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Contos-->Esse menino -- 24/05/2001 - 10:51 (Leonardo Almeida Filho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O carro voou sobre as pessoas.
Pedaços de cérebro cuspidos no pára-brisa. Porra, que merda. Sangue manchando a lataria reluzente do Mercedes blindado. Caralho, velho. Um bólido vermelho invadiu o ponto de ônibus colhendo gente humilde-pispasep, sem aviso prévio, sem dó. Trabalhadores cansados agora eram pasta, tendões expostos, artérias rompidas, gemidos. Amassados contra o muro, sobre cartazes anunciando shows de pagode e rostos de políticos, grafites idiotas, Rosinha eu ti amo, O povo unido jamais será venSSido, celacanto provoca maremoto. Tudo rápido, como num video-game alucinado. Não houve tempo para nada além de arregalar os olhos e acreditar que era sonho, sonho ruim. O motor roncando sob pedaços de gente e tijolos. Puta que pariu, fodi com tudo. Fulana não iria chegar a tempo para a telenovela. Sicrano certamente perderia sua prova no supletivo primeiro grau. Manoel de Souza, vendedor de uma loja de sapatos, ficara sob o automóvel, abraçado à sua marmita de alumínio, vazia, mas intacta, nenhum amassadinho. Luzinete, doméstica grávida, não teria filhos, nem a perna direita, que jazia sobre um bueiro, tremendo involuntariamente, espasmos musculares do membro violentamente amputado. Maria Rita, depois, no pronto-socorro, não saberia explicar ao marido o que fazia ali, naquela hora, e ganharia outros novos hematomas.
Cheiro de gasolina e sangue, urina e fezes, dor e desespero. O cenário, sem tirar nem pôr, assemelha-se a um atentado palestino em Israel. No volante do carro importado, ainda zonzo com a pancada dos air-bags, Ricardinho, bêbado, procura pelo celular, sem ouvir a voz de sua mãe que, do outro lado, ronrona estúpida é flácida: Ricardo, meu filho, o que está acontecendo? Que barulho foi esse? Já lhe pedi várias vezes para não sair dirigindo por aí. Você não tem carteira, meu filho. Volte logo para casa. Mamãe tem uma surpresinha para você, venha logo. Ricardo. Ricardo. Esse menino!
Protegido pela blindagem do veículo, conseguiu escapar à fúria dos populares que caíram sobre ele, com paus e pedras. Saiu cantando pneus, inutilizando definitivamente a marmita de alumínio do falecido Manuel. Na fuga, derrubou dois rapazes que tentavam inutilmente quebrar a janela do lado do passageiro. Aí, se foderam, babacas.
Ao chegar em casa foi recebido com beijinhos e quindins, seu doce favorito. Meu filho, comprei-te esses dois negrinhos para que relaxes, disse-lhe a mãe, locupletada de pérolas e quadros de Dali, apontando para dois meninos negros que sorriam amarelo. Podes dar-lhes cascudos a vontade, custaram-me os olhos da cara. Um horror. Não sei onde vamos parar, antes era muito mais em conta comprar coisinhas assim. Completou. São dóceis, servis e obedientes como todo zepovinho. Veja, filho, agora eles vêm com manual de instruções. Não é um luxo? Estendeu a mão para o filho e entregou-lhe um pequeno livro intitulado “Manual para adestramento de pobres – Negros ou brancos”. Ah, meu filho, comprei esse modelo negro porque os brancos estavam em falta, mas olhe, eles estão ficando melhor a cada dia, temos que dar o braço a torcer, mas o cheiro ainda é horrível. Mandei Isolda banhá-los com Chanel número 5, mas ainda estão...leva educadamente o dedo ao nariz, interpretando sua repugnância, você sabe como.
Ele então arrastou seus dois utensílios para o quarto e, enquanto se despia para o banho, deu dois cascudos em cada um deles e sorriu aliviado. Puxa, como isso é relaxante, pensou com seus olhos avermelhados por causa dos air-bags e , é claro, pela cocaína batizada que andou cheirando. Os pivetes sorriram seus risinhos amarelos e cariados e nem coçaram a cabeça para aliviar a dor. No manual estava escrito que deveriam sempre disfarçar qualquer sentimento que pudesse significar afronta ao dono, sob pena de devolução. Isso era o pior pesadelo para qualquer um deles. Significava voltar para, na melhor das hipóteses, aquele barraco suspenso no morro, condenado pela defesa civil. Melhor a dor dos cascudos, pensavam.
O pai quando chegou do trabalho foi recebido com um beijo e com o comentário de que Poxa, pai, a blindagem é do caralho. Hoje eu faxinei um ponto de ônibus e o Mercedes foi dez. O gordo, inchado de dólares e caixa-dois, lavado e passado nas Bahamas, sentiu-se orgulhoso de sua cria e sua aquisição. Filho, disse ele de cima de seu sotaque branco e do topo, que bom que você gostou. Espero mesmo que você saiba de seu papel em nossa sociedade, e o cumpra totalmente. Olha, ele disse de cima de sua gordura e debêntures, chega de ler Rubens Fonseca, viu? Não quero mais atropelamentos.
Na cozinha, o telejornal destacava o acidente na L2 Sul, lamentando a fuga do suspeito. Ricardinho, enjoado de dar cascudos em seus brinquedinhos sorridentes, resolveu comer umas menininhas. Ligou para algumas delas e pediu ao pai que emprestasse o carro, pois a Mercedes estava muito suja de sangue de pobre. O gordo sórdido, proprietário de metade do Amazonas e da maioria do Congresso Nacional, sorriu e, acenando afirmativamente com a cabeça, disse baixinho : Vai, Ricardinho, pode levar a Ferrari. Notou então a presença dos dois meninos negros junto à escada. Estranhou tudo aquilo. Negrinhos, aqui? Coçou a cabeça, tentando desvendar o mistério. A mulher descia as escadas, flutuando sua gordura reticente, plásticas e litros de silicone. Oi, querido, disse ao ver o marido. Passou pelos negrinhos e desferiu-lhes cascudos. Respirou fundo, e soltou o ar, em evidente prazer. Comprei para o Ricardinho, disse, caminhando em direção ao marido, que finalmente entendeu a presença daquelas criaturas ali.
Os meninos saíram serelepes, xingando baixinho, rogando pragas. Cuspiram discretamente na porção de caviar que a empregada preparara para servir aos patrões, e foram para o quintal alimentar os cães e arquitetar vinganças longínquas.
Na sala, mergulhada no sofá, a mulher diz ao escroto do marido que Ricardinho anda muito tenso ultimamente. Essa dupla de pivetes vai ajudá-lo a relaxar e educá-lo no tratamento do povinho dessa terra. Acredita que ele teve a ousadia de me dizer que pensa em trabalhar, Fernando Jorge? sorriram nostálgicos das traquinagens do filhote. O gordo, afrouxando a gravata, contentou-se em dizer: Esse menino!


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