu mundo e senti-me insegura para o mergulho inicial. Mergulhei e emergi forte. Claro que de início me intimidavam com suas irreverências, mas chegou o tempo do respeito mútuo, escultura extraída da pedra bruta do cotidiano. Entendi que perderia de vista o valor da integralidade se começasse a fragmentar o homem e a sociedade em que ele estava inserido. O todo era o universo da minha ação. E esse todo não tinha cor, raça, sexo ou preferência sexual."

Sua foto no jornal me conduziu à uma das primeiras reuniões do GAPA , época em que a conheci. Olhou-me e disse:

- Me chame de Brenda, apenas Brenda!

Um homem, uma mulher? Que importa?

De tudo que presenciei e acompanhei, pude constatar nada mais, nada menos que a essência de um grande ser humano.

Assim, me despedi de Brenda: com respeito e admiração.

Fechei o jornal, acreditando que naquele momento, o céu se acrescentava.


Heleida Nobrega Metello *


*experiência vivenciada em parceria profissional com Otília Simões Janeiro Gonçalves, assistente social e pesquisadora científica, amiga de ontem e de sempre, tão guerreira quanto Brenda nas primeiras batalhas, tempo em que as armas que possuíamos, praticamente, eram as nossas faces e uma disposição incrível que vinha de dentro, diante de um poderoso inimigo sem rosto.
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