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Artigos-->Para Quem Gosta de Apartheid Recomendo o Rio de Janeiro -- 28/02/2003 - 09:45 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Para Quem Gosta de Apartheid Recomendo o Rio de Janeiro.



Vejo nos jornais, impressos e televisivos, que os negros do Rio de Janeiro estão rindo à toa, assim, como diria o grande malandro do samba, feito pinto no lixo. É que a UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro – é a primeira universidade pública do país a adotar o sistema de cotas para o processo seletivo do vestibular, ou seja, é a primeira universidade do país a garantir, através de projeto de lei, um determinado número de vagas em seus cursos para pessoas que se declararam negras, pardas ou mulatas no ato da inscrição. Pesquisadores, professores, educadores e intelectuais da área de educação do Rio de Janeiro, do governo carioca, e de outros lugares do país acharam a medida um avanço. A maioria dos pedagogos também. O que comprova minha tese de que burrice não tem cura.

O projeto de lei aprovado pelo governo do Rio de Janeiro garante 40% das vagas oferecidas pelas universidades do Estado a negros, mulatos, pardos ou pobres que assim se declarassem na ficha de inscrição. A medida tem lá suas boas intenções (das quais, vale ressaltar, o inferno sempre esteve cheio), não duvido, mas também é imediatista, demagógica, arbitrária e estúpida em suas motivações. Uma forma velada de violência, discriminação e preconceito. E os candidatos negros riem, os movimentos de consciência negra riem, as ONGs, os Direitos Humanos, os grupos e associações negras, enfim, todos parecem rir com a conquista, a suposta conquista do direito à educação superior por parte dos seus representantes “de cor” ou afro-brasileiros, para ser politicamente correto. Coisa que o projeto de lei não foi.

A medida é imediatista porque não resolve o problema maior, a falência do sistema educacional brasileiro como um todo, e das universidades públicas em particular. O sucateamento, a baixa qualificação profissional, a falta de uma estrutura verdadeiramente organizada, são imperativos da educação brasileira há algumas décadas, e essa crise só tem feito se acentuar, chegando decisivamente à universidade, que naufraga em suas intenções e obrigações, principalmente a de formar uma elite intelectual capaz de pensar por si mesma, livre e imprevisivelmente, como deve ser todo o intelectual que se preze. Demagógica porque partiu do ex-governador, populista e pai dos pobres de plantão, Antony Garotinho, uma maneira mais do que clara e fácil de aliciar o voto dos negros, já que a facção evangélica sempre esteve com ele, e os pobres acreditam mesmo que o homem é um santo.

Agora, o que é pior, a medida é arbitrária e estúpida porque em momento algum parece considerar os efeitos nefastos ou as complicações sociais que pode estar criando com esse sistema estabelecido. Garantir vagas para negros, criar um processo seletivo especial, em que apenas eles possam tomar parte, concorrendo entre si, é discriminatório, preconceituoso e antiético, para não dizer sem-vergonha e humilhante. Os negros apoiarem e aplaudirem a iniciativa é que preocupa. Aceitam a idéia de desqualificação que esse processo seletivo deixa subentendia: entre os brancos, a nota de corte do vestibular para odontologia da UFRJ foi de 77,5, enquanto que, entre os negros, caiu para 6,25. Já começam como motivo de risos dos brancos ricos e ressentidos.

O que não tem sido discutido até aqui é o potencial que essa lei traz em si de tornar institucional o preconceito. Boa parte dos Estados Unidos levou mais de um século para acabar com a discriminação institucional, aquela garantida por medidas de lei como as que proibiam os negros de estudar na mesma escola que os brancos, tomar os mesmo ônibus, dividir assentos, banheiros públicos, espaços de convivência, etc. O passado escravista dos EUA deu, após uma abolição tão desastrosa quanto a nossa, em segregação constitucional, o que equivale a dizer que a discriminação era garantida por lei. No Brasil, o negro foi marginalizado, sim, mas o Estado se eximiu de qualquer responsabilidade, fosse sobre os destinos dos pobres diabos alforriados, fosse sobre o conjunto de leis que garantiam, teoricamente, a igualdade de raça e cor. Ficamos com o preconceito e com a discriminação velada que, de todas, é a menos maléfica, porque se dá no plano da consciência individual, exclusivamente. E aí, cada um se entenda com a própria cabeça.

O Rio de Janeiro corre o risco de ser o estopim para fazer desse preconceito velado uma forma política, institucional, de discriminação. Pode estar criando, a longo prazo, um país de brancos para brancos, com um enorme gueto de negros para negros. Não ficarei espantado se daqui a algumas décadas a UFRJ, e outras universidades e escolas públicas, tiverem setores distintos para cada uma das duas cores em questão, com professores de mesma cor, funcionários, etc. Não ficarei surpreso se, ao tomar um ônibus, o cobrador alertar uma senhora “de cor” para que deixe o assento em que está, reservado para uma senhora branca, com seus filhos brancos e sua vida classe-média, asseada e branca. Isso a longo prazo, o que me deixa feliz, já que concordo com Keynes, o economista: “A longo prazo todos estaremos mortos”.

Fugir à realidade é medíocre e abjeto. Não considerar conseqüências, fechar os olhos, aceitar e sorrir para o que não se entende, para o que fica pelo caminho, nas entrelinhas, é falta de vergonha, coisa de quem não escova os dentes todos os dias. Não se pode fazer vistas grossas, simplesmente, e pensar que as coisas se resolvem entre um paliativo e outros, entre uma medida populista e outra. O que me espanta é o fato de que a maioria dos grupos de consciência negra encarem a medida com naturalidade, esqueçam ou desconsiderem, eles mesmos, a violação institucional que sofrem e continuarão sofrendo se evitar discutir o assunto com inteligência e senso crítico.

Logo, brancos, pobres, amarelos e índios, vão recorrer ao mesmo expediente, e 100% das vagas serão reservadas para as nossas, supostas, minorias étnicas. Aí, os brancos vão alegar preconceito. A confusão, agora, já está formada. Não tem de se garantir vaga para cor, raça ou minoria étnica nenhuma. Ao contrário, tem que se privilegiar o livre acesso a universidade ou a escola pública, mas de forma decente, digna e inteligente, através de um sistema educacional que garanta, desde suas bases, a formação e o aprimoramento cultural necessários a qualquer pessoa civilizada, ou que reivindique esse título. Tem de se evitar o naufrágio absoluto da educação brasileira, entregue a um sistema gestor incompetente, pois já deu as devidas provas disso.

Concordo com Hannah Arendt, segregar todos segregamos, diga-se de passagem: negros, zulus, joshuas, muçulmanos, judeus, alemães, franceses, indonésios, eu e até você, caro leitor, fazemos nossas escolhas pessoais de acordo com o que nos dita ou reclama nossa consciência, essa estranha diária que nos persegue. Quando escolhemos uma pessoa em detrimento de outra, um amigo em detrimento de outro, um emprego, um bairro, um círculo de conhecidos, estamos pondo em prática nosso pendor para a segregação. Transformar as escolhas, as livres escolhas, em determinações legaria, em processos, em garantias de vagas, transformamos a liberdade de consciência em discriminação institucional, corremos o risco de criar nosso particular e íntimo apartheid.

A África do Sul que nos valha, meus amigos!





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