O SONHO QUE ALGUNS GOSTARIAM DE SONHAR
Renato Ferraz
Quem morre não volta para contar o que acontece do lado de lá.
Meu amigo não morreu, mas sonhou que morreu e por isso pode nos contar.
Ele havia sonhado que adoeceu, morreu, assistiu tudo ao seu redor, até o momento que o deixaram no cemitério.
Após ser enterrado, ele apareceu em um lugar desconhecido. O ambiente parecia com um parque muito grande,
repleto de jardins, bastante verde no local, um lago muito bonito e pessoas espalhadas, umas deitadas lendo,
outras meditando, cantando, tocando, discursando...havia um som ambiente que acalmava a alma.
Começou a reconhecer algumas fisionomias e a primeira que o chamou a atenção foi Saramago.
Caminhava lentamente, carrancudo, tinha nas mãos um livro, no bolso da camisa uma folha de papel com rabiscos de escritos.
Ouviu um grupo de jovens se aproximar dele e perguntar: Saramago, muitos aqui já leram seu livro O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO?
Saramago apenas respondeu que sim! Virou-se e continuou a escrever. Perguntaram de novo: e ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, o que acharam?
Saramago apenas fez um ar de riso e deu com a mão.
Mais â frente estava Carlos Drumond de Andrade sentado sobre uma pedra e rodeado por outras.
Só havia pedra no local, mas no meio das pedras tinha um caminho, tinha um caminho no meio das pedras.
Falou com o poeta que disse ter concluído seu último poema.
Creia quem quiser, Drummond estava sorridente, falante e com cara de felicidade
Á sua frente um monte de livros sobre as pedras, ele os abria, folheava e marcava algo.
Às vezes lia rapidamente algumas folhas e mudava logo.
O meu amigo ouviu resmungar bem baixinho, “no meio do caminho, entre o céu e a terra, há uma vida a ser vivida.
Há uma vida a ser vivida, no meio do caminho, entre o céu e a terra. Há uma vida a ser vivida!
Quem vinha logo em seguida era Fernando Pessoa, que passou apressado, cumprimentou meu amigo e seguiu.
Ele demorou um pouco, depois reapareceu, primeiro como Alberto Caeiro, leu dois poemas e foi pescar lo lago.
Depois Álvaro de Campos chegou, ficou por algum tempo reflexivo e deitou-se numa rede.
Por último era Ricardo Reis trazia uma sacola com livros, sentado começou a organizá-los.
Fernando Pessoa leu duas vezes seu novo poema de Alberto Caeiro: “CONTRADIÇÃO”:
“ Eu às vezes não me reconheço...não sou ninguém, sou pecador, sou triste, sei que o sou.
Mas meu coração fala de amor, aliás coração não fala e quando digo que o meu fala é porque o considero gente.
Mas, ele não é uma pessoa. Ele apenas bate. Eu que quis dizer que ele falava ao invés de bater.
Esse que é assim, sou eu e quem de vós não tem um pouco de mim?
Quem estava ouvindo música bem baixinho e recitava um poema novo para Matilde, era Pablo Neruda:
Ó Matilde amada, te amo porque te amo. Se não te amasse como te amo, o amor não existiria.
Te amo porque te amo...
Havia um pequeno grupo mais distante e um senhor
tocava e cantava:
Uma roupa simples para vestir
E uma boa rede para dormir.
O dia inteiro para descansar
Um céu azul para se contemplar
Era Vinícius de Morais repassando a sua nova composição...
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