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Artigos-->Da tradução: tarefa a requerer de volta a sua humanidade -- 11/05/2001 - 18:06 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Certa vez ouvi, de um tradutor, a afirmação absurda de só fazer traduções definitivas. Se pensarmos no mercado editorial brasileiro, nas circunstâncias em que nos vemos forçados a produzir e a pensar a tradução, eu diria que, lamentavelmente, só fazemos mesmo traduções definitivas. Mas o adjetivo, definitivamente, nada tem a ver com a natureza desse empreendimento, para todos os efeitos e para alívio de todos os implicados, humano.



Ao dar por encerrada uma dessas tarefas translatícias, experimento uma sensação de grande desamparo, de incômoda incerteza. Nesses momentos, penso o quanto mais confortável não seria a hipótese benfazeja de um segunda edição que fosse, e com uma tarja bem grande: revista e melhorada.



A revista Modelo 19, entre tantas outras virtudes, pode estar contribuindo para devolver aos tradutores e à tarefa da tradução a consciência aguda da transitoriedade de cada resultado, esse caráter de construção comum que só nos engrandece, essa humanidade que o tradutor acima, com suas traduções definitivas, pretende inexistente.



Acho até que poderia começar a haver um espaço bem claro para a crítica do material publicado, que não nos pejássemos de emitir todas as opiniões e ressalvas necessárias, antes e depois da publicação, de refazer trabalhos, quando possível e necessário, e de tornar a publicá-los.



Seria benéfico e iluminador para todos nós, tradutores e leitores de traduções, coisa evidentemente impossível quando se trabalha em função do mercado editorial. Eu, com toda a certeza, haveria de encarar tudo isso tranqüilo e agradecido.



[Agora uma observação apenas de passagem: a maior parte do que nos é dado ler sobre tradução, sobre teoria e crítica da tradução, e mesmo as poucas críticas e resenhas de traduções publicadas entre nós, tudo isso junto parece contemplar sempre e apenas microscopicamente os artefatos produzidos. Muitas das observações parecem pertinentes quando se comenta a tradução de um poema curto, por exemplo, ou de fragmentos. Difícil é aceitá-las como aplicáveis a tarefas mais extensas, como a tradução de obras mais extensas. Várias das considerações baseadas nos processos chamados transcriativos na tradução de poemas, é evidente que se tornam inviáveis quando se tem pela frente as 300 ou 400 páginas de um romance. Todas as questões relativas ao extrato sonoro, por exemplo, ritmo, mimetização dos procedimentos poéticos, congenialidades: que desafio!]



Assim, “dei por preparadas” estas traduções que o leitor vai agora conhecer. Que elas sejam, como vem sendo para mim, aquilo que nos ensina a conhecida formulação de Ortega y Gasset, não um equivalente ao original, mas um caminho até ele.



Que aquilo que nelas ainda se acha incompleto, impreciso, vacilante, equivocado, lacunar, sem com isso pretender apenas livrar-me das inúmeras culpas, possa ser visto como pulsação, sinal de vida, de que estamos vivos e felizes, de que estamos lendo e relatando, por meio da tradução, a nossa leitura. Só isso. É bem mais simples e eficaz do que toda a empolação que passou a acompanhar esse fetiche talvez brasileiro, fruto da defasagem cultural, só pode ser isso, e de uma espécie de embasbacamento consensual entre certos cadernos de cultura e seus desavisados leitores, essa fogueira fátua de vaidades a produzir calor em demasia e luz pouca.



Basta considerar a inexistência de profissionalismo a marcar as relações, ou a ausência delas, entre tradutor e editores, para alterar significativamente o tom desse discurso.

Mas, não. Vamos dar um tempo com todo esse falatório. Uma palestra sobre tradução, uma mesa redonda reunindo tradutores, um artigo introdutório como este, podem muito facilmente se transformar num muro de doridas lamentações, com o seu inevitável contraponto, uma que outra voz candidamente satisfeita com os seus resultados, e otimista..



A Robert Walser, invariavelmente, se chega com uma primeira ressalva: não confundir com o alemão Martin Walser, escritor nosso contemporâneo, muito mais próximo da literatura chamada best seller, num certo sentido, do que da literatura num outro (e maior?) sentido. No caso de Robert Walser, justo não seria estarmos a falar em grande literatura, mas sim, ao contrário, de uma literatura de formato assumidamente pequeno, distante do grand monde literário: "Kleine Dichtungen" (Poemas Pequenos) e "Kleine Prosa" (Prosa Pequena), é assim que se chamam dois dos volumes que fez publicar, em 1914 e 1917, respectivamente.



Pessoalmente, cheguei a ele através da leitura e da tradução que, há um certo tempo, venho fazendo de algumas das obras do austríaco Peter Handke e do suíço Peter Bichsel.



Para ambos, Robert Walser se constitui num dos grandes inspiradores, um quase modelo, alguém que viveu a literatura e que deixou registros dessa vivência.



É preciso dizer que tanto Handke quanto Bichsel, além de grandes prosadores, são também ensaístas de igual porte, capazes de aguçar no leitor a urgência de chegar até os artefatos literários que comentam.



Não há como ler o posfácio que Bichsel escreveu para uma edição recente (Suhrkamp Taschenbuch, 1990) do romance "Geschwister Tanner" (Irmãos Tanner) e não sair desesperadamente atrás de um exemplar.



Bichsel, para além das afinidades literárias, compartilha com Walser a nacionalidade e uma certa visão da literatura, a de quem espia do lado de fora, pelo fato de se verem compelidos a escrever numa língua, para eles, estrangeira, o alto alemão (Hochdeutsch), que muito pouco diretamente tem a ver com o dialeto que praticam. Não é de todo absurda a tese de que esse idioma que aprendemos nos cursos de alemão para estrangeiros, absolutamente, não seja um idioma falado, a não ser nas programações de rádio e televisão, exceto as regionais, na maior parte dos cursos universitários, tendo havido, é o caso da Universidade de Colônia, um ou outro movimento para a retomada dos dialetos também em salas de aula, e, é claro, no âmbito das relações internacionais, nelas incluindo-se o ensino e a aprendizagem do alemão como língua estrangeira. Todos nós que aprendemos o alemão e depois nos vimos lançados em situações reais de fala, já vivemos isso muito rudemente no dia a dia. Como se estivéssemos a praticar o latim ou o grego clássico.



[Às vezes, nas nossas discussões sobre como transformar o Curso de Letras em alguma coisa dos nossos dias, chego à radical afirmação de que o alemão deveria constar do elenco de Letras Clássicas. Na verdade, o nosso aluno se depara a seguinte charada: latim e grego no mesmo leque de escolhas dos idiomas modernos, necessariamente nesta ordem de interesse para a “clientela”: inglês, francês, italiano e alemão.]



Bichsel reconhece em Walser a quase necessidade de escrever mais hochdeutsch que qualquer alemão, sendo este um idioma muito mais escrito que falado, criado que foi, por Lutero, para a tradução da Bíblia.



Em "Poetikvorlesungen in Frankfurt" (Aulas de Poética em Frankfurt), de 1981, o próprio Bichsel fala da dificuldade sempre sentida, ao longo de sua trajetória escolar, no quesito redação, sendo a sua glória literária um perfeito milagre: alguém que era considerado e se sentia incapacitado para a mera escrita no âmbito escolar, e que vai surpreender o mundo literário de língua alemã, nos anos 60, com uma extraordinária coletânea de contos, "Kindergeschichte" [Histórias Infantis], um surpreendente e improvável best-seller. Neste caso, o aspecto quantitativo surge a posteriori e inesperado, muito diferindo do best seller no sentido pejorativo antes aventado.



Robert Walser nasceu em Biel, na Suíça, em 1878, tendo peregrinado como jovem poeta por Zurique e outras cidades do seu país natal. Viveu depois algum tempo em Berlim como escritor profissional (freier Schriftsteller), onde chegou a freqüentar os meios literários e mundanos sem nunca chegar a deles fazer verdadeiramente parte. Em seguida, retorna a Biel, para finalmente instalar-se em Berna.



Em 1929, ele que sempre preferiu vagar por todos os caminhos, nunca se fixando em nenhum dos lugares por onde havia passado, não tendo constituído família nem qualquer outra laço duradouro, interrompe a sua obra e acaba internado por décadas como paciente de um sanatório para doentes mentais.

Há quem queira ver nesse desenlace mais um dos gestos de alguém que não se queria parte de um mundo administrado, de um estado de coisas que acabaria por lhe tirar os bens mais preciosos, a liberdade e ócio criador, a vagabundagem de caminhante inveterado.



Consta que, mesmo nessas décadas de sanatório, outra coisa não fazia que caminhar, caminhar, caminhar, só se fazendo de louco, conforme relato de pessoas que conviveram com ele nesse período, em presença dos médicos e enfermeiros.



Ao escrever o maior de seus omances, "Geschwister Tanner", Walser tinha 28 anos de idade e, surpreendentemente, já conseguia contar ali toda a sua vida. No capítulo sétimo, ao ler a descrição da morte do personagem-poeta, o leitor estará acompanhando um rasgo premonitório dos mais raros, a descrição de uma outra morte, a do próprio autor, e que só aconteceria cinqüenta anos mais tarde, em 1956. Walser morreu um passeio solitário pela floresta. O corpo foi encontrado caído na neve, nos arredores da clínica onde se fizera internar por tantos anos.



Além de "Geschwister Tanner", só consegui dispor, até muito recentemente, de mais quatro narrativas curtas do autor, casualmente descobertas em revistas literárias alemãs ou coletâneas de narrativas curtas.



Os dois textos que aqui chegam traduzidos até o leitor da Modelo 19, tinham inicialmente um leitor-alvo, o amigo e escritor Uilcon Pereira, que, infelizmente, terminou por não conhecê-las. Ele que tanto gostaria de saber quem era esse Robert Walser e que tanto admirava Kleist ("Kleist in Paris") e que certamente haveria de se reconhecer no texto sobre "O Escritor" (Der Schriftsteller), como tantas vezes o vi fazer, exclamativo: “Mas isto sou eu!”

Só mais recentemente, depois de tanto vasculhar e perguntar, é que pude ter acesso a "Kleine Prosa", um volume de textos curtos já citado anteriormente nesta introdução.



Na Biblioteca do Instituto Goethe em São Paulo, além deste volume, o leitor pode encontrar uma edição de "Geschwister Tanner" e uma biografia escrita por Robert Mächler, "Das Leben Robert Walsers. Eine dokumentarische Biographie" [A vida de Robert Walser. Uma biografia documental].



Um dos meus projetos para um futuro que espero próximo: a tradução do maravilhoso ensaio de Peter Bichsel sobre Robert Walser acima citado.



Seria ainda uma enorme felicidade poder vir a traduzir um dia o romance "Geschwister Tanner".



Por enquanto, o leitor vai ficar com estas poucas informações acima rascunhadas e com o privilégio de conferir comigo, tanto quanto sei (gostaria, aliás, de ver contestada esta minha afirmação, de preferência ganhando acesso ao material porventura existente), esta primeira tentativa de tradução da prosa de Robert Walser no Brasil.



Por tudo isso, dou por preparadas estas traduções para a Modelo 19 e, otimista, ouso despedir-me do leitor com a frase final de "Bem-Aventurada Infelicidade" (Wunschloses Unglück), narrativa de Peter Handke por mim traduzida para a Brasiliense (1977), juntamente com "O medo do goleiro diante do pênalti" (Die Angst des Tormanns beim Elfmeter): "Mais tarde hei de escrever sobre tudo isso algo de mais preciso."



_____________________________





[Esse foi o texto de apresentação das traduções de dois textos de Robert Walser: "Kleist em Paris" (Kleist in Paris) e "O Escritor" (Der Schriftsteller), na revista de tradução Modelo 19, outono/inverno de 1999, números 7 & 8, ano 4, pág. 58-71. A revista é editada por Ricardo Meirelles na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Araraquara.]

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