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cronicas-->Nuvens perturbadas -- 18/05/2007 - 17:52 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Shentzen, China, 2006
As cadeirinhas tomam toda a praça. Só conseguiu lugar sentado quem madrugou. Os outros, apertados mais atrás, esticam os pescoços para garantir uma visão panoràmica. Muitos estão com fome ou sede ou sono, mas não arredam pé da platéia. Correr o risco de perder a entrada da corja? Que ronquem os estómagos como grunhem os porcos gordos e fedorentos das chácaras! A exibição pública já vai começar. Do corredor murado por corpos curiosos, surgem primeiro quatro policiais em índigo, três homens e uma mulher; eles, com lábios que deixam escapar um sorriso que, por ofício, deveria ter ficado em casa, mas que, por natureza, quer se juntar às centenas de gracejos e insultos ecoados por ali; ela, de cara-dura, queixo para avançado e olhos que, já puxados por raça, afinam-se mais para desenhar um ar de convicta condenação ao pelotão amarelo que vem escoltado por outros oficiais logo atrás. Trinta acorrentados, chinesas de longos cabelos na maioria. Também alguns chineses gordos. Todos vestindo os macacões amarelos dos presidiários de Shentzen. Mesmo sem julgamento, são criminosos e, em poucos minutos, para a satisfação da turba, serão execrados publicamente. Seus nomes serão lidos em voz alta e, em seguida, a multidão poderá ofendê-los e a todos de sua família. Uma lista será colada em praça pública e sobre ela alguns slogans de uma campanha oficial pregarão a manutenção da moral e dos bons costumes. Isso acontecerá daqui a pouco. Agora, a multidão inicia o opróbrio dos párias da sociedade: prostitutas e cafetões não são gente! Atiram ovos podres nos condenados, nem percebem que uma nuvem escura, dessas que surgem na vida humana em tempos de apocalipse, cobre um pedaço do céu chinês. Nem a criança que acha divertido poder xingar alguns adultos percebe, mas, neste momento e mais uma vez, a multidão mata um pouco daquilo que é ser homem.

Nova York, EUA, 2007
O homeless é uma salsicha entre as portas de vidro e o tumulto que se formou do além. Na madrugada, quando o andarilho deitou-se na calçada para curar o porre de gim assistindo ao presépio articulado, não havia uma vivalma na avenida. Agora, é esse empurra-empurra em que mulheres viram bichos, homens viram a casaca e crianças viram os olhos tentando chegar mais perto da entrada da Bloomindales. O mendigo demorou a entender que era o dia da promoção anual da grande loja e bem que tenta, mais lúcido, nadar contra a maré de gente para quem ele é um ser tão transparente quanto as vitrines que revelam os objetos de desejo nos quais a ganància de todos desaguará logo. Mas ele é um contra milhares e melhor é não mexer com gente tão determinada. Certamente, quando os seguranças de uniformes verdes abrirem as portas, aquelas senhoras cheias de charme e cheiros bons desviarão do corpo fedorento criando uma bifurcação. Até lá, o paredão de casacos e sobretudos protege o maltrapilho do frio de sempre. O calor, as luzes em pisca-pisca e as centenas de renas que enfeitam a loja tornam tudo mais delicado, mais aconchegante, mais ingênuo. Entre os bons-velhinhos de cera e tecido surgem outros, não tão bons e com grandes chaves nas mãos. A incómoda posição do sem-teto parece chegar ao fim. As chaves giram e, antes que o homem caído ao chão possa dizer ho-ho-ho centenas de botas, sapatos e tênis passam por cima dele e alguns ainda se limpam, rastapé, nos trapos que já foram roupas. Boas compras garantidas e ninguém tem tempo para perceber que, lá fora, sobre o belo prédio decorado com velas elétricas, passa uma nuvem negra daquelas que escondem o mundo em dias de maldade e um grande pedaço da alma daquilo que é ser humano evapora olhando o corpo morto do andarilho na calçada.

São Paulo, Brasil, 2008
O primeiro carro pretobrancovermelho da polícia ronca o motor e aciona a buzina tentando gritar mais que a muvuca que se formou em frente ao Edifício London. Uma outra viatura liga a sirene e consegue abrir um buraco no muro de gente ávida por mais um detalhe da trama que se não fosse fato seria filme B.O detetive de nome curto estica o braço pelo vão do vidro do carona e mostra um arma brilhante. A turba se contorce em vaias. Na parte de trás dos dois automóveis que agora avançam, o pai e a madrasta da menina tentam esconder o rosto das luzes dos holofotes das TVs linkadas ao vivo. Não houve ainda um julgamento, mas para cada um daqueles faxineirossambistasdentistasdomésticasengenheirospastorespedreirosmacumbeirosdigitadoresanónimos é todo mundo culpado. A madrasta, o pai, o avó, o padrinho, a parteira, deusetodomundo. Se não forem culpados, não tem graça, não tem show, não tem zona. E já que ninguém ali na multidão pecou um dia, já que sobra tempo e falta mais o que fazer, já que o circo pegando fogo é alegria de palhaço demente, por que não invadir o prédio e quebrar tudo? O promotor até pediu apoio popular! Que apoio é melhor que o clamor escandaloso por justiça a qualquer preço. Enquanto os helicópteros seguem as sirenes e focalizam os réus, a multidão força o portão da garagem - assassinos! - e a outra multidão que é o país todo baba em frente ao tubobigbrother - morte! - torcendo pela desgraça geral. Não por acaso, acima da poluição da paulicéia, nuvens pretas, do tipo que sente o que é negativo na terra, mancham o céu e a dignidade pouca que resta em ser gente.
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