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cronicas-->Reflexões de raio-x -- 23/04/2007 - 20:45 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
- Eugênia Martins Lima!
A atendente fez ecoar o nome pela sala de espera. Eugênia, ou Gê para os amigos, já esquentava a almofada do sofá de alvenaria da clínica de radiologia por mais de quarenta minutos. Tempo suficiente para tomar dois cafés de maquininha e conferir os corpos esbeltos das estrelas da Contigo e da Marie Claire. Ouvir seu nome, ainda que completo como poucos ousavam pronunciar, foi um alívio que interrompeu a leitura desinteressada de uma revista médica. Cruzou a sala verde acompanhada pelos olhares de um casal de rostos e mãos nervosas. Caminhava com dificuldade, dobrando menos a perna direita. Dorzinha incómoda. O que não incomodava naquela situação? Uma tarde perdida em consultas médicas por culpa de um joelho dolorido e ruidoso. Já fazia uns dois - ou quatro? - anos que a sinfonia de ossos e cartilagens acompanhava Gê. Em dias silenciosos, ao subir as escadas que levavam ao ateliê, a rótula rangia mais que as peças da máquina de lavar.
- Ai, moça! Não posso andar assim rápido. Tó toda enferrujada...
A queixa de Gê desacelerou a marcha da mulher que já ia adiantada no corredor insípido. Droga! Tanta coisa poderia ter sido feita naquela tarde: terminar a tela encomendada pela Neiva, tomar chá com a Biba, ler mais duas páginas de Ulysses. Tudo bem que, provavelmente, o tempo de Eugênia seria gasto num passeio solitário pelo shopping, esforço que pioraria o problema no banco e no menisco. Para amenizar a sensação de perda de tempo, lembrou-se dos sermões da mãe, trechos tirados de livros de auto-ajuda sobre a necessidade de passar por momentos infelizes para entender o que é felicidade. Ser infeliz para ser feliz? Difícil aceitar. Possível apenas conformar-se. Conformou-se um pouco. Era fato: todo mundo precisava ir ao médico, fazer exames periódicos, consultar o dentista regularmente. É próprio da natureza humana. Como um ritual para comprovar nossa condição de seres mortais que se decompõem, igual a qualquer substància feita de células. Aos poucos. Por que seria diferente com Gê? Só por que ela odiava médicos, laboratórios, farmácias?
- Pode vestir o avental ali no trocador. Eu vou buscar as chapas e já volto.
Tinha isso também? Colocar avental? Ela não estava doente para vestir roupas de doente! Só o joelho pedia uma revisão básica. Nada além. Gê se achava até muito bem. Trinta e seis anos com cara e corpo de trinta. Suas amigas já eram esticadas, turbinadas, botoquizadas, lipoaspiradas, mas ela deixava a natureza seguir suas rugas sem maiores constrangimentos. Conseguia, ainda sem esforço, livrar-se das roupas e curvar a coluna para tirar as sandálias. Antes de enfiar- se no avental, mirou-se no espelho manchado. Metro e sessenta e quatro, sessenta quilos - três acima do peso ideal ! -, uma barriguinha discreta. Estava bem. Talvez um pouco mais de bunda, um aperto nas medidas da cintura. Mas era tudo natural. Se precisasse ainda teria os recursos da medicina estética, inéditos para ela. Ainda poderia trocar de cabelo, de rosto, de seios, de culotes, de olhos. Até seus orgãos internos poderiam ser totalmente renovados como informavam as sondagens sobre medicina ortomolecular da revista médica que folheara na sala de espera. Poderia trocar tudo! Por ora, era só trocar a nudez pelo avental ridículo. E curto.
- Senta aqui, por favor - indicou a enfermeira. Primeiro você vai ficar assim mesmo, com a perna esticada. Não pode se mexer senão a gente tem que repetir tudo. Quietinha! Que que foi com o joelho, filha?
- Sei não. Desgaste. Idade... - deixou escapar Eugênia, ingênua.
- Idade? Você nem tem trinta...
- E seis...
- Puxa vida. Nem parece...
A mulher de branco saiu da sala com uma certa pressa. Gê, como um frango sem tempero no tabuleiro de domingo, permanecia imóvel sobre a maca de raio-xis , ouvindo ruídos estranhos na máquina radioativa. Deveria ser muito bom o tal raio-xis. Monstrinhos que pulavam no ar com tridentes pontudos espetando o frango da vez. Mas eram inofensivos perto do insight luminoso de Gê ao contemplar sua perna em foco: se precisasse, poderia trocar tudo, cabelos, olhos, bunda, coração; menos o joelho. Joelho! Carrasco! Dedo-duro! Que adiantava aparentar vinte e oito se os rangidos e os raios-xis não calavam a boca! Seguindo as ordens da enfermeira que voltava do abrigo anti-atómico, Eugênia, frango assado radioativo, rosto colado na maca, odiava mais os médicos que ainda não inventaram um clone de joelho.
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