Nem me lembro muito bem dele. A vida dá voltas e nos traz memórias há muito perdidas. Bem... eu tenho muito tempo até que tudo tenha se resolvido, acho que vou dar um cochilo. Mas os minutos passam e é impossível conter a volta das lembranças, pegando-me desprevenido. Começo a lentamente me lembrar de como eram nossas brincadeiras e como era gostoso poder fazê-las com ele. Lembro-me de quando morreu, como doeu em minha alma, era meu único e verdadeiro amigo, e eu nunca havia me importado muito com ele, mas sempre que algo acontecia comigo ele estava ali, esperando para poder me ajudar.
Era escritor. Escreveu muitos livros, mas quase todos didáticos. Recordo-me quando falavam para ele escrever um romance, ou um livro de ficção, mas ele disse que só o faria quando tivesse algo pessoal para dizer. Alguns dias antes de morrer, ele terminou seu livro, falava de seu pai, mas não da maneira rotineira, tratava dele com carinho, com orgulho. Seu livro foi um dos mais vendidos durante semanas, meses, talvez até mesmo um ano. Ele não pode ver, havia morrido de câncer alguns dias após o lançamento.
É difícil olhar para trás e ainda ter a amargura de como fui tratado por ele na minha infância. Algumas vezes ele chegou a me bater. Doeu mais no coração, do que em meu corpo. Demorou para eu entendê-lo, algumas vezes ainda acho que não entendo. Sinto remorso por não ter lhe dito, enquanto ele ainda estava vivo, o quanto eu gostava dele, e se nós tínhamos alguma diferença, esta não superaria o amor que eu tinha por ele. Sinto que não é mais possível conter minhas lágrimas. Que se dane! Um homem pode chorar sim! Todos temos emoções e nossas maneiras de expressá-las, e chorar é a única que encontrei agora.
Nunca foi considerado um símbolo. Nem pela família, nem pelos poucos amigos, nem mesmo por mim. Nem sequer cheguei a seguir no mesmo ramo que ele. Enquanto ele fez matemática e fui para a área de psicologia. Mas ninguém podia negar que ele era uma das pessoas mais inteligentes que já se havia conhecido. Não demorou para alguém encontra-lo nas aulas em que dava na faculdade de matemática e estatística e pedir para que ele escrevesse livros didáticos para o ginásio e para o colegial. Ele aceitou e foi assim que começou a escrever seus livros, deixando alguns anos depois de dar aula e se dedicando exclusivamente a eles.
Não pude uma vez sequer, entendê-lo completamente, apenas concordava com a cabeça. Lembro-me, agora, quando casei-me e lá estava ele, todo orgulhoso. Estava elegante, como raramente esteve. Me deu suas sinceras felicitações, e desejou que eu não tratasse minha mulher como ele havia feito, para não precisar ficar se lamentando, quando ela me largasse, como havia acontecido com ele. Guardei este conselho dentro do meu coração. Esta foi uma das poucas vezes na qual ele me aconselhou, e pude notar no fundo de seus olhos o remorso o corroer.
Nunca fomos muito próximos, não havia muita afinidade entre nosso gênios. Mas isto não importa. De uma forma ou de outra ele me ensinou tudo que eu sei até hoje sobre a vida. Não foi um grande homem, mas foi e é meu pai e meu melhor e único verdadeiro amigo. E agora estou eu cercado por quatro paredes brancas, dentro de uma maternidade, esperando a minha vez de ser pai e espero sê-lo tão bem quanto o meu o foi.
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