A imagem da embalagem de Laka colada no vidro do armário de fórmica azul da cozinha de minha infància é muito viva na memória. Talvez por não saber como ocupar o verso do papelão que servia de esqueleto para as quatro (ou seriam cinco?) barras do chocolate branco preferido de minha mãe, alguém resolveu imprimir ali uma frase pretensamente otimista: é tão fácil ser feliz. Com ponto de exclamação: !. As letras pretas, garrafais estilo Helvética, em moldura de corações vermelhos e rosas piscam frente aos meus olhos ao menos uma vez por semana. Desde os quatro anos, aprendi, através de um pacote de chocolates, que ser feliz é fácil. São trinta e tantos anos crendo nessa máxima, ainda que você possa, como eu mesmo já fiz, dizer que só um louco daria atenção a uma fonte de informação tão sem importància. Louco que somos, quem resolverá a sensação, também minha companheira desde aquela época, de que o ser humano é um incompetente que não consegue ver a doce facilidade lakiana para encontrar o caminho da felicidade?
Na semana que se foi, desejei nunca ter comido um Laka em toda minha vida. Assim, não me veria obrigado a tentar rasurar o papelão da memória na esperança rebelde de acrescentar um "NÃO" ao início da frase que dá título a esse desabafo. Que facilidade há em ser feliz quando alguém que você gosta e respeita perde o marido jovem de uma forma considerada natural para a medicina, mas que nunca será vista como fenómeno da natureza por seus amigos? O que dizer para a jovem viúva, grávida de cinco meses, quando a abraçamos no velório? Vai passar? Deus quis? Você é forte? Ele está melhor agora? Dizer o quê que possa diminuir a dor dela? Eu sei pelo que você está passando? Mentira. Melhor não dizer nada. Se, nessa hora, ser feliz não é fácil para mim, quanto mais para ela.
Como quis que meu pai nunca tivesse colado aquela embalagem no vidro do armário azul... É tão fácil ser feliz? Há quase duas centenas de famílias brasileiras que não acreditam nisso pois perderam gente amada num acidente aéreo causado pela falta de ação de quem tem algum poder para mudar aeroportos de lugar. Reformar pistas? Diminuir o número de pousos e decolagens? Fazer declarações? Cuidar melhor da manutenção dos aviões? Nada! Construam outro aeroporto fora da cidade! Custa caro? Estão, todos vocês que arbitram sobre a questão, previamente autorizados por mim a investir nas obras necessárias apenas três por cento do que paguei de imposto no ano fiscal de 2006. Desde que seja longe de onde está Congonhas hoje. Tenho certeza de que a minha autorização leva a assinatura da imensa maioria dos brasileiros. Enquanto isso, o que dizer para os pais, mães, irmãos, maridos, esposas, amigos de quem estava no avião ou no prédio da TAM? Vai passar? Deus quis? Vocês são fortes? Eles estão melhor agora? Dizer o quê que possa diminuir a dor deles? Eu sei pelo que vocês estão passando? Mentira. Se chorei vendo pela TV o descaso e a tristeza que cada um teve que enfrentar em São Paulo e Porto Alegre, se não acho fácil ser feliz assim, o que sentirão eles?
Há quem diga que a felicidade não é a única alternativa, que ser feliz ou infeliz é uma escolha individual. Pode ser. Nunca vi ninguém que, conscientemente, desejasse a infelicidade, mas pode ser. O que faço, se assim for, com a embalagem de Laka em minha memória? Muito em mim continua tentando provar que é mesmo tão fácil ser feliz. Com ponto de exclamação: !. Essa parte, ainda que incapaz muitas vezes, insiste em lutar para provar que felicidade é diferente de alegria; que felicidade é do verbo ser; alegria e, portanto, tristeza são do verbo estar; que se pode estar triste e ser feliz ao mesmo tempo. Alegrias passam, tristezas passam, felicidade pode ser permanente. Para a minha amiga, para os familiares das vítimas da TAM, para você que teve um motivo para deixar de ser feliz na semana que passou, talvez essas elucubrações de nada sirvam. Dizer o quê? Nessa semana, não foi nada fácil ser feliz.
