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Contos-->Lembranças da Francisco Holanda -- 27/05/2014 - 18:05 (Roosevelt Vieira Leite) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
LEMBRANÇAS DA FRANCISCO HOLANDA

A Rua Francisco Holanda sempre ficará nas minhas lembranças. Lembranças de uma criança que viveu o bom da vida sem temê-la. A palavra medo não estava em seu dicionário nos idos anos 60. Recordo-me de um menino que pegava a areia marrom nas mãos e a apertava para sentir a sensação gostosa de terra quente ao meio dia e fria pela tardinha. Havia no peito daquele pequeno ser a certeza de que, ao retornar para casa, mamãe e papai estariam lá como dizia a rotina, a rotina boa de sua vida infante.
Sinto o cheiro dos cajueiros e mangueiras que reinavam por toda a velha Aldeota, que na época se tratava ser mais um bairro promissor da capital do sol. O menino caminhava livremente por todas as latitudes e longitudes daquele lugar. Do cocó a beira mar, se estendia seu reino de muitos sonhos e fantasias.

- Gildo, quero que você saiba de uma coisa.
- O que Neném?
- Eu sou o Zorro.
- O Zorro?
- Sim, mas, num diga nada a ninguém. Ninguém sabe disso. Hoje vou aparecer na casa de Carlos Alberto. Gildo deu uma olhada desconfiada e disse: “Vamos ver”.

Aquela manhã passou não muito rápida. O sol não se escondeu nem por um segundo atrás de uma nuvem qualquer, era o mês de novembro, o litoral do Ceará fervia e tremia ao olhar do visitante. Na terra do Dragão do Mar, saibam todos – O sol é Rei! E minha humilde pessoa – O Zorro!

Esse Zorro de minha infância trajava bermuda craque, uma mascara de pano preto com dois buracos mal cortados nos olhos, e um lenço velho para esconder a coroa de cabelos preto no topo da cabeça com os rodapés bem raspados. Esse Zorro tropical não usava camisa, pois, no Ceará o calor é em abundância. De vez em quando, ele usava uma capa preta que, na verdade, era a saia de sua irmã mais velha que estava para ir para João Pessoa. “Pare!” “Eu sou o Zorro!”
A tarde chegou; o pequeno menino magro e moreno escuro, quase preto, após o almoço costumava deitar-se no chão frio de cerâmica azul nos fundos de sua casa. No quintal, um muro que separava seu palácio de um terreno baldio. A sua frente, um pé de mamoeiro, que quase superava a altura de sua residência. O menino olhava para cima para ver as nuvens brancas a viajar no céu azul. Era uma sensação maravilhosa que escondia a imaginação pueril de uma vida que fazia das coisas objeto de suas brincadeiras. “Por que elas se movem?” “Pra onde elas estão indo?” A frieza da cerâmica acariciava sua pele fina dando-lhe o conforto necessário para que ele se entregasse a mais uma de suas quimeras. “Zorro veio do céu”. “Ele vai salvar a todos e quem sabe a irmã dela olhe pra ele com olhar diferente” Esse “ela” era a irmã da namorada do irmão de Neném, o temido “Macaúba”. Essa era uma pessoa que falava com fluência, tamanha fluência que ninguém conseguia traduzir seu vernáculo. “Macaúba, vamos brincar de pião?” A resposta era tão rápida que o pequeno Neném intuía que tudo aquilo era: “Vou”.
O chão frio estava ficando mais frio e o sono tomava o pequeno mancebo sobralense. Agora, no mundo onírico, o menino da Aldeota dialogava com seus demônios interiores. Ele tentava mexer seu frágil corpo lânguido, mas, era em vão. Uma senhora idosa aparecia em sua vidência sonambúlica. “Menino, que fazes aqui?” A senhora aparecia irritada, e com uma pequena faca na mão direita, e na esquerda algo semelhante a uma lata de leite o ameaça com gestos e palavras duras. O jovem Neném tenta acordar, mas, em vão, suas pálpebras pesavam mais que um saco de cimento. A mulher o ameaça novamente: “Menino, vou te levar para a terra dos pés juntos!” De súbito, Neném desperta com o chamado de sua irmã Ana perguntando-lhe sobre o paradeiro do doce de goiaba que estava na dispensa. O pequeno jovem metropolitano não sabia o que dizer, na verdade, sua boca conservava os vestígios de sua mais recente transgressão na forma de pequenos fragmentos avermelhados. “Tu não deixa nada pra ninguém!” “Quando papai chegar contarei pra ele!” A moça Ana estava, de fato, com raiva, e com toda razão. O pequeno Neném não resistia uma goiaba, nem se contentava com pequenas quantidades do referido doce.

A noite estava chegando, o seriado “Perdidos no Espaço” era um sucesso para toda a criançada. Neném não perdia um. A velha televisão ‘preto e branco’ anunciava o início da série americana: “Perdidos no Espaço” As cinco e quarenta e cinco o seriado terminava; Neném e seus amigos iam para a calçada reprisar as cenas do filme ou comentar alguma coisa. Na verdade, Neném tinha sua própria nave espacial – uma caixa de ovo branca feita de isopor, e os seus tripulantes eram palitos de fósforo. “Leite, cadê o fósforo?” “Tá na cozinha!” “Não, aqui, não!” O menino Neném foi intimado a depor no quarto grande, ou, o quarto do papai e da mamãe: “Não minta, onde está o fósforo, foi você quem o gastou?” Neném espremia os beiços na forma de uma flor vermelha e chorava ante a ameaça da chinela de couro de seu amado genitor. Uma, duas, três lapadas foram deferidas contra seus lombos franzinos. O menino se amua no canto do quarto próximo a porta. O choro cessa após alguns minutos. A lembrança do Zorro toma conta do menino novamente, era hora de salvar aquela menina das garras de seu vilão. Neném pula a janela do quarto de seus pais e sai pela lateral sem ser visto por ninguém. O portão da frente bate e com sua batida o cheiro de café no fogo toma conta do rapaz. Mas, ele não podia esperar mais; o horário era aquele, seu amigo Gildo o esperava. Zorro teria que salvar aquela moça. Neném se lembra da mascara e da capa. Ele precisava improvisar uma espada urgente. “Se não der pra ser o Zorro, eu apareço como Durango Kid”. “Mas eu disse que era o Zorro!”. Neném teve uma ideia brilhante. A vassoura da casa era guardada no quintal, perto da casa dos cachorros. “Eureka”, “é só tirar a cabeça e a vassoura se torna uma boa espada”. O serviço foi feito. A televisão anunciava a próxima programação “Vila Sésamo”. Neném sente um desejo enorme de assisti-la, mas, seu compromisso com o oprimido era maior. “Eh, mas, herói é herói”.

Entre pés de mamonas e muricis surge o Zorro de Fortaleza. Um herói destemido, na verdade, decidido a salvar qualquer moça vítima de um vilão qualquer. Aquela missão seria decisiva para ele, pois, agora, alguém sabia de sua identidade. Gildo vê o Zorro e se espanta. “Gildo, eu num disse que eu era o Zorro?” Gildo se rende a verdade incontestável. Os dois meninos seguem bravamente rumo à única mansão das redondezas – a casa de Carlos Alberto, filho de um bancário bem sucedido. Era uma casa enorme de muros altos, exceto, na frente que ostentava orgulhosamente um hall de cerâmica de lei que vez ou outra se transformava numa quadra de esportes para a criançada. O jardim da frente da casa era protegido pelas grades pretas que serviam de muros para aquela mansão de muita paz. Era mais uma casa da Francisco Holanda, mais um cenário das aventuras do moleque Neném.

- Neném como é que você vai atacar.
- Diga você!
- Você é quem é o Zorro!
- Então, vamos por cima do muro.

Estava sendo construída a malha de esgotos da capital do Ceará. Havia, na época, montanhas de barro espalhadas por toda a Aldeota. Isso armou os inimigos do bem. Neném e Gildo foram recebidos a bala pelos os inimigos que se escondiam além dos muros. Neném sobe o muro e Gildo pelas grades, os dois tentam resistir desviando-se das balas de barro. O herói puxa sua espada e grita: “Eu sou o Zorro!” Isso fez a turma de lá atirar mais balas de barro. A luta era renhida, até então, a vitória estava para os soldados do mal, quando de repente ouve-se uma buzina de carro à porta da mansão. A meninada corre, Zorro e seu amigo descem do muro e se enfiam por entre as mamonas. Era hora de tomar café. Petrônio gritava o nome do irmão e eu fui com ele e meu amigo Gildo. Minha mãe queria saber o paradeiro da vassoura. “Foi você de novo nego velho?” O menino melado de barro até os cabelos da cabeça diz com sua gagueira emocional: “Foi, eu, eu, eu só queria salvar ela...”

As areias da Francisco Holanda escondem segredos que ficarão para sempre ali, e enquanto houver sonhos eles continuarão por lá. Pela manhã as areias são quentes como sol de minha terra, e pela tardinha, elas são frias como o vento que sopra do mar, do mar dos jangadeiros, dos verdes mares do Ceará.
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