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Contos-->Dia incomum -- 22/05/2001 - 16:39 (Pablo Rodrigues) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Carlos naquela manhã levantara decidido a matar-se. Preparou o cenário de seu fim com um metodismo religioso. As janelas ele escancarou, o quarto perfumou, a sala dispôs como somente a dispunha em dia de visita. Tudo estava arrumado, posto que aquele era um dia incomum: o dia de sua morte.
Depois de haver colocado a corda com a qual se enforcaria em local estratégico, de súbito, à sua lembrança começaram a emergir fatos antes empurrados ao inconsciente. Lembrou-se de que quando era jovem, seu pai lhe dissera que a fortaleza de um homem consistia em jamais demonstrar fraqueza. E Carlos jamais a demonstrou. Lembrou-se de uma noite de sua infância, em que despertara amedrontado porque havia tido um sonho ruim e que fora repreendido com veemência pelo seu pai por tê-lo acordado. Disse-lhe seu pai - Nélson, Cabo do Exército - naquela ocasião:

- Guri, se voltares aqui de novo a essa hora da noite eu te coloco dormir lá fora junto com os cachorros. E aí tu vais ver o que é ter medo. Homem que é homem não se assusta com qualquer coisinha, seu marica. E, agora, vá dormir! Ligeiro!

Carlos, que tinha um profundo respeito pelo pai – não sei bem ao certo se posso chamar de respeito esse sentimento, posto que era o medo que seu pai lhe infundia com a simples presença, o motivo de tanta reverência – voltou a deitar-se. O temor advindo dos sonhos ruins havia perdido o lugar para a dor de não ser tão forte quanto seu pai: Carlos conversara com todas as estrelas daquela noite. “Ora (direis) ouvir estrelas! Certo perdeste o senso!”. Direi, no entanto, contrariando Bilac, que não é preciso amar para conversar com as estrelas, basta simplesmente, estar descontente com a vida e em um suspiro, odiá-la.
A vida de Carlos era um vendaval doloroso e lacrimoso. Na fuga de suas lembranças do inconsciente para o consciente, veio à tona uma cena que aconteceria anos mais tarde àquela do pesadelo. Lembrou-se de que ao chegar em casa certa manhã, depois de caminhar por sobre as folhas das árvores caídas ao chão, vira escondido o seu pai discutir e espancar Dona Glória, empurrando-a da escadaria, em um acesso de fúria atemorizante. Dona Glória, mãe de Carlos, morreu três dias após aquela discussão devido a um traumatismo craniano ocasionado pela queda. O mundo de Carlos ruíra definitivamente com a morte da mãe. Sobrara-lhe, do ambiente familiar, apenas a repressão paterna.
Havia passado nem bem um mês da morte de Dona Glória e Cabo Nélson já transitava pelos lupanares com uma tranqüilidade estóica. De puta em puta, contava detalhes sobre os horrores das guerras em que nunca estivera. Prometia mostrar-lhes as medalhas que ganhara por sua bravura e lealdade. As putas fingiam acreditar. A vida, às vezes se parece com o diálogo entre um militar e uma puta: “Finjo que sou e tu finges que acredita”.
Jamais a “perspicaz” opinião pública desconfiou da versão que Nélson dera à polícia sobre a morte de sua esposa. Afinal, quem ousaria duvidar de um homem travestido de verde-oliva, em pleno abril de 1964? Somente Carlos sabia a versão verdadeira. E seria melhor se não a soubesse, porque a culpa corroia-lhe a alma. Culpava-se por não ter sido capaz de acudir sua mãe ou de denunciar seu pai. Culpava-se por viver imerso em temor e fraqueza.
Carlos havia incorporado um niilismo impressionante. Nada mais fazia sentido em seu mundo. A vida e uma bolha de sabão tinham aos seus olhos o mesmo significado. Minto, a vida trazia um agravante: o sofrimento.
As lembranças e o presente tornaram mais acentuada a decisão que Carlos havia tomado. Então, calmamente, subiu em uma cadeira, prendeu a corda firmemente ao redor de seu pescoço e se deixou cair. Matou-se, sem os dramas existenciais que afligiram o príncipe Hamlet. Matou-se, porque não queria mais lembrar, nem ser. Juntou-se às estrelas.

Pablo Rodrigues


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