Adalberto Antônio de Lima
Montes Claros – MG
Café com poesia
O sertanista no trem levava os teréns
que podia levar: uma rede, um facão,
e uma pá que ajudava a fazer
alguma trincheira que fosse cava.
Feliz sobre os trilhos, o trem deslizava,
e a fumaça dançava nos versos ligeiros
sentindo o cheiro de poesia no ar.
Bem longe estava de qualquer estação
quando a lenha acabou e o trem parou
porque a caldeira não tinha pressão.
Ribeiro desceu sem sol, nem luar.
Deixou logo o trilho e pegou uma senda.
Sem luz e sem brilho, sem nada enxergar,
sobre os olhos, a venda da noite escura,
temendo abrolhos escolhe o lugar:
É aqui! Vou cavar uma fossa.
Preciso de abrigo até a aurora a chegar.
Sem temer o perigo de bicho selvagem,
o bom sertanista, com muita coragem,
bem tarde da noite, pôde descansar.
E, assim, na trincheira, por ele cavada,
a noite inteira ficou a pensar.
Então veio o sol, a incidir sobre os olhos,
e da cova aquecida o fez levantar.
O dia amanhece no topo da serra,
o trem parece querer galopar,
mas aquele filho, de tão longe vindo,
não pode escutar senão o clangor,
naquela manhã do triste acauã,
solitário a cantar.
No alto dos montes mais claros que via
a semana inteira o trem desafia
o tempo e o espaço, quão rápido se sente
a cada dormente que vê passar,
apita e fumega mandando avisar:
é ponto final, a última estação.
O maquinista então, se dá conta
que o mineiro bem antes desceu
e por outro caminho,
andando sozinho,
Ribeiro está.
Na sombra da mata, sem sol poder ver,
não podia saber, nem onde estava.
Então resolveu subir entre as fendas
que dão no outeiro e longe ele viu
tenazes guerreiros nativos da terra,
bem no pé da serra, a tribo Aroazes.
Seu corpo cansado de tanto andar,
de sede aflito, encontra alento
nas águas barrentas do rio Bonito.
E, quando recobrou o vigor e as forças ,
viu no espelho das águas a sombra de moça
curtida de sol, olhos amendoados,
seios rosados como polpa da romã
e deles saia, ao sopro do vento
o cheiro atraente de uma maçã.
Ribeiro tinha enorme desejo de tê-la
e procurou ensejo de se aproximar
da copa altaneira do jequitibá.
pois lá em cima nos mais altos galhos
a audaz cunhatã escondida está.
Logo, resolveu inventar uma língua
que pudesse levar alguma mensagem
àquela selvagem de mente pequena,
mais linda e ingênua que a bela Alencar.
- Jequiriti, jequitá! — gritou Ribeiro,
e tomado de espanto viu cunhatã descer
do mais alto galho do jequitibá.
Porque, o pajé lhe dizia, desde pequena:
“ És Jequitá, palmeira frondosa, trepada no galho,
quisera o espírito bom te mandar
um deus de bem longe, teu nome chamar.”
E, pelo aceno, Ribeiro sabia,
Jequitá queria instrumento de branco
para o chão cavar.
A índia, bem ligeiro, num salto felino,
tomou de Ribeiro o facão e a pá,
passou a cortar a rala caatinga,
e o chão escavar.
Com a força do braço, maior que da mente,
pôde encontrar a cuiapitinga enterrada
no tronco do jequitibá.
Cunhatã sobre si derramou a poção
que pelo corpo a escorrer,
o xixi do pajé fazia nascer a deusa-mulher.
Assim que seu corpo nu se viu embebido
a índia voraz, com um passo ligeiro
atrelou-se a Ribeiro em insaciável libido,
e, num abraço incontido entregou-se todinha
ao deus que ela tinha tanto tempo esperado.
Passado o tempo, de gozo medonho,
em sono profundo, desmaiados, caíram.
Sem vacilar, o grande cacique
de guerreiros cercado, em sua rede deitado,
chama o pajé e manda evocar
sobre marido e mulher
o espírito do deus Tijupá.
Feita a pajelança, em silêncio ficaram
esperando a voz da selva falar.
Veio a cotovia, banhada de lua
Sacodindo as penas anunciar:
O tempo será de nove luas
para curumim chegar.
No centro da taba no meio do terreiro
subia o cheiro da lenha que ardia.
Ao lado do fogo, de amor encharcado,
nos braços da amada, Ribeiro dormia.
As virgens pequenas, ainda meninas,
sobre os amantes, de amor saciado,
lançavam flores e riam. Enquanto dançavam,
tenazes guerreiros por carne, sedentos,
na tarde sombria de um dia cinzento,
o ritual das vésperas, faziam.
No outro dia a tantos de março,
Ribeiro intrigado ficou, porque parecia
ouvir carimbamba cantar:
“Amanhã eu vou... Amanhã eu vou”
Sem demora veio a noite,
Cuiarana e toda tribo bebia
aluá de milho e fumava diamba.
A carimbamba calou-se;
Ribeiro aproveitou a alucinação da tribo
para da morte iminente, escapar.
O dia anoitece no topo da serra;
o filho de outra terra já pressentia
sobre sua cabeça, sentença de morte
Mas, no terreiro, frondosa palmeira
o vento torcia, e por ela, Ribeiro subiu.
Ali, sem demora, cortou uma palha,
e como uma gralha, voou e sumiu.
Meninos, não minto! Eu canto o que sinto.
Meninos, eu vi o corpo nu e por inteiro
de Jequiriti trepada no Jequitibá.
Meninos, eu vi Ribeiro por lá.
***
Rascunho de um poema para ser incorporado à coletânea "Café com versos" em junho de 2019 pela Editora Delicatta. O lançamento acontecerá na Feira Literária de São Paulo no dia 20.06.2019..