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Cronicas-->No tempo da vitrolinha -- 23/04/2007 - 20:38 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Roberto Carlos já passeava pela casa desde oito da manhã, saindo das caixas de som em rebolados de iê-iê-iê e ritmo de aventura. O moderno stereo três-em-um já estava pronto para rodar um compacto do Nelson Gonçalves e outro da Elis Regina. Aquele novo dispositivo era um milagre da tecnologia mecànica: os discos ficavam suspensos num eixo, uns sobre os outros, esperando a hora da queda no prato. Funcionava bem até a terceira bolacha; depois disso, um cantor não suportava o peso do outro e os compactos patinavam, fazendo a agulha pular. Nada que pudesse perturbar o clima ritualístico de um domingo musical como eram todos os meus domingos de filho de nordestino.
Talvez não seja mais assim em tempos de mp3. Em meados da década de setenta, no entanto, era certo que o primeiro salário de um jovem trabalhador potiguar seria investido em algo que tocasse música. Fosse um Motorádio, um Transglobe ou um tape National. Casa de nordestino trabalhador de respeito tinha charque e som. Em minha casa, mais som que carne seca, prato que não agradava muito ao paladar de minha mãe paulistana. Mas a música nunca encontrou oposição de ninguém.
Meu pai era um DJ eclético. Podíamos ouvir, lado a lado, Chico Buarque e Luiz Gonzaga; ou Beatles e Amado Batista; ou Luíza Maura, a preferida de meu pai, e Francisco Petrónio, o preferido de minha mãe. Eu gostava de quase todos e dava tanta importància aos nossos fins de semana musicais que só aceitava ouvir certas canções se estivesse enfiado em roupa nova, como se respeitasse os cantores, pessoas capazes de alegrar a vida difícil da Zona Leste paulistana.
Já tinha uns nove anos de respeito à imponência dos elepês quando ganhei uma vitrola Philips de um padrinho. A felicidade de ter a minha própria central de música só não foi completa porque o tal padrinho tinha a estranha mania de pegar de volta os presentes que dava sob o pretexto de consertá-los mesmo que não estivessem quebrados. Assim sumiu meu único carrinho de controle remoto com fio, dado e resgatado por ele, talvez para presentear outro afilhado. O jeito era aproveitar enquanto a caixinha vermelha ainda me pertencia. Caixinha, não. Era uma maleta que se dividia em duas partes, como pasta 007: uma reservada para o prato, braço e agulha e a outra, dotada de um pequeno alto-falante, capaz de transformar-se em caixa de som. Não tinha a modernidade de um três-em-um, mas me tornava capaz de fazer minhas próprias escolhas, em tudo iguais às seleções de meu pai, subtraindo-se da lista apenas o melancólico Silvinho cantando que "essa noite eu queria que o mundo acabasse".
A novidade agradou à família toda. A vantagem de ter um toca discos portátil e alimentado por apenas oito pilhas das grandes permitia que as audições acontecessem no quintal em raros dias de sol paulistano. Minha irmã mais velha, sempre adulta, botava um vestidinho florido e inventava peças de teatro tendo as melodias como fundo dramático. Eu estava mais interessado em cuidar das operações de seleção e troca de discos, privilegiando as novidades e os clássicos que só eram clássicos lá em casa. As capas coloridas davam grandes chances ao artista de ser escolhido por mim para compor o show. Definida a obra, iniciava-se o ritual que começava por retirar o disco da capa de papelão de onde ele saía preto e luzindo em seu protetor plástico transparente; o cuidado continuava no jeito de segurar o discão pelas laterais com as mãos espalmadas para não sujar ou riscar as faixas. Encaixado no pininho central do prato, bastava prender a respiração para guiar o braço, fazer descansar a agulha sobre o vinil e a música não parava mais. Se não cuidassem, eu ficaria trocando os discos por todo o dia.
Waldick Soriano era um dos preferidos da discoteca. No sábado, semana do dia dez, meu pai chegara com uma raridade de seleções do cantor. No domingo, na festa da vitrolinha sob a sombra da goiabeira, depois de ouvir "Eu não sou cachorro, não." com bis e bis e bis, resolvi atender aos pedidos em forma de choro da irmã mais nova e exibir a trilha sonora da novela "Estúpido Cúpido". Celly Campello foi a culpada pela distração que me fez deixar o disco do Waldick fora da capa, esquecido numa cadeira de fórmica sob o sol. "Ritmo da Chuva" ainda ecoava quando minha mãe chamou para a macarronada com frango regada à Tubaína.
O disco do Waldick só foi encontrado no fim da tarde e não era mais um disco. O calor deformara tanto o vinil que aquele novo objeto preto, segurado por meu pai com tristeza, estava mais para chapéu coco. Sei que deveria ter sentido culpa ou até medo de receber castigo, mas a impressionante deformação do plástico me fascinava tanto que não tive tempo para borrar a calça boca de sino listrada que vestia. Meu pai, resignado, falou suspirando:
- Ainda bem que ontem eu gravei esse disco na fita cassete.
Bendito três-em-um que permitiu que aquele domingo terminasse alegre e ao som cachorro de Soriano.
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