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Contos-->sentinela -- 24/07/2014 - 15:09 (GABRIEL DE OLIVEIRA ZEFIRO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
SENTINELA



O homem saiu voando pela porta da taberna e caiu de cara no chão. Ficou imóvel por alguns segundos e então se levantou cambaleante, trôpego, sujo com a poeira da terra batida, até sumir na noite mal iluminada e embranquecida pelo nevoeiro. Fora atirado na rua pelos comensais, aos gritos, sem nenhuma consideração pela idade quase provecta ou pelo estado etílico avançado.

A taberna ficava na rua central da Vila da Esperança, uma aldeia de pescadores encravada no litoral norte. Os fregueses eram homens rudes do mar, todos beberrões inveterados, ansiosos por alguma diversão além do álcool. Não havia mulheres no local. Elas ficavam no edifício ao lado, onde se chegava por uma porta nos fundos, depois que o freguês mostrava que tinha dinheiro para o sexo e deixava suas armas com o taberneiro.

A casa estava cheia naquela noite. Dois barcos de pesca aportaram durante a tarde. As respectivas tripulações vieram a terra e com eles a sede de álcool, jogo e mulheres. Entre um e outro contavam histórias, velho hábito dos pescadores. Havia um prêmio para as boas e um castigo para as muito ruins, esse era o acordo, quem quisesse se arriscar que o fizesse. O homem que fora atirado à rua sofrera o castigo.

Sentado no final do balcão, quase escondido, solitário, a beber vinho, estava um velho, sem idade definida ou definível. Homens do mar envelhecem rapidamente. O certo é que era vivido, tinha a aparência dos que lutam desde sempre; uma vida de refregas. Assim que o bar se refez da agitação com o último mau contador de histórias, o velho levantou-se e disse:

- Agora vou contar uma história de verdade. Preparem-se, seus merdas, seus cagões. O velho levantou-se com a caneca de vinho na mão e, antes que os arruaceiros tomassem seus lugares, substituiu o marujo expulso. Fez-se o silêncio, como era de praxe quando uma história ia ser contada.

O velho freqüentava o lugar sempre que o seu navio aportava. Bebia calado, não jogava, não buscava os prazeres da carne. Naquela noite resolveu falar. Era uma noite sem lua, branca pela neblina, uma estranha neblina para aquela época do ano. A noite lembrou-lhe de algo.

- Já fui soldado; e gostei. Vocês acham que eu nasci velho? Foi há muitos anos, e muito longe daqui. Vim para cá a fugir do frio. Fiquei com horror ao frio. Vocês dessa terra não sabem o que é frio, nem o que é horror. Todos prestavam atenção ao velho, alguns na esperança de, em alguns minutos, lançá-lo para fora. Mas ele tinha a autoridade dos loucos, um olhar no vazio, como se lesse sua história no ar.

- Eu gostava do quartel. As coisas faziam sentido, tinham princípio meio e fim. Aqui fora ninguém se entende. Tinha dezessete anos quando me alistei.

Alguns bêbados começaram a se mexer, como se impacientes. Alguns murmúrios.

- Calem-se, gritou o velho. Vou dar o que vocês querem seus bêbados desgraçados. Tomou um gole e olhou para a turba com raiva e desprezo.

- O quartel ocupava um forte antigo, com muralhas que davam para um penhasco, no qual o mar batia furiosamente em dias de tormenta. No ponto mais distante da muralha havia uma guarita de sentinela. Muitas vezes dei serviço naquele lugar. Podia-se ver toda a região. As montanhas de um lado e a baía do outro, mas o que atraía o olhar, principalmente nas noites menos escuras, era o cemitério, situado no topo de uma pequena colina, bem em frente ao quartel.

A taberna estava agora no mais absoluto silêncio.


- Vocês já entraram em um cemitério militar seus merdas? Não há velhos enterrados. Já viram soldado velho? Só coronéis e generais, e eles não são enterrados junto com soldados. Mandaram-me caiar as covas. Só assim fui lá. As covas eram de soldados mortos por doenças, acidentes, nenhum em combate. Exército de bosta! Uma das sepulturas sobressaia. Era alta e bem apresentada. Quem a fez amava o morto, um rapaz de dezoito anos, falecido trinta anos antes. Assim estava escrito na lápide. Deu-me pena. Tinha a mesma idade que eu àquela época quando morreu. Morrer jovem é um crime contra a natureza. Encerrar a marcha antes de conhecer o caminho; isso eu não queria. A ideia deu-me calafrios, senti estranha opressão no peito, uma aflição... Desejava viver mais, muito mais, conhecer vocês, seus imundos. O velho deu uma gargalhada.

- Tratei da sepultura daquele garoto melhor que das outras. Sentia-o como antigo conhecido. O velho deu uma longa talagada, respirou fundo, como se buscasse na mente, ou na alma, os detalhes da história.

- Certa noite fui escalado para a sentinela na última guarita. A noite estava fria, mas sem nuvens. Vestia casacão, usava o capacete e levava o fuzil. Um vento frio vinha do mar. Fechei o casacão e levantei as golas. Estava encolhido, encostado no canto da guarita. Reparei a neblina baixa que se aproximava. Quando alcançou o quartel, mal se via a escada alguns metros à frente. Dava medo. Realmente dava medo. E o frio...! Começou a chover. Fui pouco a pouco me encharcando. A umidade gelava. Eu tremia. Não conseguia parar. Achei que estava congelando.


- Cadê meu vinho, porra!! Vocês não pagam uma caneca por história? Cadê o vinho, porra. Imediatamente o estalajadeiro encheu a caneca do velho, sob os olhares de aprovação dos fregueses.


- Estava quase desfalecendo quando me pareceu que algo se divisava no meio da neblina, bem por sobre a muralha. Nada em meu coração indicava perigo naquela visão. Só podia ser um colega.

Nesse ponto o velho estava lívido, a vermelhidão, provocada pelo álcool, sumira. Sua voz não era mais grave, mas rouca. Os ouvintes apenas respiravam com os copos na mão.

- O vulto foi saindo da neblina, vinha pelo passadiço. Parecia materializar-se adiante. Era um soldado. Não reconheci o uniforme. Estava desarmado. Assim que se aproximou reparei feições suaves.

- Pode ir à casa da guarda, ele me disse. Sou sua rendição. Era a ordem que eu queria ouvir. Virei-me, botei o fuzil no ombro e caminhei na direção da escada. Dei dois passos e olhei para trás. Ele certamente estaria me acompanhando. Não estava mais lá. Com aquela neblina podia ter voltado sem que eu visse enquanto pegava o fuzil. Desci as escadas tateando.

- Quando cheguei à casa da guarda o sargento disse que estava preocupado. Há trinta anos um soldado morrera congelado naquele posto em noite de tormenta, um garoto de 18 anos, que estava enterrado na cova mais bonita do cemitério. Pensava em mandar me chamar.

A taberna ficou em silêncio por alguns segundos. O velho sentou-se e voltou ao mutismo habitual. Tomou a caneca de vinho que a história comprou e logo depois saiu. Naquela noite não houve mais histórias.


















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