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Contos-->O Culturaholic -- 25/05/2001 - 02:01 (Yuri V. Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Na fauna de Brasília Narciso configurava-se como uma de suas espécies mais típicas. Era um desses fervorosos consumidores de eventos culturais, um viciado em vernissages, concertos e recitais de música erudita, lançamentos de livros, mostras de cinema, novíssimas montagens cênicas de dramaturgos consagrados, shows de rock de bandinhas cabeças, etc., etc. Era freqüentador mais que assíduo do Teatro Nacional, do Cine Brasília, do auditório da escola de música, do Espaço Cultural da 508-sul, do Café Belas Artes, do Teatro Dulcina, da Casa do Teatro Amador, do Itamarati, das diversas galerias e bares in do Plano, além de toda e qualquer recepção promovida pelas embaixadas estrangeiras radicadas na cidade. No entanto, todos compartilhavam a opinião de que Narciso era um tremendo chato, uma figura insuportável. Afinal, por mais variados que fossem os assuntos que desenvolvia – de Nietzsche a Wim Wenders, passando pelas melhores marcas de charutos – intrinsecamente expunha sempre o mesmo tema: o quão culto ELE era.

Uma noite, após haver assistido à apresentação dum quarteto de jazz no Antro – o centro acadêmico de antropologia da Universidade de Brasília –, Narciso flanava distraidamente diante dos bares da comercial 109-sul. Ao passar em frente ao Beirute, não percebeu que, numa mesa próxima, seus cinco ocupantes ocultavam-se atrás dos cardápios.

“Ele tá olhando pra cá! Ele tá olhando pra cá!”

“Relaxa, cara, senão ele vê a gente!”

Narciso não os viu. Mas ouviu Eco, que estava sentada numa mesa ao lado daquela.

“NARCISOO!!”

Eco era uma ninfetinha linda, muito divertida até, mas extremamente pueril e fútil, o que muito irritava Narciso. Tinha este apelido pois costumava gritar em ambientes muito amplos para o ouvir o eco de sua própria voz. Era muito escandalosa.

“NARCISOOO!!!”

“Ah, não! Lá vem ele.”

“E aí, moçada?”, disse Narciso, reconhecendo a turma. “Não adianta se esconderem da Eco que ela sempre encontra todo mundo. É um saco...”

“É”, replicou um.

“Um saco”, acrescentou outro.

“Oi, Narciso”, disse Eco beijando-o. “Oi, gente!”

“Oi, Eco”, responderam todos pelas frestas dum unânime sorriso amarelo.

Eco, pois, convidou Narciso a acompanhá-la até a Itaú-galeria. Lá haveria um vernissage duma já badalada artista plástica local. Ela estava abrindo sua terceira exposição. Trabalhava com vídeo-arte e sua série de instalações intitulava-se Reflexos. Narciso, apesar de o convite partir da chata da Eco, ficou muito interessado. Prometeu – “acorrentado”, pensou ele – irem juntos, depois de beber algo com os amigos. Sentou-se. Na mesa, onde imperava um silêncio fúnebre, todos suspiraram.

“Hmm...”

Aproveitando aquela brecha calada, Narciso principiou sua análise da apresentação do quarteto de jazz. Demonstrou minuciosamente o porquê de os integrantes daquela banda serem limitados. Até que se defendiam bem no bebop e no cool, mas quando tentaram tocar Tomaas, de Miles Davis, explicitaram sua ignorância e incapacidade para compreender uma música verdadeiramente modal e descentrada.

“Tocaram como se todo o desenvolvimento estivesse baseado numa tônica fixa presente, o que é uma falácia, pois todos sabem que é ausente.”

Ninguém se manifestou. Afinal não sabiam nada daquilo. Tinham apenas o íntimo desejo de que ausente estivesse o chato do Narciso.

“Hmm...”

Depois, Narciso narrou o jogo de xadrez que jogara aquela tarde. Descreveu todos os movimentos, tim-tim por tim-tim. Seus brilhantes olhos cintilavam ainda mais:

“Usei aquela abertura clássica – a mais banal de todas – e o cara não percebeu. Vi logo que aquele jogo estava ganho. Era um imbecil, coitado...”

Neste momento todos queriam dar um xeque-mate naquela entidade ali presente. Quando já estavam próximos do desespero, veio a dama e arrebatou Narciso.

“Vamos!”, disse Eco empolgadíssima.

“Vamos”, respondeu o resignado rei da mesa.

O alívio foi geral. Duro seria ter que agüentar novamente aquele figura noutro dia – e como costumavam dizer – no mesmo bat-local, na mesma bat-hora. Onde é que o vagal arranjava tempo pra se instruir? Que angustioso praqueles cinco amigos suportar a ignorância entalada na garganta...

O Itaú-galeria estava cheio de culturaholics. Parecia um encontro dos C.A. – os Culturaholics Anônimos. Mesmo que não conhecesse o nome de todos os presentes, Narciso já os cumprimentava com um discreto movimento de cabeça. Naquelas ocasiões, sempre havia um clima de confraternização. Afinal, compartilhavam do mesmo vício.

Narciso ficou encantado com a exposição. Agradou-o sobremaneira uma instalação com o subtítulo: O Quarto de Espelhos. Aquilo lhe pareceu perfeito: “Reflexos – O Quarto de Espelhos”, repetia para si. Tratava-se dum pequeno cubículo cujas paredes, teto e chão estavam cobertos por monitores de TV. Cada uma das faces em que se depositava o olhar continha uma câmera oculta, que reproduzia a imagem do observador indefinidamente. Narciso, deslumbrado, perdeu a noção do tempo.

“Ô, cara, tem gente querendo entrar também!”

Saiu decidido a conhecer a artista. Manifestou o desejo a um anônimo companheiro de vício.

“Laguna, ela se chama Laguna. Peraí que eu vou te apresentar a figura.”

O companheiro voltou acompanhado pela artista.

“É... Hmm...”

“Narciso.”

“Claro... Que cabeça a minha. Narciso essa é a Laguna.”

Mal apertou a mão da garota e já começou a elogiá-la. Disse o quanto fora enlevado por aqueles trabalhos, o quanto apreciava a sua sensibilidade e o profundo e atualíssimo senso estético que possuía. Ela o encarava fixamente, deslumbrada com tanto entusiasmo. Narciso enveredou, então, por um discurso sobre estética pós-moderna. O rapaz que os apresentou, entediado, afastou-se. E, no entanto, Laguna seguia presa dos olhos de Narciso. Felizmente, era surda-muda.

Quando Eco percebeu o estrago que causara ao levar Narciso até ali, fez o que pôde pra remediar a questão. Mas foi em vão. Ele a ignorava. Laguna, por sua vez, apesar de explicitamente enfeitiçada, não fazia o tipo ciumento. Por mais que Eco se pendurasse no pescoço de Narciso, tentando levá-lo dali, Laguna permanecia impassível. Impassível e apaixonada.

Principiou ali um intenso romance. Narciso e Laguna foram morar juntos. Ele a incentivava e a admirava cada vez mais. Embora ela jamais ouvisse as coisas que ele dizia, adorava contemplá-lo durante seus solilóquios. Nestes momentos, ela o observava tão embevecida que Narciso chegava a esquecer que era surda. Quando ele percebia a cena absurda, tentava passar tudo pro papel para que ela lesse. Mas como era um inveterado culturaholic – desses que não tem tempo para si mesmos mas apenas para as obras alheias – não conseguia escrever nada. Como tampouco sabia fazer qualquer outra coisa. Conhecia a abertura benoni no xadrez. Mas... e daí?

A primeira providência tomada por Narciso no lar comum, foi reservar todo um quarto pra obra que mais amava: Reflexos – O Quarto de Espelhos. Todas as tardes, quando chegava do trabalho, passava horas inteiras ali dentro, admirando aquela profusa multiplicação da sua própria imagem. Era indescritível aquela sensação...

Numa fria noite de julho, Laguna chegou em casa com todo o silêncio e tranqüilidade que lhe eram inerentes. Antes porém que fechasse a porta, sentiu um forte cheiro de queimado. O que seria aquilo? Narciso certamente havia deixado uma ponta de cigarro cair no carpete. Foi seguindo o incômodo odor. Ao chegar no Quarto de Espelhos, sobressaltou-se. Além de os monitores de TV estarem rotos e chamuscados, sentia um cheiro de carne tostada. Horrorizada, encontrou o corpo de Narciso semi-carbonizado em meio a fios descapados, cacos de vidro e plástico derretido. A única coisa intacta era uma flor, um narciso, que ele trazia ridiculamente presa à lapela do paletó. Não suportando a visão, Laguna desmaiou.

No dia da missa de sétimo dia de Narciso, à porta da igreja, Eco encontrou Laguna, que chorava copiosamente. Embora alimentasse um rancor pungente por aquela que lhe roubara o ser amado, Eco sentiu o coração confranger-se ao ver o sofrimento da moça. Sentindo a necessidade de se compadecer com Laguna, aproximou-se.

“Não fique assim, cara. Narciso não ia gostar de te ver assim tão triste.”

Laguna, claro, não ouviu necas. Embaraçada, Eco desistiu de tentar dizer qualquer coisa através de gestos e repetiu a última frase usando caneta e papel. Após a leitura, Laguna intensificou o pranto e atirou-se nos braços de Eco, que, por sinal, sentiu uma pontinha de satisfação sádica. Aquele pérfido sentimento a animou. Tornou a pegar o papel e a escrever nova mensagem: “Eu sei que você amava Narciso, amava sua beleza e as coisas lindas que ele dizia. Mas você não apenas precisa como vai superar tudo isto.”

Laguna leu e as lágrimas estancaram instantaneamente. A expressão dolorida, colada antes ao rosto, transmutou-se para um ar de surpresa. Pegou o papel e começou a garatujar algo. Eco estava curiosa com a repentina mudança. Leu: “Você achava o Narciso bonito? As coisas que dizia eram belas?”

Eco franziu a testa: “Claro que sim! Sim para as duas perguntas”, anotou.

Laguna pegou a caneta: “Sabe que eu nunca havia reparado em nada disso?”

Eco ficou pasma. Não sabia o que dizer. Ficou olhando a outra com os olhos arregalados. Seria possível?

Laguna tornou a escrever: “Eu gostava do Narciso porque ele era o único que realmente gostava das coisas que eu fazia. Eu adorava ver o efeito que minhas obras tinham sobre ele.”

Eco estava chocada. Ela que tanto amou aquele homem, seu corpo, suas palavras – era a única que admirava sinceramente tudo o que Narciso dizia – o perdeu para uma mulher insensível que nunca reparara nele. Aquilo era o fim. Sem poder se controlar, deu um tapa no rosto de Laguna. Entre lágrimas xingou-a de todos os nomes feios que lhe vinham à cabeça. Pouco importava se a outra era surda ou não. Laguna limitou-se a se espantar muito. Por fim, Eco fugiu correndo.

Ainda naquela tarde, tomada por desespero, Eco dirigiu-se até a barragem do Lago Paranoá. Em prantos, repetindo o nome daquele que amava, subiu na amurada que dava para um amplo vale. Olhou para trás despedindo-se do lago represado e do sol poente. Aquela visão lembrou-lhe um filme que vira na TV. E esta lembrou-lhe as instalações de... Laguna! Sentindo a boca amarga, atirou-se lá embaixo, nas pedras. Contudo, ela não morreu. A barragem não era assim tão alta. Ainda hoje, qualquer pessoa que ali gritar, na direção do vale, ouvirá a resposta de Eco. Ela ainda chora por Narciso. E pede por socorro.


(Extraído de A Tragicomédia Acadêmica – Contos Imediatos do Terceiro Grau, 1997; disponível no site www.angelfire.com/ri/melhor )

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