Usina de Letras
Usina de Letras
11 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62282 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22540)

Discursos (3239)

Ensaios - (10386)

Erótico (13574)

Frases (50671)

Humor (20040)

Infantil (5457)

Infanto Juvenil (4780)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140818)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6208)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cronicas-->Nome sujo, alma lavada -- 18/05/2007 - 17:56 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dona Jacobina, 79 anos, cometeu suicídio ontem. Ninguém se deu conta; vizinhos nem sabiam que ela morava numa casinha de fundos na Vila Virgínia; filhos, nenhum vivo; amigos, todos mortos. Ninguém sabe por que a coitada fechou com cuidado todas as janelas, portas e outros vãos de seu casebre e, antes de se deitar com certo conforto num sofazinho de dois lugares, abriu o registro do gás; mesmo gás que usava para cozinhar um fritadinho com arroz todas as tardes. Por ironia, tinha trocado o botijão havia dois dias. O butano encheu cada cómodo e também os pulmões asmáticos da corintiana quase octagenária. Suicídio. Suicídio aos oitenta. Não deixou bilhete, não telefonou para a comadre, não abraçou o lixeiro. Sobre a almofada rota do sofá, apenas uma carta do SPC: "Comunicamos que seu nome está em nossa lista de restrição ao crédito...". Morreu de desgosto. Seu único bem estava destruído e impuro. Seu nome? Na latrina suja do Serviço de Proteção ao Crédito.
Quem conheceu Dona Jacobina sabe que sua vida sempre foi reta. Coluna reta. Nariz reto. Contas em dia. A professora primária aposentada repetia para os comerciantes do bairro o catecismo do pai: um homem pode perder tudo na vida, mas seu nome é intocável. Quando seu Frido era vivo, seguia ela na sombra honesta do marido telegrafista, contínuo, zelador e sempre trabalhador. Geraram dois filhos, os dois mortos num acidente de trem. Viveu seu Frido ainda mais dez anos depois da tragédia, e mesmo durante esses anos de dor cumpriu todos os seus compromissos: contas de casa, comida, uns docinhos e eletrodomésticos a prazo. Com a morte do velho, Jacobina continuou pagando as pequenas dívidas. Não entendeu quando um presidente cheio de energia e cores tomou emprestado o pouco dinheiro que ela tinha na caderneta da Caixa. Tomou e não pagou. Entendeu menos ainda quando as aposentadorias dela e do marido ficaram na geladeira por mais de cinco anos, sem um centavo de aumento. Viu a moeda trocar de nome umas três ou sete vezes. Ficou cheia de esperanças quando um metalúrgico virou presidente e prometeu vencer o medo. O Brasil grande nunca chegou e ela precisou cancelar o plano de saúde, sendo vista com certa frequência na fila do postinho. Há quem diga que se ela fosse um pouco mais paciente não precisaria inalar gás de cozinha. Morreria de tumor.
Ainda assim, com revezes e patologias, a descendente de italianos era a melhor pagadora da cidade. Comprava naquele magazine das promoções "só amanhã" sem precisar de documento ou comprovação de renda e juízo.Sempre pouco e sempre a prazo. Uma batedeira, um liquidificador, no máximo um rádio relógio em 12 parcelas que dobravam o valor do produto. Minto. Comprou também uma TV de vinte polegadas já que a antiga Telefunken, velha de guerra, fazia o Sílvio Santos parecer o Osama Bin Laden. Foi esse seu erro. Não deu conta de quitar as parcelas e, na décima nona, estava entre os devedores do SPC. Tão honesta em toda a vida, não seria agora, ao fim de oito décadas, que iria amargar o ridículo do nome no prego.
Dona Jacobina suicidou-se ontem. Não conseguiu limpar seu nome. Comprou TV e não pagou. Tirando a intoxicação por gás, nada disso estará em sua certidão de óbito. Nem vão escrever que a devedora morreu com a TV ligada, o mesmo aparelho que a levou ao ato derradeiro. Sem testemunhas, não será público que, enquanto Jacobina perdia a consciência, olhando a carta do SPC, a Globo mostrava o depoimento de um Delúbio, Dirceu, Valério, Roberto, Duda numa CPI qualquer. Todos negando tudo. Negando o suborno, negando o desvio, negando o tráfico, negando os fatos. Negando à Dona Jacobina o direito de morrer de tumor. Todos eles com nomes limpos. Mas nada disso é triste. Dona Jacobina até poderia ter o nome sujo, mas sua alma, do jeito dela, estava limpa.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui